O que se entende por teoria do inadimplemento substancial (substantial performance)?
Veja o clássico conceito de Clóvis do Couto e Silva: Adimplemento substancial “constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)" (O Princípio da Boa-Fé no Direito Brasileiro e Português in Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 56).[1]
A rigor, nos negócios jurídicos, o inadimplemento por uma das partes tem como efeito: a exigência do cumprimento da parte inadimplida pela parte interessada ou a resolução do contrato, consoante se extrai da redação do art. 475 do Código Civil. Veja.
Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
O Direito, no entanto, como se sabe, não é uma matéria exata como a matemática e precisa ser analisado caso a caso, sob pena de cometermos injustiças, desproporcionais ou sem razoabilidade para tanto. Fato é que, por vezes, as partes já cumpriram quase toda a sua obrigação, decaindo da parte mínima.
Exemplo corriqueiro são os casos de financiamento de veículos em que o tomador do empréstimo realiza o pagamento de, praticamente, todas as prestações, mas, ao final, deixa de pagá-las devido às dificuldades financeiras, como no caso de mutuário que paga 46 de 48 prestações de seu veículo automotor.
Reza a teoria do adimplemento substancial, no entanto, a repulsa à resolução do negócio jurídico, caso o inadimplemento seja mínimo em relação à obrigação a ser cumprida, a fim de cumprir a boa-fé objetiva e a função social do contrato[2]. Neste mesmo diapasão, é o Enunciado n. 361, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”. (grifo meu)
Essa teoria é decorrência direta da boa-fé objetiva, um dos baluartes do Código Civil e que norteiam, hodiernamente, todo o sistema normativo. Poderíamos dizer que a boa-fé se é um meta-princípio ou de um postulado normativo, nas palavras de Humberto Ávila[3].
Fiquem atentos, entretanto, pois não se está advogando, com isso, que a parte deixe de cumprir as suas obrigações (até para que não haja fraudes ou mesmo algum devedor mais vivaz se aproveitando desta interpretação). Isso porque o credor poderá, perfeitamente, obter do devedor o cumprimento da obrigação por outros meios que não a retomada do bem. Por exemplo, poderá o credor se valer das vias ordinárias para o recebimento do seu débito no caso acima mencionado.
Flávio Tartuce, discorrendo sobre o tema, traz interessante lição da doutrina e jurisprudência italianas, fazendo um paralelo com os casos brasileiros. Segundo o autor, a análise do adimplemento substancial passa por dois filtros. Veja as suas palavras[4]:
“O primeiro deles é objetivo, a partir da medida econômica do descumprimento, dentro da relação jurídica existente entre os envolvidos. O segundo é subjetivo,
sob o foco dos comportamentos das partes no processo contratual. Acreditamos que tais parâmetros também possam ser perfeitamente utilizados nos casos brasileiros, incrementando a sua aplicação em nosso país. Vale lembrar que no Código Civil italiano há previsão expressa sobre o adimplemento substancial, no seu art. 1 .455, segundo o qual o contrato não será resolvido se o inadimplemento de uma das partes tiver escassa importância, levando-se em conta o interesse da outra parte.
Em suma, para a caracterização do adimplemento substancial entram em cena fatores quantitativos e qualitativos, conforme o preciso enunciado aprovado na VII Jornada de Direito Civil, de setembro de 2015: "para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 3 6 1 da IV Jornada de Direito Civil - CJF), leva-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos" (Enunciado n. 586). A título de exemplo, de nada adianta um cumprimento relevante quando há clara prática do abuso de direito, como naquelas hipóteses em que a purgação da mora é sucessiva em um curto espaço de tempo.”
O Superior Tribunal de Justiça (REsp 1581505/SC, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.), analisando casos semelhantes ao referido, aplicava a teoria nos casos de alienação fiduciária (Decreto-Lei 911/1969), desde que observados os seguintes requisitos[5]:
- A existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes;
- O pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio;
- Deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.
Quando o tema parecia caminhar para uma consolidação no entendimento do STJ, este Tribunal, recentemente, alterou o seu posicionamento para não mais permitir a aplicação da teoria do adimplemento substancial à alienação fiduciária, consoante julgado da 2ª Seção, no. REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 22/2/2017, divulgado no informativo 599 do STJ. Vejamos, inclusive, os excelentes comentários tecidos por Márcio Cavalcante do site dizer o direito[6]:
“Conforme vimos acima, devidamente comprovada a mora ou o inadimplemento, o DL 911/69 autoriza que o credor fiduciário possa se valer da ação de busca e apreensão, sendo irrelevante examinar quantas parcelas já foram pagas ou estão em aberto. Além disso, o art. 3º, § 2º do DL 911/69 prevê que o bem somente poderá ser restituído ao devedor se ele pagar, no prazo de 5 dias, a integralidade da dívida pendente. Dessa forma, a lei foi muito clara ao exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o bem alienado fiduciariamente seja remancipado. Ou seja, nos termos da lei, para que o bem possa ser restituído ao devedor livre de ônus, é necessário que ele quite integralmente a dívida pendente. Assim, mostra-se incongruente impedir a utilização da ação de busca e apreensão pelo simples fato de faltarem poucas prestações a serem pagas, considerando que a lei de regência do instituto expressamente exigiu o pagamento integral da dívida pendente. Incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas. Vale mencionar, ainda, que a aplicação da teoria do adimplemento substancial para obstar a utilização da ação de busca e apreensão representaria um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, considerando que o devedor saberia que não perderia o bem e que o credor teria que se contentar em buscar o crédito faltante por outras vias judiciais menos eficazes. Juros mais elevados. Se fosse aplicada a teoria do adimplemento substancial para os contratos de alienação fiduciária, haveria um enfraquecimento da garantia prevista neste instituto fazendo com que as instituições financeiras começassem a praticar juros mais elevados a fim de compensar esses riscos. Isso seria prejudicial para a economia e para os consumidores em geral. Dessa forma, a propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, ficaria comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial.” (grifo meu)
Destarte, diante do julgamento da 2° Seção do Tribunal da cidadania, que decide, em última instância o tema naquela Corte, podemos dizer que o STJ deixou de aplicar a teoria do adimplemento substancial, pelo menos no que se refere aos contratos de alienação fiduciária em garantia.
[1] https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2017/06/info-599-stj.pdf.
[2] Braga Netto, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ/Felipe Peixoto Braga Netto. - Salvador: Edições Juspodivm: 2017, página 88.
[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
[4] Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único I Flávio Tartuce. 6. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, página 485/486.
[5] https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2017/06/info-599-stj.pdf.
[6] Idem.