Quando falar de Deus passou a ser pecado jurídico?

Exibindo página 1 de 2

Resumo:


  • O autor discute a polêmica envolvendo a realização de uma oração ao final de uma palestra proferida por um Procurador de Justiça.

  • Ele explora conceitos de laicidade e laicismo, refletindo sobre a liberdade de expressão e crença em espaços públicos.

  • Aborda a necessidade de ponderação e proporcionalidade ao analisar possíveis interferências na liberdade de crença alheia.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O texto examina o dever de laicidade e sua suposta ofensa em razão de uma oração feita em uma audiência pública, objeto, inclusive, de crítica por Lenio Streck. A rigor, não há enunciado normativo que traga o vocábulo “laicidade” no texto constitucional. Porém, seguramente é viável defender que o Estado brasileiro, embora não seja confessional, não é retratado na Constituição Federal como um Estado ateu nem como um juridicamente laicista, uma vez que, em seu preâmbulo, reconhece que o texto constitucional era promulgado sob a proteção de Deus.

Na última coluna publicada no Conjur, o Dr. Lenio Streck criticou, entre outros pontos, uma palestra realizada por um Procurador de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, na qual foi proferida uma oração ao término do evento. O jurista honrou-me com a colocação de um link na sua coluna que dirigia a um breve texto que fiz, não obstante tenha dele discordado.

Obviamente, não possuo o prestígio do colunista. Logo, apenas escrevo porque, muito provavelmente, meu texto sequer será lido por vários leitores de sua coluna. Assim, senti-me compelido a escrever para justificar minha posição.

O Dr. Lenio Streck adjetivou meu texto de defesa do Procurador e, sem abordar qualquer dos meus argumentos, concluiu que a conduta dele está obviamente errada sob a ótica do Direito. Sobre o contexto fático por mim descrito em meu texto, se não compreendi mal o jurista, ele afirma que haveria provas de que a palestra era, em realidade, uma pregação religiosa, além de pontuar que eu não mencionei a notificação expedida pelo Ministério Público aos pais, com o aviso de sanções em caso de ausência.

Em relação à notificação, eu deixei claro que não fiz avaliação sobre o mérito da legalidade da medida. E não fiz por um singelo motivo: intuí que a maior razão para a polêmica instaurada deu-se não pela convocação dos pais, mas porque o Procurador mencionou Deus em sua fala. Essa percepção foi compartilhada com o redator da própria reportagem mencionada pelo jurista, pois há trecho que aponta que o fato mais escandaloso no episódio foi a oração do Procurador.

No meu texto, somente relatei minha experiência de ter realizado palestras no formato de convite para falar sobre a responsabilidade dos pais nas escolas na comarca onde atuei como Promotor da Infância e da Juventude por seis anos; os pais relapsos, os que realmente precisavam estar presentes, nunca compareceram. Portanto, nunca tive êxito com palestras nesse formato. A notificação para comparecer na palestra foi assinada pela colega titular da Promotoria da Infância em Dourados, não pelo Procurador, que foi a convite dela para expor o projeto, uma vez que ele é o seu idealizador.

Até que ponto a colega Promotora é responsável pelo conteúdo integral da fala do palestrante – se esse é o grande problema, como parece –, seria uma questão interessante a refletir; estaria ela mancomunada com o Procurador, de modo que sua intenção ao notificar os pais tenha sido a de que ouvissem uma oração ao final da palestra? Embora isso não me pareça crível, não tenho tempo nem espaço para divagar sobre isso, porque quero enfrentar o cerne da controvérsia.

De início, penso que há um consenso no sentido de que se a palestra fosse destinada para o fim de uma pregação religiosa, haveria desrespeito ao dever de laicidade. Logo, furto-me em alongar mais nesse ponto.

O texto que escrevi partiu de uma pressuposição clara e explicada em seu conteúdo: a de que o Procurador de Justiça expôs o projeto para combater a evasão escolar por cerca de uma hora e meia e, no encerramento da fala, pede licença aos presentes para falar de Deus e faz uma oração, tudo após obter o consentimento da maioria do auditório[1]. Assim, o conteúdo religioso da palestra durou de três a quatro minutos. Como não estive no evento, não assisti à palestra, porém essa premissa era lastreada na informação recebida de um Promotor de Justiça que esteve na audiência pública como convidado, com quem tenho relação de amizade e confiança, bem como em vídeo, que foi divulgado na internet, o qual mostra o momento da oração.

Na sua coluna, o Dr. Lenio Streck deixa entender que essa premissa estava equivocada, baseado em texto de uma reportagem e nos vídeos nela disponibilizados. Por certo, assisti a todos os vídeos da reportagem no link da coluna. Quero deixar explicitado que esses vídeos não provam que meu ponto de partida está errado. Em um deles, não há qualquer registro de referência a Deus ou a conteúdo religioso. Em outros, há a referência a Deus e ocorre a oração, mas parecem ser episódios cortados do mesmo momento; isto é, as imagens podem perfeitamente retratar o epílogo da palestra. Seja como for, os vídeos isoladamente não desmentem o relato do colega que ali esteve e que me contou o ocorrido. Ademais, os próprios vídeos mostram que o Procurador solicitou permissão da maioria dos presentes para avançar. Não coagiu ninguém a acompanhá-lo e dirigiu suas palavras aos que concordaram com seu pronunciamento. Obviamente, se os fatos ocorreram como escrito na reportagem ou como relatado por minha fonte, é algo que dependerá de apuração e certamente ela será realizada nas instâncias próprias[2].

Streck não deixa tão evidente se ele qualifica a conduta do Procurador como ilícita estando certa ou não a minha pressuposição fática. Porém, vou considerar que ele a enquadra como ilícita ainda que minha premissa fática fosse verdadeira, ou seja, o Procurador não poderia jamais ter usado aquele espaço para fazer uma oração, mesmo que curta, ao final do evento e com o consentimento da maior parte dos presentes. O fundamento da ilicitude é o desrespeito ao dever de laicidade. No meu texto, sustentei que, dentro dessa baliza fática exposta, não houvera violação a nenhum direito fundamental nem quebra do dever de laicidade.

Aqui abro parênteses para uma reflexão necessária. Não se pode confundir laicidade e laicismo[3].Para ser mais direto, a laicidade, como fenômeno político-jurídico, pretende tratar com autonomia o Direito e a Política da Religião. O laicismo – ao menos na sua visão mais extremada – pugna por um Estado antirreligioso, com interdição total da referência a temas ou fundamentos que possam ser qualificados de religiosos na arena pública. Há diversos movimentos sociais que se inspiram, transitam ou aglutinam-se em torno de ideais laicistas.

O que é intrigante, e não pode passar sem uma meditação sobre esses fenômenos e embates de conteúdo altamente simbólico, é que há, desde o Estado Moderno, o surgimento de novas “religiões” civis ou políticas, com doutrinação no afã de constituir “adoradores” a seus deuses particulares, dogmas e mandamentos; usam-se símbolos (hinos, cores, rituais e bandeiras, por exemplo) para os “discípulos” reconhecerem-se mutuamente e defenderem os valores específicos que estão no liame de seu associativismo[4]. O problema começa a surgir quando o fanatismo religioso, seja ele eclesial, civil ou político, cerceia qualquer possibilidade de diálogo ou de respeito pela crença ou divergência alheia; assim, também é viável reconhecer, como fez Cesar Alberto Raquentat Júnior, que, a pretexto da laicidade, pode nascer uma intolerância laica ou secularista[5].

A rigor, não há enunciado normativo que traga o vocábulo “laicidade” no texto constitucional. Porém, seguramente é viável defender que o Estado brasileiro, embora não seja confessional, não é retratado na Constituição Federal como um Estado ateu nem como um juridicamente laicista, uma vez que, em seu preâmbulo, reconhece que o texto constitucional era promulgado sob a proteção de Deus.

Muitos teóricos, e também defendo essa tese, propõem uma dupla dimensão dos direitos fundamentais[6], com correspondentes deveres negativos e positivos. A laicidade não é propriamente um direito fundamental, mas um dever estatal negativo atrelado ao âmbito de proteção do direito fundamental de liberdade de crença. Isso significa que o Estado deve respeitar a liberdade de cada um crer no que quiser, sem impor uma religião determinada, com separação das normas que regem o poder político-jurídico secular dos mandamentos religiosos.

Por suposto, a liberdade de crença impõe ao Estado deveres ativos também. O Estado deve legislar e normatizar a proteção do exercício da fé de todos contra ameaças de terceiros. Nesse ponto, em cumprimento desse dever constitucional, a legislação brasileira contém até um tipo penal para coibir ultrajes ou perturbações a cultos ou atos de natureza religiosa (artigo 208 do Código Penal). Seria possível, também, pensar em deveres de promoção da liberdade religiosa? Uma faceta de promoção da religião, talvez mais controvertida, foi desenvolvida pelo próprio poder constituinte quando prevê a imunidade tributária dos templos religiosos. No entanto, aí não se está a tratar mais de laicidade.

Ora, se a laicidade é consolidada conforme valores e tradições embebidas e reconhecidas política e juridicamente, invariavelmente sua extensão denotativa variará a depender da sociedade e do sistema político e jurídico onde se examina a questão. A laicidade no Brasil não tem a mesma dimensão do État laïc francês, em que se propugna o confinamento da religião a um espaço exclusivamente privado, com a interdição de ostentação de símbolos religiosos em espaços públicos, como escolas[7], inclusive pelos próprios cidadãos.

Nesse diapasão, as perguntas feitas no meu texto eram válidas como ponto de reflexão sobre o conceito de laicidade praticado no Brasil. Defendi que o Estado deve ser laico, mas que a laicidade deve ser interpretada dentro de um limite semântico e conforme sentido reconhecido intersubjetivamente em nossa cultura, sem extremismo denotativo e conotativo, apenas no diapasão de que o Estado não pode e não deve impor uma determinada religião a ninguém nem perseguir quem professa uma fé diversa ou quem não acredita em entes metafísicos. Mas a laicidade não é, pelo prisma jurídico, sinônimo de abolição da liberdade de expressão e de crença, ainda que num ambiente público e mesmo que por parte de um agente público.

Dentro da premissa apresentada e como é dado a perceber nos vídeos a que assisti, o Procurador não impôs sua fé a ninguém, pois dirigiu sua oração àqueles presentes que concordaram com ela, os quais eram a maioria do auditório. Quem era de outra religião ou não tinha nenhuma teve liberdade de não o acompanhar na prece. Nada no vídeo mostra que o Procurador tenha ameaçado perseguir alguém que não orasse com ele; ele tem o cuidado de pedir licença aos demais que não quiseram a prece e não satiriza os descrentes ou membros de outras denominações religiosas nem age com escárnio.

No meu escrito mencionado pelo jurista, perguntei se deveríamos rebatizar o Município de São Paulo e outros tantos nomeados em homenagem a santos padroeiros ou a divindades ou entes de outras religiões (veja o caso de Tupã/SP). Questionei se o Estado deixaria de proteger e preservar o patrimônio histórico de igrejas, de templos ou de monumentos culturais com alguma ligação religiosa – Cristo Redentor, por exemplo – porque ele remete a alguma religião em particular. Também indaguei se deveríamos proscrever feriados religiosos, lembrando que há feriados ligados com a fé cristã e feriados conectados a religiões de matrizes africanas. Em realidade, perguntas iguais ou similares também haviam sido postas em sentença da Justiça Federal que rejeitou o pedido proposto pelo Ministério Público Federal de retirar das cédulas de dinheiro a expressão “Deus seja louvado”, o qual foi deduzido em ação civil pública.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A fundamentação do Ministério Público Federal era precipuamente ancorada na laicidade do Estado. Para o propósito desta justificativa, pesquisei nas próprias colunas do Dr. Streck se ele havia feito alguma reflexão sobre laicidade e encontrei justamente uma coluna em que ele aguilhoa a tese defendida pelo Ministério Público Federal na aludida ação civil pública, com base em ponderações bem semelhantes – inteligentemente pergunta se seria constitucional pretender abolir o Natal. Streck parece compreender que o dever de laicidade não implica a reescrita da história e tradição cultural do Brasil[8]. Acredito, portanto, que ele comungue desse conceito de laicidade apresentado.

Na referida ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, salvo melhor juízo, pretendeu-se construir uma espécie de laicidade de dimensão positiva. Da liberdade de crença, extraiu-se uma obrigação estatal de laicidade de agir, no sentido de apagar da história os laços com a moral e tradição cristãs que estão na base de nossa sociedade. Embora, na essência, não instituir um feriado cristão (judeu, de matriz africana, mulçumano, budista etc.) possa ser considerado um dever negativo, por exemplo, a partir do momento em que ele está consolidado no seio social, não se pode pretender juridicamente extirpá-lo somente para não desagradar quem não comunga daquele credo homenageado.

Também lembrei uma decisão interessante da Corte Europeia de Direitos Humanos, como poderia ter destacado uma decisão do Conselho Nacional de Justiça, que palmilhou em vereda similar em relação a símbolos religiosos existentes nos tribunais brasileiros. A Corte Europeia enfrentou uma suposta infração do dever de imparcialidade da Itália consistente na existência de crucifixos nas escolas italianas (Caso Lautsi e outros versus Itália). Embora a Corte tenha fundamentado que a decisão italiana de não retirar crucifixos de escolas públicas estava sob sua margem de apreciação, ela termina por delimitar o que representaria o dever de imparcialidade, o que inclui a laicidade, e julgou favoravelmente ao Estado italiano, com o fundamento de que a liberdade de crença de qualquer um é passível de ser exercitada em ambientes públicos ou privados, como diz a Convenção Europeia de Direitos Humanos. A Corte Europeia compreendeu que a presença de crucifixos não demonstra nenhuma forma de tolhimento da possibilidade de cada um exercitar sua fé ou crença conforme lhe aprouver.

Alguém poderia objetar e dizer que a Corte teria feito uma distinção entre um símbolo passivo, como é o crucifixo, e “símbolos ativos” e querer enquadrar a fala do Procurador como um símbolo ativo, logo, censurável. Porém, ainda assim não interpreto dessa forma, sobretudo pelo restante da fundamentação do julgado. Em realidade, o que a Corte Europeia decidiu, e bem, é que a laicidade do Estado não serve de pretexto para renegar e matar a influência histórico-cultural que a religião católica tradicional exerceu e exerce na sociedade italiana. O fundamento maior (ver o parágrafo 74 da decisão) para julgar a favor da Itália é a percepção da Corte Europeia de que não pode haver imposição de uma religião qualquer nem proibir que as pessoas sob sua autoridade estejam vedadas de discordar dessa religião, de rejeitar Deus ou de seguir um credo diverso.

Outras observações do cotidiano mostram que a laicidade no Brasil deve ser aquilatada como a permitir a expressão de sentimentos religiosos na arena pública, portanto, na nomenclatura da Corte Europeia, aqui se permitem símbolos positivos. Para escapar da polarização político-partidária que anda tão em voga no país, os Presidentes Lula e Temer, nos seus discursos proferidos nas solenidades de posse, fizeram questão de agradecer a Deus. Não é isto uma forma de oração? Claramente é. A ligação espiritual com o divino numa oração é feita para pedir, relatar ou simplesmente agradecer por alguma coisa. Aliás, em muitas posses de agentes públicos e operadores do Direito é comum que, nos seus discursos, dedique-se um espaço para agradecimento a Deus, seja qual for a religião.

Em colações de grau, mesmo que seja uma instituição pública de ensino, tradicionalmente há uma fala de alguns minutos para a gratidão a Deus. Como lembrado na tese de doutorado mencionada neste escrito, existe um cargo de capelão dentro do Exército, submetido a concurso público. Aliás, dentro de repartições públicas ainda existem alguns espaços dedicados a cultos católicos ou ecumênicos e não é incomum, especialmente em datas próximas a feriados religiosos, que alguns órgãos públicos permitam a celebração de cerimônias religiosas no seu interior. Logo, o dever de laicidade não interdita necessariamente símbolos ativos ou manifestações ativas de expressão religiosa na arena pública.

Minha conclusão foi de que as decisões judiciais mencionadas, cujos fundamentos lastreiam-se plenamente no sistema jurídico de regência de cada organismo judicial comentado, mostram que ferirá realmente a laicidade ou a imparcialidade do Estado se um agente público demonstrar a intolerância com a fé divergente ou com a falta de fé alheia. Afirmar que uma oração curta – permitida pela maioria do público e sem coação a quem não a fizesse – transgride a laicidade do Estado, com o devido respeito, parece caminhar no mesmo sentido de proibir cidades com nomes de santos católicos ou de outras denominações religiosas; parece não tolerar a proteção de Deus dada no preâmbulo da nossa Constituição Federal e a tradição histórico-cultural compartilhada pela maioria da população brasileira. Parece, enfim, propor um conceito de laicidade não condizente com a nossa tradição cultural e jurídica.

Ao debater minhas reflexões com amigos mais próximos, e mesmo com base no que circula nas redes sociais, muitos pontuaram as seguintes observações: i) e se o orador orasse a outro deus qualquer ou dissesse não acreditar em nenhum e justificasse sua convicção; ii) conquanto não seja em si um ilícito, não convém a um agente público expressar sua fé em hipótese alguma em uma reunião ou ambiente de trabalho.

Quanto ao primeiro ponto, penso que a conclusão dos meus argumentos seriam os mesmos. Afinal, e esse era o propósito da reflexão, deve-se exercitar a liberdade de expressão e de crença, desde que com o respeito pela fé alheia e, mormente, se houver o consentimento da audiência. Obviamente, não defendo um direito absoluto de expressar-se religiosamente no espaço público. Outros direitos fundamentais ou bens coletivos podem justificar a restrição do direito fundamental à liberdade de expressão e de crença, desde que se observe o princípio da proporcionalidade. Não interferir na liberdade de crença de terceiros ou resguardar a paz social e a ordem pública são candidatos constitucionalmente válidos para impor restrições ao direito fundamental das liberdades de crença e de expressão. Mas o que é interferir na liberdade de crença alheia? Tenho me filiado à concepção de que o âmbito de proteção do direito fundamental deve ser interpretado – faço um corte com a finalidade de explicar que parto da concepção de interpretação apenas como atividade[9] – de modo amplo, porém com o decote de todas as situações e posições jurídicas que, num juízo de evidência e consenso razoável, sejam excessivas[10].

Logo, na minha primeira meditação quando escrevi o texto, a oração proferida no evento, da forma que foi realizada, sequer representaria uma interferência na liberdade de crença alheia, diante da mínima lesividade. Porém, ainda não estou fechado para esse ponto. Se houver, contudo, a conclusão de que existiu uma interferência na liberdade de crença alheia na fala final do Procurador, seria caso de estudar a proporcionalidade dessa interferência. O cerceamento da fala do orador quanto ao aspecto religioso seria, por suposto, um meio idôneo. As dúvidas começam a surgir no exame da necessidade, no sentido de verificar se haveria meios alternativos que preservassem a liberdade de crença e de expressão do orador e, ao mesmo tempo, fossem menos lesivos ao direito dos não crentes. Na dúvida, considere-se que o meio de cercear-lhe a possibilidade de fazer a oração é um meio necessário.

Por fim, dever-se-ia examinar a proporcionalidade em sentido estrito da atitude do orador e, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas já descritas ao longo do texto, penso que não houve desproporcionalidade na fala do expositor. Seguramente seria preciso desenvolver mais pausadamente essa argumentação, a qual, em realidade aponta mais as minhas conclusões sobre cada etapa do exame de proporcionalidade. Contudo, não há espaço para desenvolvimento aqui e interesso-me em publicar essas reflexões como um artigo jurídico futuramente.

Quem conhece minimamente as posições de Lenio Streck de rejeição da ponderação e de que sempre existem respostas corretas em Direito já percebeu que não me abebero na sua matriz teórica[11], o que não diminui em nada meu respeito por sua doutrina. Por conseguinte, certamente o jurista discordaria frontalmente da apresentação supramencionada[12].

Quanto ao segundo ponto, parece caminhar naquele sentido de que seria possível ao Procurador evitar a polêmica se simplesmente não fizesse a oração. Isto é, não haveria ilicitude em sua conduta, mas seria mais recomendável, do ponto de vista estratégico, não entrar num assunto polêmico e, assim, prejudicar o convencimento da sua proposta (projeto para combate da evasão escolar). Obviamente, quem não professa a fé daquela maioria presente ao evento ou mesmo é ateu tem liberdade para discordar ou desgostar da realização da oração. No entanto, a adotar-se o código binário do Direito (lícito/ilícito) de Habermas tantas vezes lembrado por Streck, a divergência do teor do discurso não o torna ilícito. O argumento aqui retratado a favor da omissão da prece é de natureza política (ou até moral), estranho a uma norma do sistema jurídico.

O tema é polêmico, por suposto, e obviamente muitos discordarão, possivelmente com propostas muito amplas para o conceito de laicidade, as quais, sem embargo, não encontram guarida na Constituição brasileira. No entanto, a tensão com o posicionamento constitucional e com a tradição existente no país é perceptível em parte da esfera social, uma vez que é notório que muitos segmentos laicistas mobilizam-se e efetuam um ativismo político vigoroso para banir a expressão de cariz religioso dos espaços públicos, seja por propostas legislativas, seja pela judicialização.

Particularmente, faz parte do jogo democrático que diferentes grupos busquem na arena política a conformação das regras do sistema a favor de sua corrente ideológica, mas não se pode partir do equívoco de atrelar a religião a algo puramente emocional e irracional, ligada a toda forma de atraso e barbárie; como Raquentat Júnior bem menciona, a História provou que também religiões civis e políticas, muitas delas a rejeitar influência de instituições religiosas tradicionais e até em posição de confronto com elas, patrocinaram enormes atrocidades, a par de que há exemplos de instituições religiosas várias que contribuíram para o benefício dos direitos humanos e a favor da democracia[13]. No que toca a fé cristã, não seria uma heresia lembrar a orientação do apóstolo Paulo na epístola de Romanos, capítulo 12, versículo 1, que apregoa que o culto agradável a Deus é racional. Portanto, e agora falo de política e não de Direito, não penso que as soluções erigidas pelas correntes laicistas, mormente as mais extremadas, sejam o melhor caminho para incentivar o pluralismo e para sedimentar a tolerância[14].

Encerro com um registro: não antevejo se haverá quem se interesse por este texto e pretenda refutá-lo e criticá-lo. O diálogo e o debate são salutares, mormente para o aperfeiçoamento intelectual. Lerei com o espírito aberto as críticas e as discordâncias porventura existentes. Se ficar convencido de que me equivoquei, confessarei publicamente meu pecado jurídico.

Sobre o autor
Luiz Antônio Freitas de Almeida

Doutorando em ciências jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em direitos fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em direitos fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e em direito constitucional pela Centro Universitário de Campo Grande - UNAES. Bacharel em direito pela UFMS. Promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos