Breves apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica e o Direito Tributário

18/05/2017 às 20:08
Leia nesta página:

Explana-se a desconsideração da personalidade jurídica , o Código de Processo Civil de 2015, sua aplicação como "inversa" e a aplicação no Direito Tributário.

1. O Instituto

1.1  Pessoa Jurídica

O instituto civil da Pessoa Jurídica tem como objetivo conferir personalidade à sociedade e entes com escopos e atividades próprias. Busca distinguir a figura da pessoa jurídica da personalidade dos membros que a compõem (pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas).

Isto proporciona que a pessoa jurídica gere vínculos jurídicos próprios, o que em última análise implica na autonomia patrimonial, de forma que os bens da pessoa jurídica não se confundem com os bens dos seus membros e vice-versa.

Isto é, em tese, o patrimônio dos sócios resta inatingível pelas dívidas contraídas pela sociedade, bem como a sociedade não responde pelos valores devidos por seus sócios.  

Ocorre que, diante dessa restrição ao alcance da responsabilidade, a personalidade jurídica tem sua finalidade deturpada, visto que passa a ser um meio para frustrar créditos, desviar a finalidade da empresa, confundir patrimônio, dentre outros. A fim de coibir esses atos e não manter a conduta benéfica a quem realiza, surge o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

1.2 Objeto 

Regulada pelo artigo 50 do Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica rompe a separação patrimonial existente entre o capital de uma empresa e o patrimônio de seus sócios para os efeitos de determinadas obrigações, com a finalidade de evitar a deturpação da personalidade jurídica, utilizado de forma indevida, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, ou, nas relações de consumo, quando este for obstáculo ao ressarcimento de dano causado ao consumidor.

Nos termos do Código Civil:

Artigo 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”

Vejamos o Código de Defesa do Consumidor:

Artigo 28: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.” 

Conforme já exposto, a desconsideração da pessoa jurídica visa proteger terceiros do uso ilícito da autonomia patrimonial entre as esferas da pessoa jurídica e de seus sócios.  Isto é, obrigações patrimoniais da empresa podem ser adimplidas através do atingimento de patrimônio dos sócios ou administradores, quando restar demonstrado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.

Uma questão bem polêmica no âmbito da desconsideração da pessoa jurídica consiste na chamada dissolução irregular da sociedade: este, por si só, seria suficiente para caracterizar o abuso da personalidade jurídica? Com o fim de uniformizar o tema, decidiu o STJ:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ARTIGO 50, DO CC. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES OU DISSOLUÇÃO IRREGULARES DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. DOLO. NECESSIDADE. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ACOLHIMENTO.

1. A criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.

2. O encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do Código Civil.

3. Embargos de divergência acolhidos.[1]

Vale ressaltar que no campo tributário, considerando a previsão do art. 135 do Código Tributário Nacional, tem entendido o STJ que "presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente" - Súmula 435/STJ (AgRg no REsp 1562465/PR, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2015, DJe 18/12/2015).

O Código de Processo Civil de 2015, também cuida do tema na modalidade de “intervenção de terceiros”. Este regula o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, o qual deve ser incidental e respeitar estritamente o contraditório, conforme artigos 133 a 137. Vejamos a regulação:

"Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134.  O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o.

§ 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. 

Art. 135.  Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. 

Art. 136.  Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único.  Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. 

Art. 137.  Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente."


2.  Desconsideração Inversa

A desconsideração inversa, antes aceita pela jurisprudência e doutrina e hoje expressa no Código de Processo Civil, é cabível quando o sócio de uma empresa está se utilizando indevidamente da personalidade jurídica da mesma, utilizando esta como escudo de pretensões legítimas de terceiros. A desconsideração inversa, então, atinge o patrimônio da empresa para a satisfação de obrigação de titularidade de um dos seus sócios.

Fácil pensar em uma hipótese de abuso da personalidade jurídica neste caso, como quando a pessoa física visando frustrar uma dívida dilapida o patrimônio pessoal para sua empresa; ou, um desvio de finalidade ou confusão patrimonial, quando a pessoa jurídica passa a gerir contas pessoais, interesses além dos empresariais.

 Um campo comum onde visualizamos esse tipo de desconsideração inversa é no Direito de Família, sobre prestações alimentícias.

O Código de Processo Civil expressamente autoriza o instituto na forma em que é realizada a Desconsideração “tradicional”: em caráter incidental, com o amplo contraditório e no título de embargos de terceiro. 


3.O Instituto no Direito Tributário

Na relação entre normas de direito tributário e normas de direito privado, aquilo que não for expressamente recepcionado ou modificado pelo Código Tributário Nacional, deve ser tacitamente reconhecido como aplicável em matéria tributária. E na medida em que a lei tributária ordinária não tem eficácia para dispor sobre responsabilidade de terceiros, cabe perfeitamente aplicar o instituto para o Direito Tributário.

O dispositivo aproximado do Código Tributário Nacional com as disposições sobre desconsideração da personalidade jurídica, também versando sobre responsabilização pelos créditos, é o exposto no art. 135. Vejamos:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

O artigo trata da atuação do administrador com excesso de poderes em relação ao contrato social ou estatuto, o qual se torna pessoalmente responsável pelo crédito de obrigações tributárias constituídas nesta situação.

Completando a atribuição de responsabilidade pessoal aos sócios ou administradores, o parágrafo único do art. 1.015, Código Civil aduz que o excesso por parte dos administradores será oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;

 II - provando-se que era conhecida do terceiro;

 III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.  

Caso não seja comprovada a pertinência de alguma dessas hipóteses, torna-se o excesso do administrador inoponível a terceiros.

Entretanto, somente diante de provas consistentes e robustas de excesso de poderes ou contrariedade a lei, contrato social ou estatuto, é possível que a cobrança do credito tributário seja imputada ao sócio, mesmo que os tributos sejam típicos de pessoas jurídicas, como o IRPJ e PIS/Cofins.

O previsto no CTN em seu artigo 135 afasta da pessoa jurídica a possibilidade de alegar práticas de excesso de poderes ou infração a contrato social ou estatuto como forma de eximir-se de obrigações tributárias.

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Para o Fisco, provado o referido excesso, autoriza-se a exigibilidade do tributo contra o dirigente. Outra questão importante é que esse artigo se aplica ao administrador da sociedade, sendo este sócio ou não. Basta que detenha o poder de decisão, influência e controle quanto à prática do fato jurídico tributário, sejam estes sócios, mandatários, prepostos, empregados, diretores, gerentes ou representantes.

Enfim, surge o Superior Tribunal de Justiça para pacificar o entendimento no sentido de que a norma do art. 135 do CTN somente poderia ser aplicável em compatibilidade com os princípios da personalidade e culpabilidade das sanções. Como exemplo:

 “TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – REDIRECIONAMENTO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO SÓCIO-GERENTE – ART. 135 DO CTN. 1. É pacífico nesta Corte o entendimento acerca da responsabilidade subjetiva do sócio-gerente em relação aos débitos da sociedade. De acordo com o artigo 135 do CTN, a responsabilidade fiscal dos sócios restringe-se à prática de atos que configurem abuso de poder ou infração de lei, contrato social ou estatutos da sociedade. 2. O sócio deve responder pelos débitos fiscais do período em que exerceu a administração da sociedade apenas se ficar provado que agiu com dolo ou fraude e exista prova de que a sociedade, em razão de dificuldade econômica decorrente desse ato, não pôde cumprir o débito fiscal. O mero inadimplemento tributário não enseja o redirecionamento da execução fiscal. Embargos de divergência providos.”  

Pelas reiteradas decisões do STJ nesse sentido, surge a Súmula 430: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”. Quer dizer, o mero inadimplemento de obrigação tributária não é suficiente para configurar o ilícito exigido no caput do art. 135 do CTN.

Ao mesmo tempo, somente pode-se imputar responsabilidade tributária, com superação da separação patrimonial entre sócios e sociedade, nas hipóteses em que os sócios exerçam a gerência ou administração da sociedade na época em que ocorreu o fato gerador da obrigação tributária.


4 . Conclusão

O instituto da desconsideração da personalidade jurídica é hábil a impedir que atos realizados através abuso da personalidade jurídica e caracterizados pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, sejam aptos a frustrar credores e beneficiar quem se utiliza mal de uma personalidade jurídica ou física.

Sua previsão está no Código Civil, Código do Consumidor, Código de Processo Civil e, aplica-se, também, ao Código Tributário Nacional, conforme acima delineado.

Atualmente, por sua capacidade de promover execuções frustradas, é um instituto muito importante e a previsão no CPC/2015, garantindo o contraditório, honrou a segurança jurídica das decisões provenientes da aplicação deste instituto.


Nota

[1] EREsp 1306553/SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014.

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