Capa da publicação A necessidade de desescolarizar o ensino jurídico
Artigo Destaque dos editores

Vírgula de água: ensino jurídico desescolarizado

Exibindo página 2 de 3
20/07/2017 às 11:02
Leia nesta página:

4. O ENSINO JURÍDICO COMO FONTE DO DIREITO

Em “Sobre a impossibilidade de ensinar direito: notas polêmicas para a desescolarização do direito”, Luís Alberto Warat propõe pensar o ensino jurídico como fonte do direito. Esclarece:

“(...) o ser jurista é um produto das faculdades de Direito. Ninguém pode ser advogado de um jeito diferente ao escolarizado. É nas escolas de Direito onde se produzem os sentidos das sentenças, onde se estabelecem os pontos de conjunção dos diferentes fragmentos normativos (Jairo Bisol). Passar por essa instrução deixa a muitos advogados formados num conflito desumanizante entre a autoconsciência e o papel imposto” (2004, p. 432).

Antes de avançarmos, necessário evocar a expressão “senso comum teórico dos juristas”, engendrada pelo mesmo Warat, sob a influência de Althusser. Importante porque é o próprio ensino jurídico quem engendra esse “senso comum”, representando, por sua vez, a “condição de produção dos diversos discursos jurídicos” (2004, p. 33). Em outra oportunidade, demonstramos como o senso comum teórico dos juristas controla os atos dos destes últimos (AMORIM, 2013, 1-4).

Por meio da epistemologia tradicional, o ensino jurídico preconiza certa pureza de um conhecimento tornado teoria, dando, por consequência, ao jurista a percepção de uma atividade profissional imaculada e cristalina. É tudo quanto basta para afastar este mesmo jurista da pertinente consciência política, o qual, através desse ludíbrio, passa a acreditar-se apartado de responsabilidade e compromisso ante o reflexo de seus atos na vida dos homens.

Em concórdia ao que sustentamos, Antônio Alberto Machado, explana:

“Apesar de tais evidências de que o direito encerra mesmo um conteúdo axiológico, o fato é que o direito liberal burguês, na modernidade, procurou sempre produzir um discurso tendente à ocultação dos aspectos valorativos, tanto da produção quanto da aplicação e também do ensino do direito. No século XX, por exemplo, a ideologia jurídica prevalecente, normativista e positivista, logrou um espantoso êxito nessa tarefa de ocultar as dimensões axiológicas do direito e de sua ciência, impondo-se como a mais prestigiada maneira de conhecê-lo, aplicá-lo e transmiti-lo de modo politicamente asséptico” (2005, p. 40).

Tal assepsia culmina no que Warat chamou de “cultura detergente” (2004, p. 62), isto é, um pensamento sem sujeira. O que se nos afigura absolutamente perigoso e pérfido, precisamente por, ocultando a substância dos enunciados, ser enxertado nos estudantes com grande facilidade. Sabemos, ao chegarmos ao curso de direito, a escola já nos tornou partes dela, escolarizando-nos, de modo que nos adaptamos às exigências para as quais não concorremos nem sabemos quais as suas origens. Enquanto juristas em formação, já suficientemente dóceis por todo esse processo anterior, esses discursos prescritos pela dogmática exsurgem como alimento de sabor deleitoso, suave, facilmente digerível.

Daí que não se pode olvidar o secreto currículo, apontado por Illich e retomado por Warat, existente nas faculdades de direito. É precisamente ele que “regula os modos silentes em que se aprende a ser um bacharel em direito, a serviço da concentração de riqueza, hoje a serviço do pensamento único que legitima a economia e o modo de fazer (não fazendo) política no Império” (2004, p. 433).

Neste aspecto, importante urdir algumas palavras a propósito dos meios pelos quais o ensino jurídico difunde a sua pureza, ao tempo em que opera nas fissuras dos próprios discursos. Isso porque Marilena Chauí, em seu “Cultura e democracia”, ensinou-nos que o discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, tal qual uma frase na qual houvesse lacunas. Por tal, cumpre-nos completá-las.

Por meio do ensino jurídico, há uma certa caricatura da figura do técnico, gerando, inclusive, certa fetichização da técnica. Na graduação, nada mais corriqueiro do que ouvir da boca de um docente o clichê “precisamos ser técnicos”. Com tal chavão, intenta afastar qualquer reflexão mais detida e aprofundada, é dizer, afugentar tudo o que representa ameaça ao que serve de arrimo à dogmática jurídica. Sabendo disso, Paulo Freire (2009, p. 27) se opunha a expressão “tia”, utilizada nas escolas. Para ele, reduzir a professora à condição de tia representa uma armadilha ideológica. No que concordamos. Referente ao ensino jurídico e à própria prática forense, a figura do técnico exsurge para fazer do jurista um simples burocrata, operador de leis, sem qualquer compromisso com o que desborde o campo normativo. Um ardil que merece atenção.

Theodor W. Adorno, em “Educação após Auschwitz” (1995, p. 133), ao problematizar a fetichização da técnica, exemplifica com o homem que, projetando um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com mais rapidez e fluência, olvida o que acontece com estas mesmas vítimas. Parece pertinente pensar isso interior ao direito. Através da técnica jurídica (ou invenção de uma técnica própria), o jurista tende a esquecer o local para onde são levados os que, por ele, são reificados em autos etc. Bem por isso, pensando o ensino jurídico, não podemos esquecer a lição do autor, para quem a exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.

Ora, em códigos, jurisprudência e preleções dogmáticas, uma ação de reintegração de posse nada sabe de indigentes que ficarão sem teto, para satisfazer a vontade de uma única pessoa, dona de outros tantos imóveis. A abstração, propalada por professores e doutrinas jurídicas, esquecem que, sob palavras, corpos são premidos. Por tal, o estudante, afeito a todas essas explicações, quando tem de enfrentar a atividade jurídica, só sabe agir com o auxílio de muletas de abstração. E então que uma fome não é fome, caso não esteja prevista em dispositivo qualquer. Tudo para, ao revés do que relatou Duncan Kennedy (2014, p. 24), “no sacar a los estudiantes del contexto idealizado de la facultad de derecho, donde no teníam posibilidad alguna de entender cómo son en realidad las cosas, y exponerlos a la vida em estado crudo”.

Aqui, como se vê, os discursos jurídicos alcançam o objetivo precípuo, qual seja, a “aderência ao opressor” (1987, p. 32). Não esquecendo, ademais, do que Paulo Freire chamou de “prescrição”, isto é, “o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores” (1987, p. 32). No direito, no entanto, ainda que continuem sendo estranhas, as pautas são facilmente assimiladas, justamente porque, através da escolarização do ensino jurídico, o jurista é, de imediato, reconhecido na figura do suposto vencedor, o que, ato contínuo, faz-lhe perseguir o triunfo como único objetivo de vida.

A escolarização, neste ponto principalmente, cumpre seu papel. Bem por isso, acerta Ivan Illich (1985, p. 47), ao dizer que o universitário foi escolarizado para desempenhar funções seletas entre os ricos do mundo. Não para refletir sobre a própria condição, mas para atender, como contraprestação de um serviço, todas as exigências necessárias à permanência desse estado de coisas.

Boaventura de Sousa Santos, em “Para uma revolução democrática da justiça”, traz-nos um exemplo interessante a propósito da perniciosidade ocasionada pela escolarização. Vejamos:

“A título de ilustração, não posso esquecer um episódio que se passou com uma assistente minha num projeto de investigação que realizei na Colômbia. Era indígena e frequentava o primeiro ano da Faculdade de Direito da Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. Numa aula de direito civil, em que o professor lecionava que a terra é um objeto de propriedade, que se compra e se vende, ela pediu para falar e disse: 'Mas, professor, em minha comunidade não é assim, nós não podemos possuir terra porque nós somos parte dela, a terra não nos pertence, nós é que pertencemos a ela'. Ao que o professor respondeu, rispidamente: 'Eu estou aqui para ensinar o Código Civil, não me interessam outras concepções” (SANTOS, 2011, p. 94).

Ora, dentro da escolarização do ensino jurídico, alguns valores triunfam sobre outros, como sempre acontece. Assusta-nos, no entanto, a escolha entre quais serão os prevalecentes: a propriedade sobre a vida, o direito individual sobre o difuso etc. Sabemos, apesar, que a dogmática jurídica, escamoteando os próprios interesses, vez por outra anuncia o contrário, de sorte a legitimar a própria arbitrariedade. De modo que a escolarização, ao tornar secundário tudo o que não pode ser mensurado, sobretudo em ouro, faz com que aceitemos toda sorte de hierarquização. Revelou-nos Illich (1985, p. 63): “Numa sociedade escolarizada, a guerra e a repressão civil encontram uma justificativa educacional”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Como já se vê, são várias as facetas da escolarização utilizadas pelo ensino jurídico. Não se nos parece possível esgotar o tema nesta oportunidade, o que, aliás, não pretendemos. Ademais, retomando o que expomos inicialmente, não desconhecemos a ambiguidade característica ao tema educação. De tal modo, não somos irresponsáveis ao ponto de ignorar certa medida de adaptação. Até porque temos consciência das necessidades cotidianas, que não podem esperar.

Da mesma maneira, não nos parece pertinente estancar na adequação. Ao revés, ao tempo em que se adapta minimamente, busca-se, através da conscientização e consequente emancipação, outras possibilidades, porquanto já consciente da mediocridade da situação tal como se apresenta. Foi Paulo Freire (2009, p. 30) quem alertou a propósito de sempre haver algo diferente a se fazer em nossa cotidianidade educativa.

De modo que, com a “teoria da semiformação”, pensada por Adorno, necessitamos ter clareza de que a formação, por si só, não basta. Ora, Wolfgang leo Maar (1995, p. p. 11), sublinhemos, demonstrou que a educação não é necessariamente um fator de emancipação. É preciso ir além dos diplomas, da hierarquia dos títulos, sob pena de sucumbir à dinamicidade da emancipação. Mesmo porque o nosso país, repleto de bacharéis, representa o grande fracasso em se apostar numa escolarização do ensino jurídico. Sendo assim, aos que, no imediatismo, julgarem quimera tudo quanto dito nestas linhas, basta olhar ao redor e verificar o quanto uma sociedade escolarizada, pedagogizada pode alcançar o paroxismo da mediocridade, a qual, se quiserem, poderão designar com outra palavra. O que, no fundo, não altera nada.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recordamos, de imediato, a voz distante de Roberto Lyra Filho (1984, p. 7) cujas palavras combatem os críticos que, insatisfeitos com os muros reacionários do ensino jurídico, desertam, buscando locais nos quais o trânsito é livre e demasiado plácido. Um modo, parecenos, de vociferar conscientemente em vão, falto de força para enfrentar o que se nos apresenta equivocado.

Como se vê, não há aqui, ao apontarmos catástrofes, mensagem qualquer de desencorajamento. Todo o contrário, ao preenchermos as lacunas dos discursos da escolarização, queremos desvendar tudo quanto se dá furtivamente, derribar biombos, para, em seguida, refletir sobre outros horizontes, torná-los possíveis. Sem, no entanto, cair no erro de, ao destruir um dogma, erigir outro.

Ao revés, necessário eliminar a figura do explicador, de sorte a possibilitar a autonomia de cada um, cada qual bosquejando a própria emancipação. Aqui, devemos evocar Rancière (2015, p. 66), que, através de suas reflexões e escrita, revelou-nos a fantasia abrigada pela toga de Paris para, em seguida, anunciar-nos a consequência da consciência, em cada um de nós, dessa desilusão. Ora, ao inexistir explicador, como constatação autorizada, já não se poderá evocar a distinção entre inteligências, restando arruinados imposição, subordinação, erro e culpa incutidos por discurso de poder.

Já agora percebemos o quão urgente se faz a desescolarização do ensino jurídico. Um modo de exercitar a igualdade, tão pronunciada em salas de aula, e autonomia. Urgente porque os discursos de poder, dia a dia reiterados, condicionam a prática do jurista que acaba por acreditar, como única possibilidade, nesta paisagem de arrogância e sequidão. Por isso, o título deste artigo. Uma vírgula de água representa fresta na pedra, neste instante, capaz de chorar e sentir não a piedade que mascara outros interesses, mas a dor de quem descobriu uma ferida que acende. Porque o jurista tem de saber que, por detrás de palavras que ordenam, que prescrevem coisa qualquer, repousa um corpo que nada sabe de abstração, posto que é fome, frio, dor, desejo.

De resto, o conto “Nova Califórnia” (1997, p. 195-204), de Lima Barreto, aparece-nos como alerta. O olhar hierarquizante e utilitarista, encontrado no ensino jurídico (e em tudo o mais), acaba por enxergar, onde queremos pessoas, ossos capazes de se converterem em ouro.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Breno S.. Vírgula de água: ensino jurídico desescolarizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59210. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos