1. O NEGÓCIO JURIDICO E SEUS ELEMENTOS
Negócio jurídico (arts. 104 a 184 do Código Civil) é a manifestação de vontade humana em conformidade com o ordenamento jurídico, destinada a produzir efeitos jurídicos ex voluntate, isto é, de acordo com a vontade das partes. Já o ato jurídico em sentido estrito, que igualmente está de acordo com o ordenamento jurídico (stricto sensu), possui eficácia ex lege, pois seus efeitos decorrem diretamente da lei, e não da vontade das partes, distinguindo-se, assim, dos negócios jurídicos.
Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado, estabeleceu três planos para o negócio jurídico: existência, validade e eficácia. Primeiramente, deve-se averiguar se o negócio jurídico existe; em seguida, se é válido; e, por fim, se é eficaz.
Com a presença de seus elementos essenciais e acidentais, verifica-se a existência do negócio jurídico. Passa-se, então, ao campo da validade, analisando-se eventuais vícios, que podem acarretar nulidade ou anulabilidade — como incapacidade da parte ou das partes, vício de forma, falta de motivo, de causa, de objeto, de boa-fé, bem como erro, dolo, coação ou simulação. Finalmente, examina-se a eficácia do negócio jurídico, em um terceiro momento.
Há elementos essenciais e elementos acidentais do negócio jurídico.
A vontade, que representa a manifestação do consentimento das partes para a realização do negócio, constitui elemento essencial. Cumpre verificar se a vontade foi efetivamente manifestada e se coincide com a vontade real daquele que a declarou.
O Código Civil de 2002 consagra a ideia de que, para a interpretação do negócio jurídico, deve-se valorizar a intenção daquele que manifestou a vontade, mais do que seu sentido literal, conforme preceitua o art. 112. Ademais, a boa-fé (repudiando intenções maliciosas) e os usos do local da celebração também servem como critérios interpretativos, nos termos do art. 113 do Código Civil.
Outro elemento essencial é a existência de um objeto, sobre o qual se refere o negócio jurídico.
Por fim, o negócio jurídico deve possuir forma, ou seja, realizar-se mediante acordo escrito ou verbal, conforme exigência legal.
Assim, são elementos essenciais que tornam possível a existência dos negócios jurídicos: a manifestação de vontade, o objeto, a forma e a causa.
Já os elementos acidentais são: condição, termo e encargo (ou modo).
A condição subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e incerto. Só existe condição quando o evento é, ao mesmo tempo, futuro e incerto; se faltar um desses requisitos, não há condição.
A condição pode ser suspensiva ou resolutiva. A suspensiva adia a aquisição e o exercício do direito até que se implemente o evento; a resolutiva, ao contrário, extingue a eficácia do negócio jurídico quando a condição se satisfaz.
De acordo com Maria Helena Diniz, Código Civil Anotado, p. 158-171, ed. 11ª, 2005:
“Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito jurídico a evento futuro e incerto.
Condição é a cláusula que subordina o efeito do negócio jurídico, oneroso ou gratuito, a evento futuro e incerto.
Requisitos. Para a configuração da condição será preciso a ocorrência dos seguintes requisitos: a) aceitação voluntária, por ser acessória da vontade incorporada a outra, que é a principal por se referir ao negócio que a cláusula condicional se adere com o objetivo de modificar uma ou algumas de suas conseqüências naturais; b) futuridade do evento, visto que exigirá sempre um fato futuro, do qual o efeito do negócio dependerá; e c) incerteza do acontecimento, pois a condição relaciona-se com um acontecimento incerto, que poderá ocorrer ou não.
Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.
Condição lícita. Lícita será a condição quando o evento que a constitui não for contrário à lei, a ordem pública ou aos bons costumes.
Condições proibidas. Estão defesas as condições: a) perplexas, se privarem ao ato negocial de todo o efeito, como a venda de um prédio sob a condição de não ser ocupado pelo comprador; e b) puramente potestativas, se advindas de mero arbítrio de um dos sujeitos (RT, 678:94, 680:115 e 691:206). P. ex., constituição de uma renda em favor se você vestir tal roupa amanhã ou se ficar de pé durante 24 horas; aposição de cláusula que, em contrato de mútuo, dê ao credor poder unilateral de provocar o vencimento antecipado da dívida, diante de simples circunstância de romper-se o vínculo empregatício entre as partes (RT, 568:180).
Urge lembrar que a condição resolutiva puramente potestativa é admitida juridicamente, pois não subordina a eficácia do negócio jurídico ao mero arbítrio de uma das partes, mas sim à sua ineficácia futura. Sendo resolutiva, não há nulidade, uma vez que existe vínculo jurídico válido, consistente na vontade atual de obrigar-se e de cumprir a obrigação assumida. Como observa Vicente Ráo, o ato jurídico chega a produzir os seus efeitos, apenas se resolvendo se, e quando, a condição — positiva ou negativa — se realizar.
O art. 122 do Código Civil veda apenas a condição suspensiva puramente potestativa. Dessa forma, são admitidas as condições simplesmente potestativas, que dependem da prática de um ato concreto e não de mero arbítrio. Nesses casos, o arbítrio requer atuação específica do sujeito. Exemplo: a doação de uma casa a determinado jogador de tênis, condicionada ao bom desempenho dele em um torneio de Wimbledon.
Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhe são subordinados:
I – as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;
II – as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita;
III – as condições incompreensíveis ou contraditórias.
Condições suspensivas física ou juridicamente impossíveis. As condições fisicamente impossíveis são aquelas que não podem efetivar-se por serem contrárias à natureza. Exemplo: a doação de uma casa a quem trouxer o mar até a Praça da República, na cidade de São Paulo, será inválida, visto que a condição suspensiva que subordina a eficácia negocial a evento futuro e incerto é, nesse caso, impossível de se realizar fisicamente.
Já as condições juridicamente impossíveis são aquelas que invalidam os atos negociais a elas subordinados por serem contrárias à ordem legal. Exemplo: a outorga de uma vantagem pecuniária sob a condição de renúncia ao trabalho, o que afronta os arts. 193, 6º, 5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, que consagra o trabalho como dever social; ou ainda a estipulação de venda tendo por objeto herança de pessoa viva (CC, art. 426).
Condições ilícitas ou de fazer coisa ilícita. As condições ilícitas, ou aquelas que impõem a prática de ato ilícito, são repelidas pelo ordenamento jurídico, pela moral e pelos bons costumes, motivo pelo qual invalidam os negócios a que forem apostas. Exemplo: prometer uma recompensa sob a condição de alguém viver em concubinato impuro (RT 122:606); dispensar, sendo casado, os deveres de coabitação e fidelidade mútua; entregar-se à prostituição; furtar determinado bem; mudar de religião; ou ainda não se casar.
Condições perplexas, incompreensíveis ou contraditórias. Se os negócios contiverem cláusulas que subordinem seus efeitos a evento futuro e incerto, mas redigidas de forma obscura ou contraditória, gerando múltiplas interpretações ou incoerência de termos, serão inválidos. Exemplo: “constituirei Mário meu herdeiro universal, por ato de última vontade, se Ricardo for meu herdeiro universal”. Tal cláusula é inválida, pois a condição não pode se realizar.
Art. 124. Têm-se por inexistentes as condições impossíveis quando resolutivas, e as de não fazer coisa impossível.
Condição resolutiva impossível. Se for aposta num negócio condição resolutiva impossível (física ou juridicamente) ou de não fazer coisa impossível, será tida como não escrita; logo, o negócio valerá como ato incondicionado, sendo puro e simples, como se condição alguma se houvesse estabelecido, por ser considerada inexistente.
Art. 125. Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.
Condição suspensiva. Será suspensiva a condição se as partes protelarem, temporariamente, a eficácia do negócio até a realização do acontecimento futuro e incerto (RT, 706:151; JTACSP, 108:156 w 138:93). P. ex., adquirirei seu quadro “X” se ele for aceito numa exposição internacional.
Efeito da condição suspensiva pendente. Pendente a condição suspensiva não se terá direito adquirido, mas, expectativa de direito ou direito eventual. Só se adquire direito após o implemento da condição. A eficácia do ato negocial ficará suspensa até que se realize o evento futuro e incerto. A condição se diz realizada quando o acontecimento previsto se verificar. Ter-se-á, então, o aperfeiçoamento do ato negocial, operando-se ex tunc, ou seja, desde o dia de sua celebração, se inter vivos, e à data da abertura da sucessão, se causa mortis, daí ser retroativo.
Art. 126. Se alguém dispuser de uma coisa sob a condição suspensiva, e, pendente esta, fizer quanto àquela novas disposições, estas não terão valor, realizada a condição, se com ela forem imcompatíveis.
Irretroatividade da condição suspensiva nos contratos reais. A retroatividade da condição suspensiva não é aplicável aos contratos reais, uma vez que só há transferência pública devidamente transcrita. Esclarece Clóvis Beviláqua que o implemento da condição suspensiva não terá efeito retroativo sobre bens fungíveis, móveis adquiridos de boa-fé e imóveis, se não constar do registro hipotecário a inscrição, ou melhor, o assento do título, onde se acha consignada a condição.
Inserção posterior de novas disposições: a norma não veda a possibilidade de, na pendência de uma condição suspensiva, fazer-se novas disposições, que, todavia, não terão validade se, realizada a condição, forem com ela incompatíveis. A esse respeito, bastante esclarecedores são os seguintes exemplos de R. Limongi França: A doa a B um objeto, sob condição suspensiva, mas, enquanto esta pende, vende ou empenha o mesmo objeto a C; nula será a venda ou a garantia real (penhor). A doa a B o usufruto de um objeto, sob condição suspensiva, mas, enquanto esta pende, aliena a C a nua propriedade do mesmo objeto; válida será a alienação, porque não há incompatibilidade entre a nova disposição e a anterior.
Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.
Condição resolutiva. A condição resolutiva subordina a ineficácia do negócio a um evento futuro e incerto. Enquanto a condição não se realizar, o negócio jurídico vigorará, podendo exercer-se desde a celebração deste o direito por ele estabelecido, mas, verificada a condição, para todos os efeitos extingue-se o direito a que ela se opõe. Por exemplo, constituo uma renda em seu favor, enquanto você estudar (RT 433:176, (…)).
Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme os ditames de boa-fé.
Implemento de condição resolutiva. Se uma condição resolutiva for aposta em um ato negocial, enquanto ela não se der, vigorará o negócio jurídico, mas, ocorrida a condição, operar-se-á a extinção do direito a que ela se opõe, retornando-se ao status quo ante. Mas, se tal negócio for de execução continuada ou periódica (p. ex., uma locação), a efetivação da condição, exceto se houver disposição em contrário, não atingirá os atos já praticados (como pagamento de aluguéis ou de encargos locativos) desde que conformes com a natureza da condição pendente e aos ditames da boa-fé (CC, art. 422). Acatado está o princípio da irretroatividade da condição resolutiva, quanto às prestações executadas, pois implemento da condição resolutiva terá eficácia ex nunc, preservando os efeitos negociais já produzidos.
Efeitos “ex nunc” e “ex tunc” da condição. Quanto aos atos de administração praticados na pendência da condição, ela não terá efeito retroativo, salvo se a lei expressamente o determinar, de maneira que tais atos serão intocáveis, e os frutos recolhidos não precisarão ser restituídos. Porém, a norma jurídica estabelece que a condição terá efeito retroativo quanto aos atos de disposição, que, com sua ocorrência, serão tidos como nulos.
Outros elementos acidentais do negócio jurídico são o termo e o encargo.
Termo. O termo é a cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e certo, normalmente representado por uma data ou acontecimento determinado. Divide-se em:
Termo inicial (suspensivo): dá início aos efeitos do negócio jurídico e gera direito adquirido a partir de sua ocorrência.
Termo final (resolutivo): extingue os efeitos do negócio jurídico quando se verifica o evento futuro e certo previamente estipulado.
Encargo ou modo. O encargo corresponde à prática de uma liberalidade subordinada a um ônus. Exemplo: a doação de um terreno com a condição de que nele seja construída uma escola. O encargo deve ser cumprido; caso contrário, a pessoa que realizou a doação poderá requerer a revogação ou o cumprimento judicial do encargo.
A doutrina civilista emprega ainda a expressão ato jurídico, entendendo tratar-se da manifestação de vontade destinada a constituir, modificar ou extinguir um direito subjetivo, mediante a objetivação de um fim protegido pelo ordenamento jurídico.
2. A CAUSA COMO ELEMENTO DO NEGÓCIO JURÍDICO E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO ROMANO
Ebert Chamoun, em suas Instituições de Direito Romano (1968, p. 86 e seguintes), ensinava que “as partes do ato jurídico procuram atingir um objetivo prático que é precisamente a função econômico-social do ato que estão praticando. Esse objetivo prático, socialmente útil, recebe a proteção do direito. Chama-se causa do ato jurídico. A causa não pode ser impossível nem ilícita”.
Há profundas diferenças entre a causa e o motivo. Os motivos impelem a vontade à consecução da causa, conservando, todavia, caráter subjetivo. A causa, ao contrário, exterioriza-se no mundo dos fatos por meio de um ou outro ato jurídico, mas sempre segundo um tipo determinado. Exemplificava Chamoun (obra citada, p. 87) que, na venda de uma coisa, a causa do procedimento do vendedor é o recebimento do preço do comprador: esse recebimento precisa enquadrar-se em um tipo jurídico, a compra e venda. Os motivos, sendo individuais, variam conforme as partes; já a causa, sendo objetiva, varia apenas conforme o tipo de negócio, sendo única para cada modalidade.
A causa é digna de proteção pelo direito, que nela encontra o título justificativo dos efeitos aquisitivos, modificativos ou extintivos dos atos jurídicos. Já os motivos, em regra, são irrelevantes, a não ser quando se manifestam no ato sob a forma de cláusula acessória.
No direito romano, diversos eram os remédios utilizados para anular os efeitos de atos jurídicos realizados sem causa, como a condictio (ação de repetição de indébito), a actio doli e a querela non numeratae pecuniae.
O pagamento sem causa realizado por meio da stipulatio podia, no direito clássico, ser repetido mediante a condictio indebiti. A execução de uma stipulatio poderia ser contestada por meio da exceptio doli mali; ademais, o pagamento feito em vista de sua execução podia ser repetido pelo promitente não envolvido na torpeza, mediante a condictio ob turpem causam.
No direito imperial, permitia-se àquele que reconhecera, em documento, ter recebido determinada quantia — sem, contudo, efetivamente tê-la recebido —, negar-se ao pagamento, valendo-se da querela non numeratae pecuniae. Esse remédio operava a inversão do ônus normal da prova: cabia ao pretenso credor demonstrar a existência do empréstimo. Já no direito de Justiniano, a querela não podia ser suscitada quando a causa da numeratio estivesse revelada no documento. Era admitida dentro do prazo de dois anos, abrangendo inclusive débitos de coisas diversas do dinheiro e do dote, quando exigida restituição ao marido que não o recebera. Se intentada de forma temerária, a ação acarretava a pena do dobro.
3. A CAUSA NO CÓDIGO CIVIL DO BRASIL E EM OUTROS DIREITOS: DIVERSAS DOUTRINAS
O Código Civil brasileiro não menciona expressamente a causa ou o motivo como elemento essencial do negócio jurídico. Contudo, estabelece que o falso motivo, quando expresso como razão determinante ou essencial, vicia o ato negocial, e prevê que, quando o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito, o negócio jurídico será nulo.
Caio Mário da Silva Pereira, em suas Instituições de Direito Civil (v. I, 14ª ed., p. 343), afirmou que “toda ação humana se prende a uma razão. Todo ato é precedido de motivação mais ou menos complexa. Toda declaração de vontade decorre de um motivo, que ora pode ser puramente interior e psíquica, ora exterior e objetivo. É na pesquisa da determinação do ato que vai assentar o problema da causa do negócio jurídico”.
Ensinou ainda o autor (obra citada, p. 344) que, na investigação das razões determinantes do negócio jurídico, é necessária uma distinção fundamental: separar a causa do ato dos motivos que levaram o agente a praticá-lo. Os motivos apresentam-se como razão ocasional ou acidental do negócio; nunca faltam como impulso originário, mas não possuem relevância jurídica. Devem, por isso, ser relegados ao plano psicológico, cabendo ao jurista ater-se à causa propriamente dita.
Acrescenta Caio Mário da Silva Pereira: “E detém-se apenas na investigação da causa propriamente dita, que deve caracterizar na última das razões determinantes do ato”. Na venda de um imóvel, por exemplo, a causa do negócio jurídico seria a obtenção do dinheiro; como essa constitui a prestação do comprador, pode-se afirmar que a causa do negócio realizado pelo vendedor situa-se na obrigação da outra parte, configurando-se como o motivo próximo e determinante do negócio, desprezada a motivação individual ou razão subjetiva.
Na caracterização da causa, é necessário expurgá-la dos meros motivos e isolar aquilo que constitui a razão jurídica do fenômeno. Isso porque a causa encerra um fim econômico ou social reconhecido e garantido pelo direito, funcionando como finalidade objetiva e determinante do negócio, distinta da motivação individual que o agente possa ter. A motivação, mesmo quando ilícita, não invalida o ato, desde que à causa não se possa imputar a mesma falha — como ensinou Dabin (La théorie de la cause, n. 298).
Roberto de Ruggiero, ao analisar a causa dos negócios jurídicos no direito italiano, observa: “A generalidade dos escritores costuma tratar do assunto principalmente a propósito da teoria do contrato (arts. 1.108, 1.133 do CC), seguindo assim o sistema do Código francês e do nosso, que daquele é também cópia nesse ponto, salvo a adição do art. 1.121 do CC, que não se encontra no francês. No Código francês, o conceito de causa foi introduzido com base nas doutrinas de Pothier e de Domat, mas seria errôneo pensar que constitua uma inovação do direito moderno: o conceito de causa deriva das doutrinas romanistas e, posto que modificado à face do conceito próprio do direito romano, é nele que encontra a sua primeira e mais sólida base” (Instituições de Direito Civil, v. I, São Paulo: Bookseller, 2005, p. 357).
Em suas lições, Ruggiero ainda disse:
“Ora, dentre toda a série de motivos que estão entre si indissoluvelmente ligados como os elos de uma cadeia, o direito apenas atende ao último, o mais próximo da ação, o que a determina e que, objetiva e, juridicamente justifica a promessa ou o ato, não se importando dos outros mais remotos, que é certo terem atuado a vontade e a levaram a manifestar-se, mas que por si só não bastam para a determinar e para justificar o ato ou a promessa, isto porque tais motivos são por via de regra irrelevantes para o direito, salvo se foram incorporados de pressuposição, de maneira a constituir parte integrante da mesma declaração. Pois bem, o primeiro é a causa, quer dizer: a razão determinante da vontade, e, para os negócios de conteúdo patrimonial, os segundos são os motivos, isto é: as causas impulsivas, individuais e subjetivas. O primeiro é condição essencial da existência do negócio jurídico, sem a qual a vontade não seria, por si só, capaz de produzir o efeito que pretende: os segundos, a razão ocasional e acidental do negócio, a qual posto que nunca falte, como impulso primordial da vontade, não tem para o direito importância alguma. Se a toda essa série se quer dar o nome de motivos, diremos então que o primeiro é o motivo próximo, que é sempre um e não muda visto ser objetivamente determinado e caracterizado pela natureza e finalidade intrínseca do negócios; e os outros os motivos remotos, correspondentes às representações psíquicas íntimas, que podem ser tão variáveis e infinitas como as circunstâncias individuais que levam os homens a criar relações entre eles”(Instituições de direito civil, volume I, quinta edição, traduzido por Ary dos Santos, pág. 247).
Os motivos individuais, assim, não devem se confundir com a causa.
A causa é o fim econômico e social reconhecido e garantido pelo direito; constitui a própria função do negócio objetivamente considerado, a condição que justifica a aquisição, afastando o risco de lesão a direito alheio e representando, em certo sentido, a vontade da lei diante da vontade privada.
Compreende-se a causa como a motivação típica do ato, critério objetivo caracterizado pelo fim econômico ou social reconhecido e protegido pelo ordenamento jurídico. Nela se identifica o fim prático a que todo negócio se destina. Assim, a causa é o motivo juridicamente relevante, gerador de consequências jurídicas.
Diante do problema da indagação causal, a doutrina se divide. Alguns autores atribuem-lhe grande importância, sustentando a sua unidade conceitual, embora admitam a variedade de aspectos sob os quais pode se apresentar. Caio Mário da Silva Pereira, em suas Instituições de Direito Civil (v. I, 14ª ed., p. 346), estudou de forma precisa a questão ao afirmar:
"Outros, porém, negam-lhe a relevância, e ainda outros vão mais longe, desprezando-a, por entenderem que a distinção causal nada mais é do que uma desnecessária duplicação dos elementos integrantes do negócio jurídico. Nos onerosos, argumentam os não-causalistas, se a causa está na contraprestação dada ou prometida ao agente, ela coincide com o objeto do ato, sendo mera sutileza argumentar que se não confunde propriamente com a prestação da outra parte, porém, prende-se à bilateralidade da obrigação: nos gratuitos, se se situa na liberalidade ou no benefício proporcionado pelo agente, confunde-se então com a sua intenção, e, em última análise, com a própria vontade, não passando de preciosismo sustentar que a causa donandi difere da vontade geradora do contrato."
Realmente, essa controvérsia não se resolve pela análise dos escritos que ocupam posição contrária, seja no campo causalista — com Domat, Pothier, Aubry et Rau, Cenzi, Cariota-Ferrara, Ruggiero, Bonfante e Messineo —, seja no campo anticausalista, com Planiol, Laurent, Demogue, Dabin, Carvalho de Mendonça e Clóvis Beviláqua.
Contra o conceito de causa, registram-se críticas conhecidas na doutrina. Muitos autores contestam a sua existência como elemento autônomo e distinto, sustentando que, nos contratos, seria inútil acrescentar um quarto elemento. A objeção baseia-se na suposta falta de unidade conceitual: se nos negócios onerosos a causa é a contraprestação prometida ou recebida, pareceria incongruente que, nos negócios gratuitos — em que falta contraprestação —, fosse necessário recorrer à causa para suprir a lacuna, vinculando-a à mera intenção liberal. Daí porque diversos autores passaram a negar a causa nos negócios gratuitos, admitindo-a apenas nos onerosos.
Importa ressaltar que a causa não se confunde com o objeto nem com o consenso.
A corrente subjetivista, predominante entre juristas franceses, entende que a causa é a razão determinante do ato, a motivação típica objetivamente vinculada ao tipo de negócio jurídico praticado, que não pode ser confundida com o motivo. Nessa concepção, a causa corresponde à representação psicológica que leva as partes à conclusão do negócio, ou seja, o fim próximo da operação. Já os fins remotos são apenas motivos ou móveis subjetivos, irrelevantes para o direito. O fim próximo, motivo determinante, é que se identifica como a causa.
O Código Civil de 2002, embora não mencione expressamente a causa como elemento autônomo, não a exclui. Ao contrário, sua presença é pressuposta em dispositivos como os arts. 140 e 166, III, que refletem, segundo parte da doutrina, a adoção de uma orientação subjetivista.
Darcy Bessone, em sua obra Do Contrato: Teoria Geral (1997, p. 102 e seguintes), citando Domat (Oeuvres complètes – Les lois civiles), ensinava que a causa “é, pois, o fundamento da obrigação, no sentido de que, sempre que alguém se obriga, o vínculo se funda em algo oriundo do credor da obrigação. Pode não haver uma contrapartida ou contraprestação, mas haverá a entrega de uma coisa ou, quando menos, um mérito do donatário (contratos gratuitos) a fundamentar a vinculação de quem assume a obrigação. As perquirições posteriores não afetaram, no essencial, a teoria de Domat, mas precisaram de uma distinção rica de consequências: a que discrimina entre a causa da obrigação e os motivos determinantes do vínculo”.
A doutrina de Domat recebeu, posteriormente, importante reforço da autoridade de Pothier, que afirmava: “Todo ajuste deve ter uma causa honesta. Nos contratos onerosos, a causa da obrigação que contrai uma das partes é que a outra lhe dê ou se obrigue a lhe dar, ou se arrisque àquilo de que se encarrega. Nos contratos benéficos, a liberalidade que uma das partes quer exercer para com a outra é causa suficiente da obrigação que aquele contrai para com este. Mas, quando a obrigação não tem causa alguma, ou quando a causa pela qual foi construída é falsa, é nula a obrigação, e nulo o contrato” (Código Civil francês, art. 1.131).
O Código Civil da França, em seus arts. 1.108 e 1.131 a 1.133, e o Código Civil italiano, especialmente nos arts. 1.325 e 1.343 a 1.345, mencionam expressamente a causa como elemento essencial do contrato. Outros códigos, como o alemão (BGB), o suíço, o austríaco, o português e o brasileiro de 1916, omitem-na ou, quando a mencionam, não lhe reconhecem o mesmo caráter atribuído pelos ordenamentos francês e italiano. Daí porque são frequentemente classificados como códigos anticausalistas.
Na lição de Vicente Ráo (O Ato Jurídico, 1979, p. 100 e seguintes), a corrente objetivista — da qual fazem parte Betti, Cariota-Ferrara e Torquato Castro — sustenta que a causa não se relaciona com a motivação subjetiva do ato, mas sim com a sua função social. Desvincula-se, portanto, da esfera interior da vontade, para se concentrar na conotação social do negócio jurídico, configurando-se pela sua função prática e pelos reflexos econômicos e sociais reconhecidos pelo direito. Assim, a causa, para os objetivistas, identifica-se com o fim econômico e social do negócio jurídico, cabendo ao ordenamento tutelar apenas os atos que atendam ao interesse coletivo.
4. NEGÓCIOS JURÍDICOS CAUSAIS E ABSTRATOS
Há negócios jurídicos causais ou materiais e abstratos ou formais.
Roberto de Ruggiero (obra citada, p. 249) explicou que existem negócios em que a relação é fixa e incindível, estando a vontade e a causa conjugadas de tal modo que a manifestação de vontade já exprime, de imediato, a causa. Assim ocorre, por exemplo, na compra e venda e na doação. Esses são os negócios causais, ou materiais, que não podem produzir qualquer efeito quando se comprova a inexistência ou a ilegalidade da causa.
Existem outros, porém, nos quais essa relação não se apresenta. Não porque falte a causa, mas porque o negócio não a exprime nem a consubstancia em si. Neles, a vontade parece ser suficiente para produzir o efeito visado, devendo a causa ser buscada fora do negócio, em outra relação entre as partes, podendo variar conforme sua índole.
Segundo Ruggiero, esses são os negócios abstratos, também chamados formais, nos quais a vontade deve manifestar-se de forma determinada e, em alguns casos, solene, para que o efeito jurídico se produza. Por isso, afirma-se que, nesses negócios, a causa é substituída pela forma, ou mesmo que ambas se identificam.
No direito romano, exemplos clássicos de negócios abstratos eram a mancipatio e a in iure cessio, consideradas perfeitas logo após a pronúncia das palavras da sponsio ou o cumprimento das formalidades da venda ou do processo. No direito brasileiro, podemos citar os títulos ao portador e outros títulos de crédito desvinculados da causa, nos quais se reconhece a chamada abstratividade.