O trabalho que se segue está dividido em capítulos, com vistas a facilitar, em aspectos didáticos, a compreensão da finalidade deste. Prima, para tanto, pelo estudo do conceito da palavra justiça. No entanto, não apenas pelo conceito puro ou etimológico, pois, tem-se a intenção de estudar a finalidade da justiça; o que visa a justiça para a sociedade.
No entanto, não é intenção esgotar as interpretações e o campo teórico-filosófico sobre o assunto, prega-se, apenas, trazer o assunto à discussão. No que se refere ao termo pragmatismo, trata-se de [re]pensar de como seus conceitos são usados e o que podemos entender da finalidade de tais expressões: Judiciário e justiça.
Outrossim, num capítulo, faz-se necessário tratar do acesso ao Judiciário, pois este é o mecanismo para se chegar à Justiça. Entretanto, não se pode criar um imbróglio nessa relação. Aliás, este também é objetivo – se não primário; secundário – desse estudo: fazer uma discussão e, posteriormente, diferenciar, em termos teóricos, o conceito de Judiciário e de Justiça. Inicialmente, cabe-se entender Judiciário como um instituto estatal para poder pleitear seus direitos – um mecanismo, um protocolo, um procedimento – e, por conseguinte, entender Justiça, na sua égide, como o próprio direito “materializado”. Ou seja, o fim – teleologia[1] – do procedimento no Judiciário. Neste caso, o conceito de Justiça passará por algumas discussões e embasamentos teóricos, para, no fim do estudo alicerçar a diferenciação dos termos.
O Judiciário, por sua vez, sofre alguns ranços do passado. Um poder elitizado em que toda sua estrutura, desde a linguagem até seus mecanismos, prima por diferencial que lhe caracteriza como algo distante e parcialmente incompreensível pela sociedade em geral. Seria possível democratizá-lo? A democracia parte do pressuposto que todos – o povo – têm participação nas decisões, têm acesso. Nesse aspecto, entretanto, cabe ao Judiciário, no mínimo, uma revisão estrutural e funcional.
A justiça que trataremos nesse estudo, por sua vez, é entendida numa visão mais ampla. Justiça como o princípio balizador de qualquer sociedade. A igualdade entre os homens. A equidade no que tange a oportunidades de convívio e seus desdobramentos. Justiça tratada em acepções que vão além do instituto moderno de Judiciário. Logo, entender o Judiciário como égide da Justiça perpassa a interpretação e percepção humana, tendo em vista que saltam aos olhos as mazelas que nele residem; uma exacerbação de influência política.
A justiça sobrepuja o conceito de Judiciário. Ela é objeto de estudo da filosofia, da história, da ética, da moral. Se todos esses estudos fazem parte de um estudo maior e mais complexo que é a sociedade, a justiça, conquanto, assaz se utiliza de estados da natureza humana para ancorar seus pilares[2].
A prolixidade do acesso ao Judiciário
Trazer à tona a compreensão moderna do acesso ao Judiciário é perpetrar um emaranhado de coisas que fazem com que uma ínfima[3] parcela da sociedade fique de fora do mecanismo que poderia lhe proporcionar o efetivo acesso à justiça. No entanto, para enumerarmos quaisquer problemas ou dificuldades de acesso ao Judiciário, cumpre-nos, primeiramente, a obrigação de discutir a expressão acesso ao Judiciário. Essa expressão poderia se posicionar num outro trabalho acadêmico como sinônimo de acesso a justiça, porém, há nesse trabalho, o propósito de distingui-los.
Falar no acesso ao Judiciário é elucidar o leitor sobre o instituto estatal que visa a cumprir seu papel e que é um dos três poderes lá teorizados por Montesquieu (2004). O nosso sistema judicial é repleto de ranços que o fazem padecer na mesmice, e mais, assume um caráter de instituto do poder que se torna, em não raras vezes, um sistema distante da sociedade civil. Ele tem características de uma herança patrimonialista. Um poder que há uma ostentação, uma linguagem erudita que dificulta a compreensão de quem não esteve disposto a passar anos estudando para compreendê-la. A prova disso são as redações do corpo normativo. Trata-se de algo tão complexo que mesmo dentro da ciência jurídica, fez-se necessário a dedicação de uma disciplina para estudá-la: a hermenêutica.
Peter Häberle dedicou um estudo sobre a interpretação das normas jurídicas, em sua obra “Hermenêutica constitucional A sociedade aberta dos intérpretes da constituição”, ele faz uma discussão justamente sobre esse caráter robusto de se entender as normas. A obra é dedicada à Constituição, mas cabe perfeita analogia a todo ordenamento jurídico. Vejamos:
A teoria da interpretação constitucional esteve muito tempo vinculada a um modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados. (1997. p. 12)
‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão. A sua competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito da cidadania [...]. Dessa forma, os direitos fundamentais fazem parte da base de legitimação democrática para a interpretação aberta tanto no que se refere ao resultado, tanto no que diz respeito ao circulo de participantes. Na democracia liberal o cidadão é intérprete da constituição! [...] (idem. p. 35)
O que propõe o autor é que a sociedade civil deve ter compreensão para poder fazer uma interpretação do corpo normativo. De certo, é um pensamento bem à frente do que o pretendido nesse estudo, porém, é pertinente a sua exposição. Ele traz, ainda, a conceituação de “povo” para poder dar sustentáculo ao seu pensamento fundado num sistema governamental democrático.
Assim sendo, pode-se concluir, preliminarmente, que para se chegar ao acesso à justiça é imprescindível o acesso ao Judiciário. Este além das complexidades internas torna-se cada vez mais difícil, pois do lado exterior há um grande problema social para ser enfrentado. Pode-se dizer que a crise de acesso ao Judiciário está entrelaçada ao sistema econômico vigente, ao passo que, os pobres são quem, de fato, padece sem acesso ao Judiciário, consequentemente ou não, à justiça.
Do Capitalismo ao Judiciário
O capitalismo, sistema econômico que se funda na riqueza de alguns e a pobreza acentuada e consequente de outros, faz com que a sociedade desenvolva uma desigualdade econômica e, por conseguinte, social. A pobreza, subproduto do capitalismo, é a principal vítima no que tange ao cerceamento de liberdades[4]. Liberdades essas que vão além do entendimento imediato que se possa ter. A justiça – sem fazermos a distinção mencionada alhures –, por sua vez, está incumbida de garantir tais liberdades. John Hawls em seu livro “Uma teoria da justiça” pondera nesse sentido:
Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculos de interesses sociais. [...] (1997, p. 04)
Dessa forma, depreende-se a seguinte indagação: o que tem feito o instituto estatal que zel[5]a pela justiça para superar os obstáculos do capitalismo?
Durante anos, o Estado não mantinha uma obrigação de controle e erradicação da pobreza. CAPELLETTI e GARTH comentam em seu livro “O acesso à justiça” (1998) que afastar a pobreza – aquela tida como a incapacidade de usar plenamente a justiça e seus institutos – não era uma preocupação do Estado. A justiça só poderia ser acessada e obtida por aqueles que tivessem condições de pagar por ela. Ou seja, existia uma igualdade formal, não material. A justiça se mantinha indiferente às desigualdades econômicas e, por conseguinte, sociais.
Porém, um pouco mais adiante – faz algumas considerações que, poderíamos dizer, formam um paradoxo realístico. Afirmam ainda que, pensar os institutos jurídicos como possíveis de propiciar um acesso efetivo é vago. Questionando assim o conceito de efetividade:
Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de ‘efetividade’ é, por si só, algo vago. [...] Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem ser jamais completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo. Em outras palavras, quanto ao acesso efetivo à justiça podem e devem ser atacados? A identificação desses obstáculos, consequentemente, é a primeira tarefa a ser cumprida. (CAPELLETTI e GARTH, 1998. p. 06)
O que se pode perceber com distinta observância é que o próprio sistema que rege o mundo coopera para que haja uma desigualdade de oportunidades na sociedade civil. É preciso pensar o Judiciário como imune e apático a tal sistema, pois assim, poderá engendrar consequentes finalidades da justiça.
Considerações à guisa do conceito de Justiça
Nas relações interpessoais, nos deparamos em todo momento com o conceito de justo e injusto. Ouvimos das conversas informais às mais formais que isso ou aquilo é ou não é justo. Subjetivo e implicitamente o conceito de justiça está em nós. Até aquelas pessoas que nunca estudaram as ciências sociais entendem que determinada ação não satisfez ou satisfez seu conceito de justiça. A justiça, entretanto, está direta e absolutamente ligada à moral. Por isso, para trilharmos no título desse capítulo, precisaremos entender a moral e sua construção nos indivíduos.
ARANHA e MARTINS (2009), usando um conceito de Kohlberg, demonstram alguns estágios para a construção da moral. Afirma que, inicialmente, o indivíduo se depara com dois estágios (nível pré-convencional), neles são internalizados alguns valores de forma incondicional e também aprendemos a perceber que indivíduos à nossa volta “têm interesses que devem ser respeitados”.
Na segunda e terceira fase (Nível convencional), entende-se daquela fase em que “predominam as expectativas interpessoais e a identificação com as pessoas do grupo ao qual pertence”, cria-se o conceito de “boa” menina e “bom” menino; também nele as relações individuais se firmam na visão do sistema, da manutenção da ordem social. Por fim, na quinta e sexta fase (Nível pós-convencional), as pessoas começam a perceber os conflitos entre regras e sistema. Há uma forte incorporação do contrato social e uma conseguinte obediência às regras e às leis. Há também nessa fase o “reconhecimento de conflitos inconciliáveis entre o legal e a moral”. Existe uma forte carga de princípios.
Esta é a fase que mais interessa ao nosso estudo, é nela que se firma a interpretação teleológica da justiça. Assim, seguimos:
[...] Os valores independem dos grupos ou das pessoas que os sustentam, porque são princípios racionais e universais de justiça: igualdade dos direitos humanos, respeito à dignidade das pessoas, reconhecimento de que elas são fins em si e precisam ser tratadas como tal. Não se trata de recusar leis ou contratos, mas de reconhecer que eles são válidos porque se apoiam em princípios. (ARANHA e MARTINS, 2009, p. 227).
Dessa forma, se entende que a moral[6] está acima do legal. Se não há na lei, uma definição, para determinada conduta, ou se a própria lei condena determinada conduta e entende-se que esta conduta deve acontecer, deve-se pensar além do legal. Ainda, extraindo da mesma obra: lembra-nos a corajosa ação de Luther King em frente às leis segregacionista dos Estados Unidos que impediam os negros de ir à escola de brancos e havia discriminações contra eles em vários setores da sociedade. Nesse sentido, o exemplo de resistências às leis mostra uma contribuição para a efetivação do justo.
O conceito de justiça, no entanto, está um pouco além do pragmatismo que se encontra no Judiciário. Ou seja, ingressar com uma ação (acesso ao Judiciário) caracteriza acesso à Justiça? Pois bem. Responder essa questão carece de alguns pontos-chave que precisam ser elencados.
O INB (Instituto Avante Brasil), ainda no ano de 2011, divulgou que havia de processos em tramitação no Judiciário mais de 83 milhões no final do ano 2010. Os números caminham para 100 milhões. Ou seja, o judiciário se encontra soterrado. Uma média – uma média porque não se pode demarcar prazos – que se encontra com facilidade nos críticos do Judiciário é que os processos têm duração média de 15 a 20 anos. Isso é Justiça?
Deve-se entender por Judiciário, como já o dissemos alhures, como um instituto estatal que tem na função típica dizer o direito, executar a Justiça. Esse instituto se encontra, nos nossos dias, na posição de severas críticas, devido ao ranço dos ideais positivistas. Entretanto, a Justiça está além desse olhar, pois ela se ancora no sentimento íntimo da sociedade, no consciente, nos valores individuais e coletivos[7]. Se o direito é criado para dar respaldo às relações da sociedade, do indivíduo, então, este, tem por obrigação de carregar consigo a característica de justo. O Judiciário cumpre apenas o papel de instrumento para a Justiça.
Para John Rawls (1997), no objetivo de estabelecer “uma teoria de justiça”, pensar a justiça seria estabelecer uma posição de equidade entre os indivíduos que compõem a sociedade. Porém, esse dizer de equidade não deve ser entendido como sinônimo de justiça. Ao passo que justiça deve ter fundamento nos princípios da equidade. Coloca ainda que os pilares da justiça devem ser estabelecidos levando em conta uma situação de “ignorância” entre os homens, para que não haja uma propensão de busca de privilégios particulares. In verbis:
Na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebido como uma situação natural histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética, caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece o seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Eu até presumirei que as partes não conhecem suas concepções do bem ou suas propensões psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu da ignorância. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são os resultados do consenso ou ajuste equitativo. [...] (RAWLS, 1997. p. 13)
Dessa forma, logra-se de uma ideia que a justiça parte dos pressupostos de uma sociedade equitativa.
De toda forma, convém admitir que esse conceito de justiça – ainda que não fosse intenção de esgotar suas acepções – caracteriza-se por ser multifacetado. Assim, cabe colocação de que os anseios da sociedade devem ser respeitados e não há outra lógica que justifique qualquer conceito de justiça que se difira deste. A justiça deve ter pilares fundados no bem estar social.
Há, notoriamente, um marco, do ponto de vista da garantia de direitos, depois da Revolução Francesa, em que vimos uma ascensão dos direitos individuais. Dessa forma, por ranço histórico, temos uma forte dependência da aplicabilidade do direito em relação à norma. Contudo, temos uma contribuição para a filosofia do direito de um egrégio teórico que revoluciona, à época, o que chamamos de interpretação da norma para a aplicabilidade em caso concreto.
Segundo Luís Recaséns Siches, no método denominado por ele de a “lógica do razoável”, o aplicador deve não só se privar em justificativas de aplicação. Vai além da procura de uma pluralidade de interpretações como histórica, literal, subjetivo-objetivo, analogia, equidade etc. No seu artigo dedicado à lógica do razoável de Recaséns Siches, o professor Adauto de A. Tomaszewski, explica que decorre daí:
Que a única regra que se poderia formular, com universal validade, era a de que o juiz sempre deveria interpretar a lei de modo e segundo o método que levasse à solução mais justa dentre todas as possíveis, inclusive quando o legislador ordene um determinado método de interpretação. (1998. p. 126).
Ainda com a finalidade de defender teoria de Luís Recaséns Siches; fazendo uso novamente das palavras de TOMASZEWSKI:
Siches salienta que a lógica do razoável está sempre impregnada por valorações, ou seja, critérios axiológicos. Esta característica valorativa é totalmente estranha à lógica formal ou qualquer teoria da inferência constituindo um dos aspectos que, definitivamente distingue a lógica do razoável da lógica matemática. (1998, p. 128)
De maneira salutar, pode-se observar que essa teoria vem para respaldar, no estudo feito aqui, a aplicabilidade do justo quando a norma não tem delimitação, ou sua redação literal não é objetiva. Seria essa a forma de garantir um posicionamento justo do Judiciário.