O porteiro, o homem do campo e a Lei: o que Kafka tem a dizer sobre o Direito?

30/06/2017 às 22:20
Leia nesta página:

“O Processo” nos revela um poder judiciário arbitrário, injusto e parcial. Josef K, respeitável funcionário, foi acusado inocentemente, chantageado pelos guardas, não teve direito ao devido processo legal, não conheceu as acusações e, por fim, foi julgado e condenado por um misterioso tribunal. Estaria Kafka, em seu livro, dando-nos um alerta profético sobre os excessos burocráticos e parciais do Direito?

Apresentação

Neste ensaio trataremos brevemente de um importante diálogo presente no livro “O Processo” de Franz Kafka. Precisamente nos ocuparemos do nono capítulo, intitulado “Na Catedral”. O livro utilizado neste ensaio é o da tradução e organização de Marcelo Backes. Junto com Modesto Carone, Backes estabeleceu referência nacional em literatura Kafkiana no país.

O livro “O Processo” é um romance conhecido mundialmente com uma marcante história. Como quase tudo em Kafka, “O Processo” apresenta debates e reflexões importantes, sobre tudo de questões ligadas ao Direito. No capítulo supracitado, objeto deste ensaio, o homem comum surge diante de um aparato burocrático que parece ter a finalidade de impedi-lo de ter acesso à Lei. O Direito apresenta-se como algo inalcançável cheio de regras programáticas e discursos morais que segundo a parábola de Kafka, obstrui o caminho do homem comum.


O Processo: Uma verossímil história do Direito 

É comum nos tribunais, fóruns e escritórios de advocacia, encontrar esculturas e quadros que fazem referência a Têmis, deusa da mitologia grega encarregada de guardar os juramentos dos homens e da lei. Nas muitas imagens em uma das mãos, Têmis segura uma balança que simboliza o equilíbrio das decisões. Na outra mão, Têmis, que é filha de Urano e Gaia, segura uma espada que representa a força sobre os transgressores da lei. Por fim, a venda nos olhos da deusa representa a imparcialidade da justiça. 

Em apertada síntese, é dessa forma que o Direito é "vendido" nas faculdades. Também é dessa forma que o Direito é apresentado para sociedade. Todavia, será mesmo dessa forma que o Direito se manifesta no cotidiano das pessoas? 

A julgar pelo escritor praguense, o Direito não tem nada de justo, nem de imparcial, pelo contrário é a forma totalitária do Estado, ou melhor, a legitimação autoritária do poder de um soberano.  

Neste espetacular romance, escrito em 1914, já no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, Josef K, respeitável funcionário de um banco, logo após acordar, é subitamente detido por uma acusação que nunca foi formalmente apresentada. 

Ao longo da história, Josef K vai se embreando aos poucos nos meandros de sua culpa. Elementos perturbadores conduzem Josef K a uma desagregação da subjetividade onde o único elemento verdadeiro é o fato de ele ser um bode expiatório.

A intrigante história de Josef K foge à lógica de qualquer operador do Direito. O Processo de Kafka nos arrasta ao limite da racionalidade, contudo, o onírico conto é atualíssimo.    

A verdade é que “O Processo” nos revela um poder judiciário arbitrário, injusto e parcial. Josef K respeitável funcionário foi acusado inocentemente, chantageado pelos guardas, não teve direito ao devido processo legal, não conheceu as acusações e por fim foi julgado e condenado por um misterioso tribunal. Eis, portanto, o motivo pelo qual “O Processo”, de Kafka afiguram-se como um alerta profético sobre os excessos burocráticos e parciais do Direito. 


“Diante da Lei” 

Na referida parábola Kafkiana existem três personagens importantes: o homem do campo, o porteiro e a lei. Diante da lei trata-se de um diálogo entre Josef K e um sacerdote da catedral. Em suma, a parábola é a seguinte: O homem do campo chega ao porteiro para entrar na lei, mas o porteiro nega e diz que “ele não pode permitir sua entrada naquele momento”. Não obstante, o porteiro nunca revela ao homem do campo o momento de entrar na lei. A fim de olhar para o interior de onde se encontrava a lei, o homem do campo se acocora. O porteiro ri e adverte “eu sou apenas o mais baixo entre os porteiros. A cada nova sala há novos porteiros, um mais poderoso que o outro”. Não havendo o que fazer, o homem do campo esperou o momento adequado de entrar na lei, “e lá ele fica sentado durante dias e anos”. Já no seu leito de morte o homem do campo pergunta: “Como pode em todos esses anos ninguém a não ser eu pedir para entrar?” Então o porteiro revela: “Aqui não poderia ser permitida a entrada de mais ninguém, pois essa entrada foi destinada apenas a ti. Agora eu vou embora e tranco-a”. (Kafka. 2016, 246 - 247).

Crítica antissistema em “diante da lei”.

Desvendar os textos kafkianos é uma tarefa demasiadamente complexa haja vista o obscurantismo de sua obra que pode levar a inúmeras interpretações. Deve-se ainda, por razões metodológicas, situar o autor dentro de seu tempo a fim de evitar transmutar erroneamente seus textos sem levar em consideração o período vivido e os espectros que o rodeavam. Apesar das considerações metodológicas, o olhar de Kafka sobre o Direito de sua época pode ser considerado contemporâneo.

Como se sabe, Franz Kafka estudou Direito na Universidade de Praga. Quando concluiu o curso, Kafka empregou-se em 1908 numa companhia de seguro, como inspetor de acidentes de trabalho. Apesar de funcionário diligente, o trabalho na companhia o mantinha “ancorado à rude realidade das coisas, obrigando-o a fazer viagens frequentes a tediosa Boemia industrializada”. (LEMAIRE. p. 146). Essa situação sempre o deixou insatisfeito, pois a rotina extenuante na companhia de seguros impedia Kafka de dedicar-se inteiramente a atividade literária. Esse ambiente vivenciado por Kafka fará o Direito aparecer constantemente em suas obras.

Sobre a parábola “diante da lei” não se sabe, precisamente, o que Kafka quis dizer, tendo em vista que o conto apresenta uma aparente contradição, pois se o portão estava aberto e se a lei era destinada ao homem do campo, porque ele não entrou?

Para alguns estudiosos de Kafka, como Jacques Derrida, a porta estava aberta, mas apesar disso a lei permanecia inacessível com o porteiro obstruindo a porta. Derrida considera então que a questão é que o homem do campo para ter acesso à lei deveria ter decifrado antes a própria lei e seus enigmas.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Desse modo, segundo Derrida, pode-se dizer que a inlegibilidade da lei converte-se no não acesso da própria lei. Essa inlegibilidade acaba dissipando a possibilidade do “homem comum” de caminhar diante da lei.

A verdade é que, para compreender a literatura Kafkiana, é preciso superar o aparente, e ir ao âmago radical e crítico do espirito de Franz Kafka, o qual Michel Lowy chama de “sonhador insubmisso”. 

Será o perfil radical a marca de Kafka que pode ser vista em todas as suas obras como, por exemplo, na sua posição antiautoritária em “Cartas ao Pai”. Carta com mais de 100 páginas endereçada a Hermann Kafka o qual é chamado de “tirano”, “regente”, “rei” e de “Deus”. Ou ainda na sua crítica ao modelo burguês de família em “A Metamorfose”.

Da cordo com esse perfil insubmisso, radical e diante da própria posição em que se encontrava Kafka de crítico do moralismo e burocratismo presente no Direito, será a interpretação de Michael Lowy a que mais se aproxima do espírito Kafkiano sobre a real intensão de Kafka na parábola “diante da lei”. “(...) o homem do campo deixou-se intimidar, não é a força que o impede de entrar, mas o medo, a falta de confiança em si, a falsa obediência à autoridade, a passividade submissa”. (LOWY. p. 71-72).

Portanto, o homem do campo não adentra na lei por subserviência a uma ordem de um tirano, neste caso o próprio porteiro é a personificação deste tirano.

Diante da lei: a produção, o monopólio e a destinação das leis.

Na parábola “diante da lei”, o porteiro simplesmente diz ao homem do campo que esse não pode adentrar na lei, não explica, não facilita e ainda por cima aceita suborno, contudo, não permite a entrada do homem do campo na lei. 

Por outro lado, o homem do campo se mostra submisso, passivo, aceita e curva-se diante do primeiro burocrata até sua morte. O homem do campo morre e sequer passou do primeiro portão. 

Essa metáfora kafkiana, contida na parábola “diante da lei” é uma síntese do Direito burguês e do seu sistema judiciário, tão comumente vivo no cotidiano das massas subalternizadas.

Ao fim, o que esta parábola revela é que a produção, o monopólio e interpretações da lei não pertencem ao homem do campo, pelo contrário; tudo se dava fora dele. A determinação de não entrar na lei é imperativa, é imposta, é determinada e cumprida pelo guardião da lei. 

Todos os dias operadores do Direito (nomenclatura apropriada, pois o Direito não é ciência, mas uma técnica jurídica) e os trabalhadores são convidados à noção de que o Direito e a ideologia jurídica serve a todos e que somos sujeitos de Direito. Ledo engano! 

O Direito não serve a todos! Afirmar que o Direito serve a todos é deformar a realidade objetiva da sociedade capitalista onde se conformam duas classes sociais fundamentais com interesses e objetivos historicamente opostos. Do mesmo modo não dar para compreender a forma “sujeito de direito” fora das relações de produção capitalista.


Conclusão 

Este Livro de Kafka, ou melhor, neste diálogo entre Josef K e o sacerdote do tribunal, que dá o nome a parábola “diante da lei”, desvenda o paradigma de uma justiça: racional, burocratizada e autoritária, que está sob o controle de uma autoridade que subjuga os mais fracos. Diante da lei, portanto, é uma alegoria que apresenta conceitos e a própria visão de Kafka sobre a lei e o Direito.

Aparentemente enigmático, “diante da lei” é sóbrio e contemporâneo, mas principalmente é uma denúncia, uma alerta de Franz Kafka à esquizofrenia do mundo capitalista e do seu Direito.   


Referências 

FRANZ, Kafka. O Processo, Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.

LEMAIRE, Georges Gérard. Kafka, Porto Alegre: L&PM Pocket, 2015.

LOWY, Michael. Redenção e Utopia, São Paulo: Cia das Letras, 1989.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos