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Violência no trânsito: custos sociais e importância das políticas públicas na mudança de comportamento do motorista

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29/06/2017 às 12:40
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POLÍTICAS PÚBLICAS NORMATIVO-EDUCACIONAIS E MUDANÇA COMPORTAMENTAL QUANTO À CONDUTA DE BEBER E DIRIGIR

 Na questão da acidentalidade no trânsito envolvendo pessoas com a capacidade psicomotora alterada pelo consumo de álcool, a linguagem - criada e posta em execução pelo Estado – voltada para inibir essas condutas não tem se mostrado eficaz para fazer frente àquela criada para estimular o consumo de bebidas alcoólicas.

Conforme o pensamento de Foucault18, nas relações de poder voltadas ao Direito “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”. Nesse modelo que o Direito nos propõe (o poder como Lei, como proibição) há uma amostra de uma função estratégica dominante, há um objetivo estratégico.

Os dados do Ministério da Saúde19 demonstram que em 2013, logo após o início da vigência da Nova Lei Seca, momento em que houve um significativo esforço social (Administração Pública como um todo, mídia e sociedade) voltado à ampla fiscalização da alcoolemia no trânsito, houve uma diminuição nos índices de acidentalidade. Todavia, a partir de 2014 os índices de acidentes tornaram a aumentar.

Uma das posições lógicas nessa realidade leva a considerar que o ferramental utilizado (poder como lei, proibição) por si só não foi suficiente para modificar essa verdade social. Em análise histórica da acidentalidade no trânsito brasileiro20, verifica-se que, desde meados da década de 1980, os índices de acidentes têm aumentado, mesmo com todo o arcabouço legal, o aparato publicitário, pedagógico e fiscalizatório atuante na realidade nacional.

 Consoante o pensamento de Leal21, uma das grandes problemáticas a ser solucionada no âmbito da teoria política e jurídica moderna desde sempre é como dominar a natureza humana para que ela não se apresente mais de forma ameaçadora à sua espécie, surgindo então o direito como instrumento regulatório desta mesma natureza.

Nesse seguimento, a Emenda Constitucional nº 82/201422 incluiu o § 10 ao art. 144 para disciplinar a segurança viária no trânsito, exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas compreendendo, entre outras atividades, a educação e a fiscalização de trânsito, de forma a garantir ao cidadão o direito à mobilidade. Essa emenda explicitou positivamente a segurança viária como direito fundamental da pessoa humana, inferindo ao “trânsito seguro” um significar mais profundamente albergado na proteção estatal, do que ocorrera até então.

Nessa acepção, cumpre afirmar que, de acordo com Hesse23, a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Essa vontade de Constituição tem três vertentes: baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem jurídica inquebrantável que proteja o Estado contra os arbítrios; de que essa ordem constituída é mais que uma ordem legitimada pelos fatos e, portanto, necessita de constante processo de legitimação; e de que essa ordem se torna eficaz com o concurso da vontade humana, isto é, adquire e mantém vigência por meio de atos de vontade.

O vocábulo educação constante da redação da Norma deve ser entendido não somente como instrumental pedagógico colocado em funcionamento nos diversos níveis escolares ou em campanhas publicitárias. Deve ser entendido, ainda e de forma não menos eficaz, como a construção de políticas públicas normativas que atuem de forma administrativa na manutenção do direito de dirigir daquele condutor legalmente habilitado. De que modo? Determinando ao motorista a apresentação de exames de alcoolemia (à Administração Pública), periódica e constantemente, como condição essencial para a manutenção de seu direito de dirigir.

De acordo com o pensar de Morin24, “o objetivo da educação não é o de transmitir conhecimentos sempre mais numerosos ao aluno”, e completa citando Durkheim, “mas o de criar nele um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que o oriente em um sentido definido, não apenas durante a infância, mas por toda a vida”. É mostrar que ensinar a viver necessita não só do conhecimento, mas também da transformação, em seu próprio ser mental, desse conhecimento adquirido em sabedoria, e da incorporação dessa sabedoria como norma de conduta para toda a vida.

Nesse mesmo diapasão, Freire25 afirma que “estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo”. Qualquer motorista que realizou o processo de habilitação para conduzir veículos obteve o conhecimento de que a conduta de beber e dirigir é proscrita legalmente; entretanto, os índices de acidentalidade demonstram que essa conduta é muito comum no trânsito diário.   

Em outra posição, aquela vontade de constituição a que Hesse23 se refere necessita ser impulsionada pela formatação de políticas públicas a partir do Estado. Nessa linha, o legislador vem atuando na construção de normas balizadoras de condutas consideradas ilícitas e que daí possam resultar em acidentes de trânsito, adequando, frequentemente, a Norma à realidade social brasileira.

A redação original da “lei seca” - art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro26 - que data do ano de 1997, sofreu modificações nos anos de 2008, 2012 e 2014, justamente para adequar a Norma à realística nacional referente à acidentalidade no trânsito. Em 2015 o Conselho Nacional de Trânsito editou a resolução nº 51727 que trata da habilitação profissional para condutores de veículos.

Visando à verificação de indícios de consumo de substâncias psicoativas passou a exigir dos motoristas, como condição indispensável para a renovação ou adição de categoria à Carteira Nacional de Habilitação (nas categorias C, D e E, necessárias aos motoristas profissionais), o exame toxicológico de larga janela de detecção de consumo de algumas substâncias psicoativas, com análise retrospectiva mínima de 90 dias.

Os exames verificam a presença no corpo humano das substâncias como: maconha e derivados, cocaína e derivados incluindo crack e merla, opiáceos incluindo codeína, morfina e heroína; "ecstasy", anfetaminas e metanfetaminas. Entretanto, quanto à questão do consumo específico de álcool, que é responsável pela maioria das infrações ao art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – conduzir veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada - não existem normas onde se estabeleça a necessidade de uma participação ativa do usuário, no sentido do controle de sua própria condição orgânica para o ato de dirigir. Nessa esfera, a conduta do motorista é resumida a submeter-se à fiscalização estatal quando houver.

Em discurso na direção do resgate da cidadania, entendida como a capacidade de traçar os próprios rumos político-sociais, Habermas28 aduz que o indivíduo é o destinatário final da Norma construída, em última análise, por ele próprio. Assim, a implementação de uma norma regulamentadora que estabeleça uma participação ativa do cidadão motorista no sentido de apresentar, de forma periódica e permanente, exames de alcoolemia (como condição indispensável para a manutenção de seu direito de dirigir), na intenção de informar à Administração Pública e, em síntese, a todo o corpo social, que está apto a conduzir veículo automotor na via pública pode ser uma ferramenta eficaz na mudança comportamental do motorista brasileiro.

A formulação de um modelo de conduta individual nessa direção, pela via administrativa, encontra guarida no discurso de Leal21 quando aponta para o surgimento de uma “matriz estatal de conformação dos interesses públicos e privados, com a presença mais marcante e, por vezes, interventiva, das instituições públicas à proteção de interesses e bens que são indisponíveis por pertencerem ao sujeito coletivo”, isto é, à comunidade, surgindo, então a figura do Estado Social Administrativo, o que se apresenta de forma cada vez mais emergente, em face até das demandas coletivas que vão explodindo com mais frequência e intensidade.

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CONCLUSÃO

O custo social com os acidentes de trânsito nas rodovias é muito significativo. Cada acidente fatal, envolvendo usuários com a capacidade psicomotora alterada pelo consumo de álcool, ultrapassa o patamar de meio milhão de reais. A estimativa dos custos desses acidentes no ano de 2014 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. E ainda o imensurável custo familiar e comunitário com a perda de vidas. A intensificação de políticas públicas voltadas para mudanças nessa realidade é fundamental.

Verificamos que o consumo de álcool é inerente ao homem histórico, esse costume acompanha a humanidade desde o primórdio dos tempos e é muito frequente na realidade brasileira. Nesse sentido, uma modificação comportamental do indivíduo demanda esforços bem mais significativos que a construção de norma proibitiva da conduta de beber e dirigir somada às diversas formas de fiscalizações estatais.

Há necessidade da formatação de uma consciência interna no sujeito e as campanhas publicitárias e esforços pedagógicos também não têm demonstrado uma eficácia satisfatória. O homem cidadão tem de tornar-se autor participante na construção de um outro cenário no trânsito. A realidade em que somente o Estado atue como partícipe ativo, na construção de políticas públicas adequadas ao enfrentamento da acidentalidade no trânsito, envolvendo usuários sob efeito de álcool, não apresenta condição suficiente para diminuir os custos sociais desses acidentes, posto que a norma proibitória está em vigor desde o ano de 1997.

O cidadão motorista precisa participar de uma forma mais atuante, mais contundente que não aquela de apenas submeter-se (passivamente) às fiscalizações estatais. A sugestão deste trabalho é a construção de norma administrativa - a exemplo da Resolução CONTRAN nº 517/2015 -  determinando ao motorista, como premissa necessária à manutenção de seu direito de dirigir e também como uma forma pedagógica de autoeducação, a realização periódica e permanente de testes de alcoolemia. Esse ferramental, aos nossos olhos, terá o condão de auxiliar na formação de uma consciência latente no motorista brasileiro quanto à periculosidade do ato de beber e dirigir.

 Por fim, se entende que cabe ao Estado – enquanto agente detentor do poder de regulamentação de condutas individuais com vistas à proteção dos bens inalienáveis por serem de “propriedade” do coletivo – a formatação de instrumental normativo a ser aplicado nesse importante segmento da acidentalidade no trânsito e, ao cidadão, uma atuação mais intensa como partícipe construtor de sua própria história social.

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Sobre o autor
Jorge Amaral dos Santos

Policial Rodoviário Federal. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Mestre em Direito, políticas públicas de inclusão social pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jorge Amaral. Violência no trânsito: custos sociais e importância das políticas públicas na mudança de comportamento do motorista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5111, 29 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58715. Acesso em: 26 abr. 2024.

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