1. INTRODUÇÃO
A crise migratória que decorre da Guerra Civil Síria (2011- ) tem estado no centro de debates ao redor do mundo, em especial, pelo número de refugiados que deixam o território do conflito em busca de segurança.
O deságue de milhões de indivíduos em países que não estão preparados para recebê-los adequadamente tem ensejado discussões inflamadas acerca da necessidade de proteção de valores e cidadãos nacionais. O resultado desta realidade é um aumento dos movimentos de cunho nacionalista que apresentam forte rejeição à recepção destes refugiados.
Na Europa, grupos de extrema direita têm se fortalecido consideravelmente a partir dos temores de que uma suposta “invasão” de refugiados poderia ser prejudicial ao “modo de vida europeu”. Considerando-se ainda o fato de que o ano de 2017 representa um período em que haverá eleições para o Legislativo e Executivo em diversos países da Europa, o tema vem sendo amplamente explorado, observadas as peculiaridades de cada espectro político.
Por sua vez, em 18 de abril de 2017, o Senado brasileiro finalmente aprovou o Projeto de Lei do Senado – PLS, 288 / 2013, que trata do Estatuto do Migrante, em substituição ao antigo Estatuto do Estrangeiro, em vigor conforme a Lei 6.815/80, faltando apenas a sanção do Presidente da República para início de sua vigência.
O debate em torno do projeto foi marcado por polêmicas e posições polarizadas em virtude de um suposto “favorecimento” do estrangeiro no Brasil em detrimento do nacional. No entanto, o conceito de nacionalidade e as condições do estrangeiro no país estão bem regulamentados, não só pela Constituição de 1988, mas também na legislação esparsa e nas diversas Convenções assinadas pelo Brasil ao longo de nossa República.
2. NACIONALIDADE
Apesar de parecer algo tão corriqueiro, o conceito de nacionalidade, como o conhecemos, é relativamente recente, decorrendo dos movimentos nacionalistas do início do século XIX, quando o vínculo entre o indivíduo e um determinado território passou a ser a essência do próprio Estado. Registre-se que a noção de Estado abrange o povo – aqui considerado o próprio conceito de nacional, aliando-se ainda a noção de território, soberania e a capacidade de se relacionar com outros Estados no plano internacional.
Atualmente, conforme leciona Mazuolli, a nacionalidade é o “vínculo jurídico-político que une um indivíduo a determinado Estado[...]” e é muito mais do que simplesmente uma relação jurídica. É, conforme o autor, um “laço moral”.
Para o Direito Internacional, a nacionalidade é um direito fundamental da pessoa humana, conforme expresso na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, em seu artigo 15, §§ 1º e 2º, nos traz a seguinte redação:
“Artigo XV
1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.“
No contexto das Américas, há também a Declaração Americana dos Direitos do Homem, de 1948 e o Pacto de San José da Costa Rica de 1969 (internalizado no Brasil pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992). Ambas as Convenções trazem em seu texto o direito do indivíduo à nacionalidade.
A necessidade de tal assertiva decorre do fato de que, em um passado não tão distante, a privação da nacionalidade foi utilizada como um meio para promover perseguições a determinados grupos que, sem um Estado que pudesse fornecer a eles proteção diplomática, foram vitimados em momentos de grave crise política ou social. Exemplo disso ocorreu durante a Guerra Civil Russa, em 1921, ou durante a Segunda Guerra Mundial, quando milhares de deslocados internamente se viram destituídos de sua nacionalidade de maneira arbitrária e sem que qualquer tipo de proteção jurídica estivesse disponível a eles.
Naquele momento, a necessidade fez com que ferramentas fossem criadas em defesa destes grupos, a exemplo do Passaporte Nansen, que permitia que apátridas e refugiados obtivessem a proteção de Estados.
Em consonância com a importância que a nacionalidade representa para a própria dignidade do indivíduo, a Constituição da República de 1988 traz, em seu Capítulo III, as noções vigentes no país acerca do tema, dividindo os brasileiros em natos e naturalizados.
Os brasileiros natos (art. 12, I da CR/88) possuem nacionalidade originária, ou seja, esta é involuntária e decorre de fatos que não dependem da vontade do indivíduo, como o local do nascimento, a nacionalidade dos pais ou critérios particulares dos Estados à época do nascimento (Muzzuoli, 742). Convém ressaltar que o Brasil adota o critério do jus solis (art. 12, I, a da CR/88), segundo o qual se consideram brasileiros natos “os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;”. No entanto, também é previsto na Constituição Federal o uso do critério do jus sanguinis (art. 12, I, b e c):
“Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira;”
Já os brasileiros naturalizados (art. 12, II da CR/88) adquirem a nacionalidade (derivada) por um ato de vontade própria, não sendo esta imposta pelo Estado e dependendo exclusivamente do desejo do próprio indivíduo em adquiri-la após cumprir os critérios exigidos pelo país.
Em que pese o artigo 12, § 2º, da Lei Maior, expressamente determine o tratamento isonômico dos nacionais natos e naturalizados, a própria Constituição apresenta alguns pontos em que os brasileiros natos possuem algumas prerrogativas além daquelas reservadas aos naturalizados (art. 12, §3 da CR/88), a exemplo da obrigatoriedade de que alguns cargos sejam privativos de brasileiros natos.
Estas condições se fazem necessárias em áreas consideradas estratégicas ou de interesse nacional, como no caso da ocupação dos cargos mais relevantes do Estado, a exemplo do Presidente da República ou Oficial Superior das Forças Armadas. Nestes casos, o acesso ao tratamento de questões sensíveis do Estado justifica a restrição, aplicável inclusive em legislações de diferentes países.
Noutro giro, no tocante aos portugueses residentes no Brasil, o §1º, do art. 12 da Constituição garante-lhes os mesmos direitos extensíveis aos brasileiros, desde que haja reciprocidade por parte da nação portuguesa. No entanto, mantém-se a limitação acima mencionada pelos já citados motivos.
3. O ESTRANGEIRO
Para o ordenamento jurídico brasileiro, estrangeiro é todo aquele que não se enquadra nas condições constitucionalmente previstas. Conforme Mazzuoli, considera-se estrangeiro “quem, de acordo com as normas jurídicas do Estado em que se encontra, não integra o conjunto dos nacionais deste Estado” (2015, p. 782). Pode-se separar os estrangeiros entre residentes e não-residentes, sendo que os primeiros são aqueles a quem a nova lei se destina, em especial.
A este grupo se destina a Lei 6.815/80, mais conhecida como Estatuto do Estrangeiro, que regula como ocorre a entrada do estrangeiro no Brasil, bem como seus direitos e deveres quando em território nacional.
No Brasil, em condições normais de paz e uma vez cumpridas as exigências da Lei 6.815/80, qualquer estrangeiro pode entrar, permanecer no território brasileiro ou dele sair, desde que resguardados os interesses nacionais (art. 1º).
Como previsto na Convenção de Direito Internacional Privado de 1928 – também conhecida como Código de Bustamante, os estrangeiros dos países signatários gozam dos mesmos direitos civis que os nacionais daqueles países, com exceção das questões de interesse nacional e de ordem pública.
De forma geral, os Estados possuem autonomia para aceitar ou não estrangeiros. No caso do Brasil, esta autonomia é prevista e autorizada na Constituição Federal, artigo 22, XV, que estabelece ser competência privativa da União legislar sobre as regras referentes à emigração, imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros no país.
4. O PLS 288 / 2013
Feitas estas ponderações, ao se analisar o PLS 288/2013 – que substituirá a Lei 6.815/80, é possível perceber que não há que se falar em mitigação da soberania ou mesmo comprometimento da segurança nacional ou da condição dos nacionais brasileiros. No caso, trata-se de uma tentativa de atualizar as noções de Direito interno acerca do tratamento do estrangeiro e o respeito aos direitos humanos e ao direito humanitário nacional, deixando o país em consonância com as mais modernas posições que tratam do tema.
Verifica-se que o texto aprovado (PLS 288/2013) traz inovações, ampliando a proteção ao refugiado, complementarmente ao previsto pela Lei 9.474/97 (Estatuto dos Refugiados). Estabelece ainda os princípios pelos quais deve se pautar a política migratória brasileira, a exemplo dos Direitos Humanos, o repúdio à xenofobia, ao racismo, e estabelece que a imigração, como garantia fundamental do indivíduo, não deve ser criminalizada (art. 3º, do Projeto).
Uma das polêmicas suscitadas por aqueles que são contra o projeto é de que a nova lei facilitaria a entrada e permanência de estrangeiros criminosos no país, ideia que não se ajusta aos ditames da nova norma. Veja-se que, diferentemente da legislação atual em vigor, o PLS 288/2013 torna o asilo ato discricionário do Estado, além de exigir que aquele que pleiteia tal condição “não tenha cometido crime de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão, nos termos do Estatuto de Roma, de 1998” (art. 23 do PLS 288/2013).
Além dessa salvaguarda, há de se observar que a Seção II do PLS 288/2013 traz as diversas prescrições para a entrada de qualquer estrangeiro no Brasil: a possibilidade de proibição de entrada de pessoa anteriormente expulsa no país, condenada ou mesmo respondendo a processo por ato de terrorismo ou por crimes previstos pelo Estatuto de Roma; que esteja condenada ou simplesmente respondendo processo por crime doloso, passível de extradição, nos termos da legislação brasileira; que tenha o nome incluído em lista de restrições por ordem judicial ou por compromisso assumido pelo Brasil perante organismo internacional (art. 45, do PLS).
O Projeto estabelece ainda o conceito de Residente Fronteiriço, que é o indivíduo natural de outro Estado que habita em região fronteiriça e que, uma vez reconhecidas e identificadas, poderão ser mais facilmente controladas e ter seus direitos e deveres observados quando em território brasileiro. Trata-se também de um fator fundamental para a garantia da soberania nacional.
Assim, observado com mais cuidado, o PLS 288/2013 figura como uma norma que aumenta a capacidade do país em exercer sua soberania e garantir a segurança de seu território bem como daqueles que nele se encontram (nacionais ou não). É também uma maneira de oferecer segurança jurídica àqueles que se encontram em situação de risco, decorrente de refúgio, bem como da numerosa população de imigrantes no Brasil, que hoje é de cerca de 3 milhões de pessoas.
Dito isso, não deixa de chamar a atenção o caráter humanitário da nova norma, que se alinha às diversas convenções que reconhecem a situação de fragilidade daqueles que abandonam seus Estados de origem e migram – por qualquer razão que seja, para diferentes Estados, onde são submetidos a uma cultura e a valores diferentes dos seus.
5. CONCLUSÃO
Diferentemente do que vem sendo propagado, o PLS 288/2013 não figura como uma ameaça à soberania do Brasil. Também não aparece como uma norma que coloca em risco os nacionais, uma vez que põe à disposição destes ferramentas modernas e em harmonia com os princípios de Direito Internacional que regem a matéria.
Convém ressaltar ainda que o texto do PLS traz ainda mais segurança jurídica, sobretudo no tocante aos brasileiros naturalizados, que são objeto de tratamento minucioso no Capítulo VII do PLS. Há, neste caso, detalhamento das condições de aquisição e perda da nacionalidade destes indivíduos em observância ao disposto no regramento dos Direitos Humanos, diferentemente do que ocorre atualmente com a Lei 8.615/80.
Assim, a intenção maior do PLS não é permitir a entrada desordenada e sem critério de estrangeiros, mas regulamentar o acesso em consonância com os regramentos internacionais de cooperação a que o Brasil está vinculado. Não deve o país, portanto, fechar as portas ou dificultar a entrada daqueles que buscam refúgio, segurança e melhores condições de vida.
Imperioso destacar que, historicamente, o Brasil já foi o país de destino de muitos imigrantes, sendo hoje formado basicamente por povos originários de outros Estados. No mesmo sentido, atualmente há um fluxo emigratório de brasileiros em busca de países mais desenvolvidos. Em outras palavras, a soberania de um Estado permite-lhe regulamentar o acesso de nacionais de outros países, viabilizando o ingresso e permanência destes, sem que tal ato represente uma diminuição de seu poderio interno ou mesmo no comprometimento das condições de seus nacionais.
Ademais, os fluxos migratórios representam uma realidade em um mundo globalizado, não se admitindo que a legislação brasileira permaneça na contramão das modernas concepções acerca do assunto, sobretudo quando o resguardo de direitos de indivíduos em trânsito repousa nas noções de dignidade e proteção à pessoa humana, pilares hoje do Direito Internacional.
6. BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Constituição,1988.
BRASIL. Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980.
BRASIL. Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.
Brasil. Lei 9.474, de 22 de julho de 1997.
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Último acesso: 20/05/2017.
MAZZUOLI. Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª Ed. São Paulo. Revista dos Tribunais
Projeto de Lei do Senado nr. 288/2013.