1 INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda questões atinentes à autonomia corporal do transexual, levando-se em conta as implicações no Ordenamento Jurídico, visto que os indivíduos transexuais desejam sua readaptação ao meio social, independentemente de terem ou não se submetido à cirurgia de transgenitalização. A exigência médica que constata o transtorno da identidade sexual deve ser superada, devendo este diagnóstico ser transferido para o próprio transexual que sofre com a sua condição, a fim de que ele mesmo decida se quer ou não se submeter à cirurgia de redesignação sexual e, independentemente da sua decisão, tenha seu nome e sexo alterado.
A questão relaciona-se à sexualidade do transexual, portando, percebeu-se a necessidade de esclarecer o significado de sexualidade, de que forma a sexualidade é tratada pelos diferentes ramos da ciência, e o que a própria sociedade entende por sexualidade. Estes são fatores ainda obscuros no âmbito jurídico e que merecem uma análise e um desenvolvimento adequado, devendo respeitar o Direito da Personalidade e, consequentemente, a Dignidade da Pessoa Humana.
Objetiva-se demonstrar que a cirurgia de redesignação sexual não deve servir como fator de decisão para que o transexual tenha o direito de alterar seu nome e sexo em registros civis. Dai por que são importantes também conceituar Parte, Legitimidade e Capacidade jurídica e indicar dentro da relação processual referente à mudança de nome do transexual quem são os sujeitos. E, assim, evidenciar também os princípios da autonomia da vontade e justiça do transexual, postergados por um raciocínio jurídico desatualizado, que determina o tipo de sociedade vigente: uma sociedade individualista e desigual, o que destoa da pretensão de um Estado legitimador do direito a todas as pessoas de desenvolver livremente sua cidadania, com importância à liberdade corporal, garantindo isonomia entre seus cidadãos.
Um trabalho com essa temática incentiva o universo acadêmico, no mercado profissional jurídico e na sociedade de um modo geral, a refletir sobre como contribuir para amenizar a discrepância discriminativa existente entre os grupos sociais, ou seja, a qualquer indivíduo que não se coadune aos padrões projetados pela sociedade, no caso em questão, os transexuais, relegados à margem da sociedade. Esse fator denota o quanto é ferido o direito à isonomia inerente a cada ser humano, um dos fundamentos do constitucionalismo moderno. O “Direito” aplicado pelo Poder Judiciário deve esforçar-se ao máximo para equacionar as diferenças sociais, econômicas, morais, religiosas e políticas garantindo a liberdade, solidariedade, dignidade e efetiva cidadania.
2 TRANSEXUALISMO VERSUS TRANSGENITALISMO.
Considerado transtorno de identidade sexual ou como doença/problema relacionado à saúde psicológica de um indivíduo, o transexualismo foi conceituado internacionalmente pela Organização Mundial de Saúde e incluído no Código Internacional de Doenças (CID – 10), exposto no artigo “Direito à identidade: o transexual e sua autonomia corporal. Instituto Brasileiro de Direito de Família”[1], como:
Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência ao seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível, quanto ao sexo desejado.
De acordo com Stamatis, o transexual pode ser definido como:
Um indivíduo que não se identifica psicologicamente com o seu próprio corpo. A sua sexualidade psíquica difere do seu sexo anatômico desde as características primitivas até as secundárias. E isso provoca um desconforto com o seu gênero biológico que o indivíduo procura uma forma de adequar o seu corpo à sua personalidade por meio de tratamentos que, em grande parte, resultam em uma cirurgia de redesignação sexual” (STAMATIS, 2013).
Em coaduna, o artigo “Transexual consegue mudar registro sem cirurgia”[2] distingue o transexual primário do secundário. O transexualismo primário, também chamado de esquizossexualismo ou metamorfose sexual paranóica, compreende aqueles pacientes cujo problema de transformação do sexo é precoce, impulsivo sem desvios significativos para o transvestismo ou homossexualismo. O transexualismo secundário ou homossexuais transexuais são aqueles que se denominam transexuais somente para manter períodos de atividades homossexuais ou de transvestismo.
Insta ressaltar que a situação do transexual não se confunde com a do homossexual (que tem atração sexual por pessoas do mesmo sexo) ou do bissexual (que tem atração por pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto, de forma concomitante) e nem a situação do hermafrodita, aquele que tem dupla manifestação sexual (TARTUCE, 2013, pág. 174). O transexualismo é reconhecido por entidades médicas como sendo uma patologia, pois a pessoa tem “um desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição ao fenótipo e tendência à automutilação e ao autoextermínio (Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina)" (TARTUCE, 2013, pág. 171).
Nesse passo, o Conselho Federal de Medicina, como o órgão responsável pela regulamentação da cirurgia de transgenitalização no Brasil, define o transexual como aquele “paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ao auto-extermínio”[3]. Ou seja, o transexual é o indivíduo que não se identifica com o seu sexo biológico e tem desejo de possuir o sexo oposto e o transgenitalizado é aquele indivíduo que possuindo esses desejos, faz/fez uma cirurgia para mudança de sexo.
2.2 PARTES, LEGITIMIDADE E CAPACIDADE JURÍDICA DOS SUJEITOS DA RELAÇÃO PROCESSUAL CONCERNENTE À MUDANÇA DE NOME DO TRANSEXUAL.
A presença do Estado a distribuir e declarar o direito no processo é que enquadra o direito judiciário no campo do direito público (LACERDA, 2006, pág. 98). O Estado deve solucionar o pedido do autor, pró ou contra, é o dever de prestar a jurisdição[4], pois existe do outro lado o direito de pedir a jurisdição (LACERDA, 2006).
A relação jurídica do processo é uma relação trilateral sob o ponto de vista esquemático, no qual o autor dirige o pedido ao juiz, que figura no processo como representante do Estado, para que se pronuncie a seu favor e, ao mesmo tempo, condene o réu (LACERDA, 2006). No entanto, dentro de outro paradigma, o processo é um feixe de relações, não apenas das partes com o juiz, mas também com os serventuários da justiça, as testemunhas, etc., todas relações de ordem pública, distintas da relação privada (LACERDA, 2006, pág. 101).
Em consonância, Cintra, Grinover e Dinamarco (2013, pág 326) dizem que o processo necessariamente apresenta pelo menos três sujeitos: o autor e o réu, nos polos contrastantes da relação processual, como sujeitos parciais; e, como sujeito imparcial, o juiz, representando o interesse coletivo orientado para uma justa resolução do litígio. Logo, o juiz como sujeito imparcial é investido de autoridade para dirimir a lide e o autor e réu são os principais sujeitos parciais do processo, sem os quais não se completa a relação jurídica processual (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 327).
Autor é aquele que deduz em juízo uma pretensão e réu, aquele em face de quem aquela pretensão é deduzida (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 328). Existem também nomes genéricos capazes de designar todas essas situações, são demandante e demandado (aquele que apresenta uma demanda em juízo e aquele em relação ao qual a demanda foi apresentada) (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 328).
O demandante e o demandado no processo são disciplinados de acordo com três princípios básicos:
a) o princípio da dualidade das partes, segundo o qual é inadmissível um processo em que haja pelo menos dois sujeitos em posições contrárias, pois ninguém pode litigar consigo mesmo; b) o princípio da igualdade das partes, que lhes assegura paridade de tratamento processual, sem prejuízo de certas vantagens atribuídas especialmente a cada uma delas, em vista exatamente de sua posição no processo; e c) o princípio do contraditório, que garante às partes a ciência dos atos e termos no processo, com a possibilidade de impugná-los e com isso estabelecer autêntico diálogo com o juiz (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 328).
Em linhas gerais, o transexual demanda sua pretensão de retificação da identidade civil ao Estado juiz, que tem o dever de prestar a jurisdição, frente ao demandado, o Estado. Contudo, há situações em que a lei permite ou reclama o ingresso de um terceiro no processo, embora já estabelecida à relação processual de acordo com o esquema subjetivo mínimo (juiz-autor-réu) (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013).
As modalidades de intervenção de terceiros reconhecidas no direito positivo, seja para substituição a uma das partes, seja em acréscimo a elas, de modo a ampliar subjetivamente aquela relação, são heterogêneas e díspares (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 329). Assim sendo, a intervenção de um terceiro, a atuação médica, no processo de retificação da identidade civil do transexual se dá pela denunciação da lide ou pelo chamamento ao processo, que são meios pelos quais uma das partes traz o terceiro ao processo com vistas a obter uma sentença que o responsabilize (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 329).
Para que uma lide possa ser causa legítima da relação processual, ou seja, para coexistência de um litígio, é indispensável que se apresente três requisitos, denominados “condições da ação”, constituindo a causa, o título, dessa relação (LACERDA, 2006). São “condições da ação” a
1) Possibilidade jurídica do pedido: Embora o juiz afinal julgue improcedente a ação proposta, bastam para que se instaure o processo, que o pedido do autos seja possível em tese; 2) Legitimação para a causa: Não é suficiente ser o pedido juridicamente possível. É indispensável à legitimação para a causa, isto é, mister se faz que as partes sejam legitimadas pela lei, para pleitear o objeto[5] pedido. Assim, por exemplo, somente o marido pode propôr ação para contestar a legitimidade do filho de sua mulher. Qualquer outra pessoa não poderá fazê-lo; 3) Interesse legítimo para o pedido: Para haver interesse é necessário que haja também um litígio atual ou iminente. É indispensável que o bem tenha valor razoável para movimentar a máquina jurisdicional (LACERDA, 2006, pág. 105).
Cintra, Grinover e Dinamarco (2013, pág. 288) denominam “condições da ação” como condições para que legitimamente se possa exigir, na espécie, o provimento jurisdicional. A observância das condições da ação deve-se ao princípio de economia processual, senão, não poderá ser concedida, a atividade estatal será inútil, devendo ser imediatamente negada (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 288).
Do mesmo modo como Lacerda (2006), Cintra, Grinover e Dinamarco (2013) também determinam condições para que se possa exigir legitimamente o provimento jurisdicional. Dentre as possibilidades estão:
i) A possibilidade jurídica do pedido: determinado pedido deve ser apreciado pelo Poder Judiciário e previsto no ordenamento jurídico sem qualquer consideração das peculiaridades do caso concreto que o exclua; ii) O interesse de agir: não convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. Tem que haver a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a intercessão do Estado e também uma Adequação, ou seja, uma relação existente entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento[6] jurisdicional concretamente solicitado; e iii) A legitimidade ad causam: regra prevista do Código de Processo Civil, expressamente no art. 6º- “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Assim, em princípio, é titular da ação apenas a própria pessoa que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva) (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, págs. 288 à 290).
Além desses elementos, existem outras circunstâncias externas e que se justapõem à relação, para que a relação jurídica processual seja válida, são os pressupostos processuais (LACERDA, 2006, pág. 106). Os pressupostos não são propriamente integradores como a causa, mas a lei os exige para que o ato jurídico tenha eficácia (LACERDA, 2006, pág. 107).
Os pressupostos processuais subjetivos para as partes é a capacidade civil e para o juiz, serão a insuspeição e a competência (LACERDA, 2006, pág. 106). É necessário que as partes sejam dotadas da faculdade de exercer por si mesmas os atos da vida civil e indispensável que o juiz, além de sua capacidade, capacidade jurídica inerente à função que exerce, seja competente para aquela determinada ação (LACERDA, 2006, pág. 108).
É mister que exista a capacidade para ser parte, coincidente com a capacidade de ser titular de direitos e obrigações na ordem civil (LACERDA, 2006, pág. 111). Assim, a capacidade processual ou legitimidade processual possui todo aquele que tem a faculdade civil, que é capaz de acordo com a lei civil (LACERDA, 2006, pág. 112).
Tartuce (2013) diferencia capacidade de direito ou de gozo de capacidade de fato ou de exercício como sendo
Capacidade de direito ou de gozo é aquela comum a toda pessoa humana, inerente à personalidade, e que só se perde com a morte prevista no texto legal, no sentido de que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1.º do CC); Capacidade de fato ou de exercício é aquela relacionada com o exercício próprio dos atos da vida civil (TARTUCE, 2013, pág. 125).
A par disso, são absolutamente incapazes:
a) os menores de 16 (dezesseis) anos; b) Pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil; e c) Pessoas que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Relativamente incapazes: a) maiores de 16 anos e menores de 18 anos; b) os ébrios habituais (aqueles que têm a embriaguez como hábito, no sentido de ser um alcoólatra), os taxicômanos (viciados em tóxicos), e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos (TARTUCE, 2013, págs. 126 à 131).[7]
Os pressupostos objetivos extrínsecos à relação processual é a inexistência de fatos impeditivos, ou seja, que impossibilitem a formação do ato jurídico, da relação jurídica válida para os efeitos do processo (LACERDA, 2006, pág. 109). Já nos pressupostos objetivos intrínsecos à relação processual, é necessário que os atos processuais obedeçam à forma e aos requisitos legais (LACERDA, 2006, pág. 109).
Destarte, para que tenha legitimação para a causa/qualidade, é indispensável à capacidade para ser parte e a legitimação processual/capacidade processual e, que as partes sejam representadas no processo por profissional devidamente habilitado[8] (LACERDA, 2006). A legitimação para a causa diz respeito à vinculação do sujeito ao objeto e, sendo a capacidade um pressuposto que se refere ao sujeito, sem nenhuma vinculação com o objeto, o sujeito pode ser capaz, mas não pode pretender nada em relação ao bem (LACERDA, 2006, pág. 113).
Portanto, ao vislumbrar o que foi exposto sobre “condições da ação” e pressupostos da relação processual (e o que demonstrará o tópico em seguida), é notório que o Estado não considere impossível a existência do provimento jurisdicional para alteração do nome do transexual. Haja vista, que não é possível tal retificação, com resultado satisfatório para o transexual, sem que ocorra a tutela jurisdicional, sem a intercessão do Estado, exaurindo a situação lamentada pelo autor da lide (o transexual). O processo é legal de acordo com os pré-requisitos, sendo o transexual dotado de capacidade civil plena, portanto, possui capacidade processual. A crítica pertinente é a cirurgia de transgenitalização como único meio para o processo de retificação da identidade civil.
2.2.1 A IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA FÍSICA, DIREITO DA PERSONALIDADE E SUA POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO.
Leite (2011) retrata a noção de personalidade jurídica dos seres humanos com a ideia de titularidade, ou seja, de ser como aquele titular de direitos e obrigações de direito subjetivo como direito individual. Em síntese, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade (art. 1.º, III/ CF/1988) e que são inatos, ilimitados, absolutos, intransmissíveis, indispensáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis (TARTUCE, 2013, págs. 142, 148, 154,156, 158 e 161).
O nome integra a personalidade por ser o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade; daí ser inalienável, imprescritível e protegido juridicamente (CC, arts. 16, 17, 18 e 19; CP, art 185) (DINIZ, 2002, pág. 201). Maria Helena Diniz retrata sobre o aspecto público do direito ao nome e diz que essa característica
decorre do fato de estar ligado ao registro da pessoa natural, pelo qual o Estado traça princípios disciplinares do seu exercício, determinando a imutabilidade do prenome, salvo exceções expressamente admitidas, e desde que suas manifestações sejam precedidas de justificação e autorização de juiz togado (DINIZ, 2002, pág. 202).
Em regra, Diniz (2002) aponta como sendo dois os elementos constitutivos do nome de um indivíduo:
o prenome, próprio da pessoa, e o patronímico, nome da família ou sobrenome, comum a todos os que pertencem a uma certa família (CC, art. 16) e, às vezes, tem-se o agnome, sinal distintivo que se acrescenta ao nome completo (filho, júnior, neto) para diferenciar parentes que tenham o mesmo nome (DINIZ, 2002, pág. 203). [...] O prenome pode ser simples (João, Maria) ou composto (José Antônio, Maria Amélia) e pode ser livremente escolhido, desde que não exponha o portador ao ridículo, caso em que os oficiais do Registro Público poderão recursar-se a registrá-lo (DINIZ, 2002, pág. 204). [...] O sobrenome é o sinal que identifica a procedência da pessoa, indicando sua filiação ou estirpe, sendo, por isso, imutável, podendo advir do apelido de família paterno, materno ou de ambos (DINIZ, 2002, pág. 204).
Embora o princípio da inalterabilidade do nome seja de ordem pública (DINIZ, 2002), a alteração do nome mediante ação específica, cuja sentença deve ser registrada no cartório de registro das pessoas naturais, pode ocorrer nos seguintes casos:
1) Substituição do nome que expõe a pessoa ao ridículo ou a embaraços, inclusive em casos de homonímias (nomes iguais); 2) Alteração no caso de erro de grafia, perceptível de imediato; 3) Adequação de sexo, conforme entendimento jurisprudencial transcrito; 4) Introdução de lacunas ou cognomes; 5) Introdução de nome do cônjuge ou convivente; 6) Introdução do nome do pai ou da mãe, havendo reconhecimento posterior de filho ou adoção. 7) Havendo coação ou ameaça decorrente da colaboração com apuração de crime (proteção de testemunhas), nos termos da Lei 9.807/1999; etc. (TARTUCE, 2013, págs. 177 e 178).
3 DESCOMPASSO ENTRE O ESTADO ENQUANTO ENTE JURISDICIONAL E COMO PARTE DO PROCESSO E O DIREITO A IDENTIDADE CIVIL DO TRANSEXUAL RELACIONADO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
A Constituição de 1988, no Título I, trata dos princípios fundamentais e demonstra no art. 1º inciso II e III, a valorização da cidadania e da dignidade da pessoa humana, princípios básicos da República Federativa. Destarte, esse ordenamento jurídico tem por obrigação amparar o desenvolvimento da personalidade transexual, haja vista, que são sujeitos de direitos, são pessoas, porque nasceram com vida equivalente a qualquer outro indivíduo que não tiver ido a óbito. Portanto, de acordo com os princípios fundamentais da Constituição Federal, no art. 5º, devem ser garantidos seus direitos individuais e coletivos, no art. 6º a garantia dos direitos sociais do indivíduo e o art. 196 promove o direito à saúde física e psíquica.
Nesse passo, Michelle (2012) retrata o nome civil como o sinal de individualização mais visível no meio social e diz que é a partir dele que o seu detentor pode ser identificado no âmbito familiar e social. Por conseguinte, o nome civil da pessoa transexual deveria ser retificado sem que houvesse necessidade da transgenitalização, haja vista que na maioria dos casos, os indivíduos passam por situações vexatórias e têm vergonha de se expor em público por não se identificarem com seu nome[9]. O Estado, a parte demandada da relação processual de alteração do nome, deveria prestar tal jurisdição, garantindo ao demandante que fossem assegurados seus direitos resguardos por princípios constitucionais e, consequentemente, retificar o registro de identidade do transexual (demandante) sem que houvesse necessidade da cirurgia de transgenitalização, haja vista que de imediato, por seu nome não se adequar a sua feição, é exposto ao ridículo e muitas vezes a situações vexatórias.
No mesmo artigo anteriormente citado (Direito à identidade: o transexual e sua autonomia corporal. Instituto Brasileiro de Direito de Família), afirma que no Brasil os requisitos para a cirurgia de transgenitalização estão presentes na Resolução nº. 1.955/10 que revogou a Resolução nº. 1.652/02 expedida pelo Conselho Federal de Medicina. Conforme o artigo 3º deste diploma, a definição de transexualismo deverá obedecer alguns critérios:
Desconforto com o sexo anatômico natural; Desejo expresso de eliminar os órgãos genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo dois anos; e Ausência de outros transtornos mentais.
Além disto, o Conselho Federal de Medicina diz que a seleção dos pacientes deverá obedecer a uma avaliação por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, que deverá acompanhar o paciente por dois anos. A seleção deverá obedecer alguns critérios: 1) diagnóstico médico de trangenitalismo; 2) maior de 21 anos; 3) ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia, conforme preceitua o artigo 4º da Resolução nº. 1.955/10. Diante disso, a função terapêutica da intervenção médica é compreendida para fundamentar a maioria das decisões de alteração de nome e sexo na tentativa de abranger tanto o bem-estar físico quanto psíquico da pessoa transexual[10].
Juliano de Paula Dias em seu artigo “O transexual operado poderá retificar seu registro de nome e sexo?”[11] fala que no registro civil, o nome civil denomina características da pessoa, assim, ao se pronunciar o nome, é possível se imaginar o sexo da pessoa. E com a mesma linha de raciocínio, Martins (2012) diz que o registro tem que se adequar a alteração do nome e da identidade sexual, pois são princípios da dignidade da pessoa humana[12].
3.3 OS DIREITOS SUBJETIVOS ATUAIS DO TRANSEXUAL INSERIDOS EM UMA SOCIEDADE MORALISTA E INDIVIDUALISTA COMO UMA EXPECTATIVA DE DIREITO, UM DIREITO EVENTUAL OU CONDICIONAL.
Como a jurisdição é função estatal e o seu exercício dever do Estado, não pode o juiz eximir-se de atuar no processo, desde que tenha sido adequadamente provocado: no direito moderno não se admite que o juiz lave as mãos e pronuncie o non liquet diante de uma causa incômoda ou complexa, porque tal conduta importaria evidente denegação de justiça e violação da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (Const., art. 5º, inc. CCCV, e CPC, art. 126) (CINTRA, GRINIVER e DINAMARCO, 2013, pág. 327).
No Brasil não existe lei que trate especificamente da alteração do nome e do sexo do transexual no registro civil, tendo ou não havido a cirurgia de transgenitalização. Influenciando na dificuldade de resolução de problemas enfrentados pelos transexuais marginalizados no meio contemporâneo. Utilizam-se analogias, costumes e princípios gerais de direito (art. 126, CPC); o juiz exerce função de legislador diante a questões relacionadas ao transexualismo, visto que o poder legislativo ainda “não é capaz de acompanhar com a mesma velocidade o desenvolvimento tecnológico e social”. E complementando seu pensamento, Michelle (2012) diz ser importante a “concepção ampla do juiz sobre a norma positiva, a fim de alcançar a tão almejada justiça”, pois é fazendo uso desses métodos que os processos de retificação do prenome do sexo do transexual no registro civil vêm acontecendo[13].
Questões relacionadas ao transexualismo estão diretamente ligadas a discussões com valores morais, valores éticos e costumes de um Estado. Existindo “uma pressão contrária ao verdadeiro desejo do indivíduo transexual, não só o primário, mas principalmente, o transexual secundário que nem sempre consegue se definir por causa desta pressão”[14].
As pessoas que não correspondem ao traçado pela sociedade, são excluídas do seu convívio. Incompreendidos pela família, são humilhados e considerados uma anomalia no meio social. Encontram muitos obstáculos para conseguir um emprego formal, haja vista que muitos deles não possuem documentos adequados ao seu fenótipo. Fatores que influenciam em mudança total de vida, com a perda de uma carreira acadêmica[15].
A religião também tem grande influência na exacerbação desse preconceito a oprimir os transexuais, devido a maioria da população atual ser cristã. Tal influência é demonstrada a seguir em trecho do Livro Cristão, a Bíblia, e que atinge com foco aos transexuais secundário: É por isso que o homem deixa seu pai e a sua mãe para se unir com a sua mulher, e os dois se tornam uma só pessoa. Tanto o homem como a sua mulher estavam nus, mas não sentiam vergonha. (Gênesis 2: 24-25).
O Estado deve assegurar aos seus indivíduos o completo exercício da cidadania, os direitos fundamentais inerentes à condição humana, independentemente da existência ou não de norma específica. Não cabe ao Estado impedir o pleno desenvolvimento do indivíduo, de se identificar pelo gênero de sua orientação, proibindo-o de se identificar por este ou aquele gênero, pois se trata de direitos fundamentais inerentes a condição humana. E sim é dever do Estado fazer com que o transexual não viva em ”expectativa de direito” por muitos anos vindouros, ou seja, que o poder executivo se adeque a realidade social e sancione leis que ampare esses indivíduos.
4 CONCLUSÃO.
Resta-nos pontuar que a identidade sexual se determina no ato do nascimento do cidadão de Direitos, ou seja, através da genitália feminina ou masculina. No entanto devido a um problema genético, alguns seres humanos nascem com um conjunto de órgãos atinentes a um sexo, enquanto mentalmente sentem e agem de forma divergente a este.
A Constituição diz garantir os Direitos do cidadão. Não seriam todos os cidadãos? Onde está a isonomia? Aquele indivíduo não satisfeito com o seu corpo que diverge sua aparência externa do ser interno, psicologicamente falando, não possui amparo legal para ser feliz. Então, se espera a devida atuação do Estado e do poder Legislativo para que elaborem leis, fazendo com que o indivíduo transexual não permaneça na expectativa prolongada de um “direito eventual ou condicional”.
Pautado no exposto, podemos sinalizar que o ser humano, independente de cor, raça ou sexo a que ele pertença, física ou psicologicamente, trata-se de um ser de Direitos. Direitos que devem resguardar sua integridade física e moral, garantidos e assegurados pela Constituição.
Infelizmente vivemos em uma sociedade preconceituosa que ainda caminha a passos lentos junto aos avanços da era da globalização e da resistência à aceitação de mudanças nos costumes arraigados ao longo dos anos. O indivíduo para mudar sua identidade sexual condizente ao sentimento pessoal, poderia ser submetido a relações processuais menos complexas, pois existe o livre arbítrio que comanda cada cidadão e todas as outras questões citadas ao longo do trabalho.
Nesse contexto, tento em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988 e diante de todo o exposto nesse trabalho, o indivíduo transexual por ser plenamente capaz e preencher todos os outros requisitos pertinentes as “condições da ação” e “pressupostos das relações processuais”, está apto para demandar contra o Estado no processo de retificação de identidade civil, tornando a lide legítima, sem que haja necessidade da cirurgia de redesignação.
Neste sentido, o equilíbrio deve fundar-se na razoabilidade para que nem o bem individual nem o coletivo sejam lesionados. Mais do que isto, deve-se pensar no indivíduo como ser social que pretende desenvolver plenamente suas convicções, objetivando-se com isto alcançar a tão almejada justiça.
REFERÊNCIAS
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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria geral do Direito Civil. 23ª edição. Editora Saraiva, 2002.
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LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
LEITE, Gisele. Novo Conceito de Sujeito de Direito. Administradores- O Portal da Administração. Artigos. 4 de setembro de 2011. Disponível em: < http://www.administradores.com.br/artigos/administracao-e-negocios/novo-conceito-de-sujeito-de-direito/58014/> Acesso em: 23 de maio de 2013.
TARTUCE, Flávio. DINIZ, Maria Helena: prefácio. Direito Civil, 1: Lei de Introdução e Parte Geral. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
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SÁ, Maria de Fátima Freire. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos, incluindo o estudo da Lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela Lei n. 10.211/01. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
STAMATIS, Carolina Dias Lopes . Transexualismo e as relações jurídicas. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7802/Transexualismo-e-as-relacoes jurídicas>. Acesso em: 05 out. 2013.