Na Antiga Grécia, os cidadãos debatiam sobre os rumos da pólis. A vida seguia: os atenienses eram o centro do mundo; os modos de viver dos atenienses eram superiores, assim como seus deuses.
Porém, um 'chato', 'um intrigador', 'um perversor' das tradições atenienses. Eis Sócrates. Por não saber nada, procurava conhecer a verdade. Através e suas perguntas sem fim, Sócrates indagava os atenienses sobre o que é belo, bom, justo, injusto, felicidade, cidade perfeita.
E se Sócrates pudesse ser clonado? Se ele estivesse, p. Ex., no Brasil. Alguns diálogos:
— Pega ladrão! — grita uma pessoa que teve seu celular roubado na via pública.
— É um horror isso — diz Sócrates.
— Sim senhor. E olha que custou caríssimo. Tive que trabalhar muito.
— Mas lhe pergunto, o que é roubar? — indaga Sócrates.
— Está brincando, homem! É meu direito ter o celular, já que trabalhei e consegui com meritocracia. Comprei o celular na loja, Está tudo dentro da lei.
— Então é direito seu ter o celular, portanto comprou obedecendo às leis. Diga-me caro cidadão, de qual local do orbe as matérias primas vieram? Quem produziu o celular? A produção não acarretou danos ao meios ambiente? Não teve trabalho análogo ao escravo?
— Sócrates, por que tanta indagação? Não quero saber nada disso. Só quero saber de meu celular. Tenho pleno direito sobre o celular, já que consegui com meritocracia.
— Por favor — inquiri Sócrates —, o que é meritocracia?
— É a autonomia da vontade. É por ela que cada ser humano tem o direito de possuir, pelos próprios esforços pessoais o que bem quiser, desde de que não faça mal a outro ser humano.
— Diga, bom homem — Sócrates busca a razão —, se a meritocracia é não fazer mal a outro ser humano, como fica o cidadão de outro país que trabalha em condições análogas à escravidão? A flora e a fauna do país que tem a transnacional agindo destruindo elas?
— Sócrates — retruca a pessoa que se sente lesada pelo roubo de seu celular —, eu não tenho nenhuma obrigação moral e ética com o que se passa em outros países. Só sei que aqui trabalho honestamente e comprei o celular com os frutos de meu esforço. E está tudo de acordo com as leis brasileiras.
— Parece-me — Sócrates leva à reflexão — que o cidadão brasileiro se comporta como os cidadãos atenienses. Os outros povos não têm dignidade. O povo brasileiro é o centro do mundo, o belo, esteticamente, o correto, politicamente.
— Cada país cuida do que é de seu interesse — objetiva a pessoa confiante em sua resposta.
— Então a honestidade no Brasil é que cada qual consiga o que bem quiser com sua força de vontade e desde de que esteja de acordo com as normas jurídicas Pátrias. O justo, no Brasil é o cidadão que não viola nenhuma lei interna, muito menos a vida de outros concidadãos.
— Exatamente, Sócrates.
— Então — prossegue Sócrates —, o justo é fazer bem a quem é justo no Brasil. Mas não é injusto o cidadão brasileiro que não liga para o trabalho escravo no país que produziu o celular.
— Certamente, Sócrates!
— Se o injusto (má-fé) no Brasil é quem rouba o celular do justo possuidor (boa-fé) do aparelho, quem é justo merece ser protegido, assim penso.
— Exatamente, meu caro Sócrates!
— Porém, se o justo brasileiro for morar no país que tem a transnacional, ou mesmo a indústria do próprio país, no qual pratica trabalho escravo, e se o justo brasileiro for, por algum motivo, laborar em condições análogas à escravidão, não há injustiça!
— Como assim! Ficaste louco? — braveja a Sócrates — Temos que defender o justo concidadão que fora escravizado.
— Destarte, entendo que não importa em qual local se encontra o justo cidadão brasileiro. Ele merece sempre proteção por ser justo — reflete Sócrates. Mas se o cidadão brasileiro já um injusto no Brasil, então não há nenhuma defesa?
— Penso que sim. Injusto aqui deve ser condenado pela justiça. Assim deve ser também em outros países.
— Se na justiça brasileira é ser justo aos demais cidadãos, o injusto é quem viola o direito do outro concidadão. — raciocina Sócrates. Mas não é injusto o cidadão brasileiro que não quer saber do trabalho escravo de cidadão de outro país.
— Corretíssimo, meu caro Sócrates!
— Penso que ser justo ou injusto são valores ao bel-prazer dos que se acham sobre o bem ou o mal. Valores supremos dos brasileiros que se aplicam a eles mesmos. A injustiça aos outros povos não interesse aos brasileiros, assim como não interessa a injustiça ao cidadão brasileiros injusto, dentro ou fora do Brasil.
— Não entendo o que quer dizer com isso!
— Simples, meu caro. É uma conveniência de valores brasileiros, assim como dos atenienses (a. C). O que imposta é a ideologia brasileira e não a vida humana em si. As leis destituídas de humanização devem ser obedecidas pelo simples contrato social. O cidadão brasileiro justo, mesmo que roube, indiretamente, a vida de cidadão estrangeiro em condições análogas à escravidão, não é injusto. Penso que a vida em si não vale nada, mas somente o possuir. A meritocracia é justa, mesmo que seja por meios injustos— redargui Sócrates.
— Blasfema contra a minha inteligência, Sócrates. Está deturpando a meritocracia e o livre comércio. — braveja o justo cidadão que teve seu celular roubado.
— Então a meritocracia e o livre comércio não tem nada a ver com vida humana, mas somente com o possuir?
— Muito arguto Sócrates!
— Responda-me, homem justo, e se o ladrão estivesse laborando em situação análoga à escravidão, sendo este cidadão também brasileiro. — indaga, Sócrates.
— Quem escraviza um brasileiro é injusto, e deve ser condenado pela Justiça.
— Aos cidadãos justos, toda proteção da Justiça. Aos injustos, o Código Penal do Inimigo. — reflete Sócrates.
— Corretíssimo!
— Logicamente — conclui Sócrates — o assaltante é uma pessoa injusta, mas pode ser justo em seu trabalho; injusto é o empregador que escraviza. Contudo, ao roubar o celular, fruto de trabalho escravo, o homem injusto apenas está pegando a parcela justa de seu trabalho roubado. O cidadão justo, o qual teve o seu celular roubado, na verdade, não pode reclamar de nada, já que defenderá o trabalhador injustiçado.