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Uma errada comparação

01/08/2017 às 10:57
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O jurista Manuel Gonçalves Ferreira Filho apresenta o ministro Gilmar Mendes como “o maior inovador do direito constitucional brasileiro desde Rui Barbosa”, ao analisar o livre "Onze Supremos". Saiba, então, um pouco mais sobre a vida e obra de Rui Barbosa e decida, por si só, se estamos diante de uma errada comparação ou não.

A título de criticar o livro “Onze Supremos” – organizado pelos professores Joaquim Falcão e Diego Werneck Arguelles, da FGV Direito Rio, e pelo jornalista Felipe Recondo, fundador do site “Jota“–, o jurista Manuel Gonçalves Ferreira Filho apresenta o ministro Gilmar Mendes como “o maior inovador do direito constitucional brasileiro desde Rui Barbosa”. 

Não concordo com a comparação. 

Rui Barbosa teve, em sua formação, a Inglaterra e os Estados Unidos. Ele era um liberal e deixou patente suas ideias quando da chamada campanha civilista, em 1910 quando concorreu a presidente da República numa eleição vencida por Hermes da Fonseca. O papel de Rui Barbosa sempre foi, como jurista, advogado, jornalista, na defesa dos direitos e garantias individuais.

Dizia: "A liberdade não é um luxo dos tempos de bonança; é, sobretudo, o maior elemento de estabilidade das instituições." - "Obras completas de Rui Barbosa" - Página 208, de Ruy Barbosa - Publicado por Ministério de Educação e Saúde, 1942.

 Apesar de sua formação fiel ao ideário de seu tempo, com sua vida incontestável e inquieta, não se esgotou na procura de ingredientes para os receituários indispensáveis ao aperfeiçoamento da legitimidade democrática, pois, nessa procura, sem esquecer o Brasil que estava sendo, aspirava o Brasil que deveria ser. Numa das últimas vezes em que foi ao Senado, disse, acudindo a um aparte: — "Eu falo para o futuro!" E, por isso, ressoam suas lições em nossos dias.

Se, para Castro Nunes, em sua conferência sobre Rui e O Espírito Judiciarista, era, ele antes do mais, um advogado* — 187 — das instituições judiciárias, é porque sempre Rui sustentou que o regime só poderia valer no seu alcance político, mantido pela alertada sensibilidade da justiça, dotada de ampla competência corretiva". (Arquivo Judiciário. Suplem., 5-4-1937).

Na campanha presidencial de 1910 podia dizer: — "Anunciar, num programa "a imparcial distribuição da justiça", a sua boa, equitativa e rigorosa distribuição, não vale nada, quando o comentário da realidade o contradiz, com a flagrância mais flagrante dos atos". Preocupava-se, diante disso, com os tribunais coletivos, pois que, para êle, "a publicidade com que funcionam as suas deliberações, com assistência das partes, a formação natural do juízo nos magistrados na assentada, com o desdobrar das provas e o correr dos debates, a prol ação oral dos votos sob a impressão viva do embate entre as pretensões contendentes na cena do plenário, são tantos outros elementos de responsabilidade, sinceridade e moralidade, que avantajam este último sistema".

E faz ver que "a ele porém se ligam essencialmente a abolição do processo escrito e a adoção do processo oral. Os autos devem reduzir-se a proporções elementares, contendo, unicamente, os documentos fundamentais da defesa. Um  registro obrigatório, instituído especialmente com este mister, receberia mediante exaração especial, todas as peças do feito, das quais, por traslado autêntico, se daria conhecimento simultaneamente, aos membros do tribunal e aos representantes das partes. E pugnava para que se concentrasse no Supremo Tribunal Federal toda a jurisprudência do país, mediante recursos para esse Tribunal, das sentenças da justiça dos Estados, em matéria de direito civil, penal e mercantil"

Rui chegou a sustentar, durante o governo de Floriano Peixoto, com as garantias constitucionais suspensas, que o Poder Judiciário alcança, com sua intervenção, até ao exame dos poderes discricionários. "É da alçada incontestável do Poder Judiciário, diz êle, examinar a extensão dos poderes políticos. Se a autoridade invoca uma atribuição inexistente, embora discricionária dentro de seus limites, não pode a justiça recusar socorro legal ao direito individual ou do Estado".

E o raciocínio de Rui assim se distende: — "Quando há uma questão entre partes, a solução é dada pelo juiz, que exerce o poder de julgar, que é o poder, no dizer de João Barbalho(que foi com Rui Barbosa um dos maiores comentaristas da primeira constituição republicana), de reconhecer e declarar o direito. Mas a missão do juiz, não fica nesse espaço. Não é só mediante ações (se o termo que se usa aqui é juridicamente), que se promove, em juízo, o reconhecimento ou declaração de um direito. Em muitos processos judiciários, que nunca se chamaram ações (ao menos no sentido próprio do termo), se alegam, envolvem e resolvem direitos de relevância considerável".

Lutou com coragem contra um governo autocrática. Veja-se o que digo abaixo:

No Brasil, Floriano Peixoto era conhecido como autoritário e criou animosidades entre os poderes, acreditando que o Judiciário não tinha legitimidade. Dir-se-ia que ele enfrentou um modelo institucional republicano que ainda não estava consolidado e não apresentava a necessária clareza com relação aos poderes. Durante sua ditadura, três ministros foram cassados e teve, nos quase três anos, à frente da Presidência, no final do século XIX, cinco indicações rejeitadas para o Supremo: Barata Ribeiro e os militares Innocêncio Galvão de Queiroz, Ewerton Quadros e Antônio Sève Navarro e ainda Demosthenes da Silveira Lobo. Reprimiu a revolta da armada e contribuiu para o conceito de unitarismo tão ao modelo dos caudilhos. Rui Barbosa enfrentou suas ideias e passou uma temporada na Europa, onde escreveu “Cartas de Inglaterra, como ficou conhecida a sua colaboração ao Jornal do Comércio. Discordando do golpe que levou Floriano Peixoto ao governo, requereu habeas-corpus em favor dos cidadãos presos pelo governo ditatorial de Peixoto. Como redator-chefe do Jornal do Brasil, abriu campanha contra a situação florianista. Em 1893, foi obrigado a se exilar.

Foi Rui Barbosa um antiescravocrata, tendo lutado por um Estado Laico e pela secularização dos cemitérios quando do começo da República em 1889, que apoiou.

Como filólogo foi fundamental sua obra Réplica, discutindo aspectos com relação a redação do Código Civil. Como estudioso de economia, teve papel polêmico no encilhamento, quando ministro da Fazenda no primeiro governo republicano. Como estudioso da Igreja escreveu o Papa e o Concilio, obra exemplar no estudo do ultramontanismo. 

A isso se some seu papel na defesa das nações em crescimento como se deu em Haia, em 1907. Destacou-se como conferencista no Brasil e em países como a Argentina, na Holanda. A formação de Rui Barbosa foi formada sob o binômio liberdade e patrimônio. Na campanha de 1919, em que foi derrotado por Epitácio Pessoa, outro grande jurista, apresentou ideias sociais que seriam desenvolvidas mais tarde pelo movimentos em defesa desses ideais.

Já a formação germânica, de juristas voltados para o constitucionalismo daquele país, mesmo antes da guerras mundiais, era baseada no binômio sangue-terra. Rui Barbosa não seguia essa linha.

Volta-se hoje à Alemanha, por seus estudiosos, por teorias concretistas da Constituição, a da teoria discursiva, de cunho democrático, pós-segunda guerra, para um patamar que não vê mais a Constituição apenas sob o ângulo abstrato, como se via em Kelsen e os adeptos da escola de Viena. A democracia discusiva, pós-guerra é uma teoria de Kant, vista não mais pelo ponto de vista estático, mas dinâmico(norma como consenso), na busca da real natureza da norma.

Rui Barbosa buscou a teoria e prática dos direitos. As teorias jus-racionalistas de Kant e seus seguidores vêem a norma como ponto de partida. Essa a linha dos estudiosos da linha alemã e dos que estudaram as decisões de seu Tribunal Constitucional, ainda sob o Ato Fundamental de Bonn, de 1949. É o binômio Estado normativo- liberdade. 

Toda essa linha de pensar germânica tem raízes em Kant, que entendia o direito, ao mesmo tempo, como fenômeno, produto da razão prática, imperativo categórico e categoria existencial de relação-reciprocidade, sem, contudo, afastar-se da outorga essencialista, que era a sua posição fundamental. Admitia ao lado do direito positivo o direito natural, enxergando o direito como faculdade. Era assim de tudo um dogmático em matéria de juízo de ordem prática, pois prescrevia, era ordenadora da ação como meio de chegar a um fim, efeito do direito. Era a tônica do constrangimento para garantir a liberdade.

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Rui Barbosa, ao contrário de muitos desses pensadores de linha germânica, não pensava pró-Estado, mas pró-cidadão. Via no Judiciário a via de socorro para o cidadão tolhido por ilegalidade ou abuso de poder.

Quando o estado de sítio foi decretado, em consequência  da revolta provocado pela vacina obrigatória, mostrou Rui o perigo em que corria a Nação, com a anulação do Poder Judiciário. E citava um acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 16 de abril de 1898, que dizia, em um de seus primeiros consideranda: — "A imunidade inerente à função de legislar, importa, essencialmente, na autonomia e na independência do Poder Judiciário, de sorte que não pode estar incluído entre as garantias constitucionais que o estado de sítio suspende, nos termos do art. 80 da Constituição, pois, de outro modo, se ao Poder Executivo fosse lícito arredar de suas cadeiras deputados e senadores, ficaria à mercê de seu arbítrio e, por isso mesmo, anulada a independência desses outros poderes políticos, órgãos, como êle, da soberania nacional. (Constituição, art. 15).

E o estado de sítio, cujo fim é defender a autoridade e o livre funcionamento dos poderes constituídos, converter-se-ia em meio de opressão, senão de destruição de um deles". (Sentença de dezembro de 1893, da Suprema Corte Argentina, no recurso de habeas corpus do senador Alem).

A teoria brasileira do habeas corpus e o pensamento da posse dos direitos pessoais, como sucedâneos do habeas corpus bretão, são um exemplo disso, na busca de Rui Barbosa pela fiel defesa das liberdades públicas. 

As soluções de Rui Barbosa não foram pró-governabilidade e nem voltadas para um modelo jurisdição normativa ou favorável a conveniências do status quo. Daí devemos defender sua memória, num país que já viveu várias crises de governabilidade. Na oração aos moços, quando fez um balanço àquelas novas gerações, como advogado, jornalista e político, fez várias reflexões. em 1920.

No atualíssimo discurso, Oração aos Moços, o grande jurista desabafou sua descrença nos homens ao proferir a célebre frase: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”

Posto isso, lembro excelente artigo de Dalmo de Abreu Dallari, Degradação do Judiciário, Folha de São Paulo, 8 de maio de 2002, quando disse: 

"Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.

Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética. 

Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.

Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso, é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.

Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte.

Além da estranha afoiteza do presidente - pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga -, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.

É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.

A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir, calada e submissa, à consumação dessa escolha inadequada."

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma errada comparação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5144, 1 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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