4. Questionamentos a partir da moderna definição do Mandado de Injunção adotada pelo STF
Os julgamentos dos Mandados de Injunção n.os 721, 670, 712 e 708 no STF tiveram o condão de conferir uma nova visão do instituto, cuja decisão tornou-se capaz de alcançar uma efetividade nunca antes sentida. O STF, inspirado na corrente não-concretista, superou a jurisprudência tradicional, para, nos casos em exame, conceder, aos titulares dos direitos obstruídos pela inércia legiferante, a sua plena fruição.
Verifica-se a possibilidade de utilizar-se da integração analógica em todos as quatro lides em apreço, com o afã de preencher lacunas técnicas que eram entrave à percepção do sistema jurídico em sua unidade. Portanto, diante da omissão inconstitucional do órgão responsável pela edição da lei regulamentadora, o STF assumiu a função de legislador provisório, emprestando-se das normas gerais para aplicá-las às especificidades das situações dos demandantes, com fulcro em antiga lição doutrinária.
Ademais, transcendendo os efeitos decisórios às partes das lides, nos MI n.os 670, 712 e 708, estendeu o emprego de legislações genéricas e abstratas aos casos análogos, no sentido de, na continuidade da indiferença legislativa, os servidores públicos poderem exercitar o direito de greve, nos termos da legislação aplicável aos trabalhadores em geral.
De início, levantou-se crítica a tal postura jurisprudencial sob o argumento de usurpação da competência legislativa pelo Tribunal. Contudo, em verdade, exige-se do magistrado no Mandado de Injunção que viabilize o exercício de direito, e não se faz isso, com a exclusiva declaração da mora legislatori e a infrutífera ciência ao órgão incumbido de editar a norma. Destaque-se a inocorrência de agressão à democracia, nesta conjuntura, pois tanto os parlamentares eleitos pela população quanto os membros do STF compartilham do objetivo de permitir concreção às normas constitucionais:
A nova roupagem a que o STF dá ares de assunção (corrente concretista) parte desta visão acerca da atribuição que lhe foi conferida. A tensão que poderia haver entre a constitucionalização do Direito e a democracia, não procede também neste debate. Isso porque o Mandado de Injunção é um instrumento de constitucionalização, pois impõe ao legislador sua atuação na regulamentação de um direito constitucional precário; por sua vez, a democracia encontra sua expressão máxima na atribuição da vontade de povo por meio de seus representantes, consubstanciados na figura do Poder Legislativo. Quero dizer com isso que tanto o Mandado de Injunção, como instrumento processual hábil a consecução da constitucionalização do Direito, bem como o Poder Legislativo, como órgão maior da democracia, apontam para a mesma direção: efetivação dos anseios de um Estado Democrático de Direito. inefetividade.[94]
A ofensa ao princípio da Separação de Poderes resta desconfigurada, pois este encargo integrativo jurisdicional foi designado na própria Constituição Federal ao prescrever o writ. A garantia é instrumento da teoria dos freios e contrapesos, para corrigir a abstenção lesiva de outro Poder, o qual não teria se desincumbido de editar a legislação regulamentadora. Através do Mandado de Injunção, os atos dos Poderes Estatais se harmonizam e o cidadão pode desfrutar dos direitos de eficácia limitada apesar da ausência de lei integrativa. A Corte Suprema na visão concretista encarrega-se não só de velar pelo resguardo da validade da Constituição como também pela proteção integral das suas normas, dando-lhes a máxima concretude.
Questiona-se se o STF pretende adotar a tese concretista nos próximos julgados, irrestritamente, ou apenas nas ocasiões singulares, nas quais for constatada a reiterada conduta omissiva. Da análise dos votos e debates dos Ministros nos MI n.os 670, 712 e 708, verifica-se a acentuada preocupação em ressaltar a peculiaridade das situações em apreço, justamente para não se afastar completamente do entendimento clássico sobre a matéria. Indubitável o receio por muitos Ministros da Corte em assumir uma típica atribuição legislativa em ter de legislar sobre todos os casos de privação de leis. Tanto que a escolha em conferir efeitos erga omnes à decisão tem por fito também evitar o ajuizamento de ações semelhantes a tumultuarem o processamento das restantes das causas constitucionais.
As matérias trazidas à apreciação do STF nos MI n.os 670, 712 e 708 eram bastante simples e rotineiras no quadro brasileiro. A falta de lei de greve jamais impediu a paralisação no serviço público, a qual se apresentava, porém sem qualquer controle e à margem social. O regramento proposto pelo STF afastou a lacuna legislativa até a criação da lei específica e ainda autorizou a deflagração do movimento pelos demais servidores públicos, preenchidos os requisitos, dentre os quais a chancela do foro laboral. Esta medida de transferir a competência para averiguar o enquadramento do caso concreto limita a abrangência prática dos efeitos erga omnes.
Noutra margem, no Mandado de Injunção n.º 721, sob a Relatoria do Ministro Marco Aurélio, transmudou-se a posição habitual, para regulamentar aposentadoria especial de forma concretista. Em paralelo aos julgamentos adrede citados, neste, por unanimidade, cingiu-se às partes litigantes. Portanto, extemporâneo sustentar a adoção sem ressalvas pelo STF da amplitude erga omnes dos efeitos concessivos injuncionais.
Indispensável atentar para os ulteriores julgamentos em injunção no STF para constatar-se qual a postura a ser trilhada. Por sinal, no Mandado de Injunção n.º 695/MA, apesar do Relator Ministro Sepúlveda Pertence[95] se limitar a acolher o pedido autoral de reconhecer a mora e notificá-la ao Legislativo, conforme o princípio da adstrição, foi incitada abstratamente uma modificação do entendimento não concretista do Supremo[96].
Registre-se ainda a possibilidade da opção a ser sedimentada dependa de fatores específicos, tais como a manutenção da mora Administrativa, da relevância do tema, ou ainda da sua simplicidade. Estes elementos podem permitir, na concepção majoritária dos Ministros, prolatar-se decisão com efeitos gerais. Ante as referidas circunstâncias, ao contrário, talvez se torne preferível a edição de súmula vinculante, do modo sugerido pelo Ministro Barbosa Moreira, afastando o ajuizamento de demandas futuras. Pode-se talvez ser preferível o exame isolado de cada evento fático para só, então, enunciar-se o voto delimitando o alcance da injunção específica.
5. Considerações Finais
Inobstante todas as normas constitucionais sejam dotadas de eficácia jurídica, algumas possuem concretude limitada à edição de outro dispositivo. No caso dessas espécies normativas, o constituinte originário, inobstante tenha assegurado-lhes o direito, evitando ulteriores questionamentos acerca da adequação à Carta, delegou ao Legislador a competência para desenvolver tais matérias, justamente por entender preferível a flexibilidade das leis, neste disciplinamento, a cláusulas constitucionais mais rígidas. E mais, a oportunidade de fixação em legislação ulterior permitiria o debate com a sociedade sobre as referidas questões.
O constituinte prevendo que o legislador talvez se abstivesse de cumprir plenamente os desígnios constitucionais, criou o mecanismo do Mandado de Injunção para combate à inefetividade constitucional.
Todavia, o próprio writ injuncional recebeu interpretação restritiva do STF. Nessa trilha, sob alegação de respeito ao princípio da Separação de Poderes, de início não foram colmatadas pelo Judiciário as lacunas reclamadas, somente comunicando-as ao Poder Legiferante para que regulamentasse os preceitos. Constatou-se, no entanto, que apesar de ciente da omissão inconstitucional, o Legislativo permanecia indeterminadamente sem editar as normas faltantes, impossibilitando a fruição de direitos.
Vários dos preceitos de eficácia limitada jamais foram concretizados, por ausência de interesse legiferante. Hodiernamente, após duas décadas da promulgação da Lei Fundamental, manifesta-se inescusável a obstrução de direitos por ausência de regramento. O Legislativo é conhecedor do seu encargo. A abstenção verificada é indevida e deve ser afastada.
O vazio normativo indefinido fragiliza a Constituição, em decorrência da incerteza quanto à concreção de suas normas. A incredibilidade da Carta Magna torna-a precária frente às necessidades da população. A falta de compromisso legiferante em conceder plena exequibilidade à Constituição, cujo teor ainda apresenta artigos sem exercício, não repercute só na mera inexistência de regramento, mas gera também entraves para solução de discussões jurídicas relativas ao exercício de direitos constitucionais.
Com a privação de efeitos concretistas à decisão injuncional se conferia ao Legislativo à opção de dar efetividade à norma constitucional, sem a ele caber esta discricionariedade. Embora seja permitido ao Legislativo editar lei mais ou menos benéfica ao titular, não lhe pode inviabilizar direito garantido na Carta Maior.
Em consequência, nota-se o crescimento do Judiciário, através de uma postura mais ativa, com o fim de suprir o espaço deixado pelo Legislativo. O Judiciário preferiu não mais se manter conivente à inércia Legiferante e passou a enunciar provimentos satisfativos.
O ponto nodal a ser registrado é a excepcionalidade da medida jurisdicional aditiva em Mandado de Injunção, por incidir somente nas situações constitucionalmente previstas, sem representar interferência nas atividades legislativas nem obrigar outro poder a atuar. Outrossim, não acarreta usurpação de atribuição Legiferante, pois se firma em competência constitucionalmente fixada.
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