Evolução da legislação nacional em matéria de direito da criança e do adolescente

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O texto aborda a evolução da legislação no tema do direito da criança e do adolescente, passando de uma etapa indiferenciada até a atual situação da aplicação da teoria da proteção integral às crianças e adolescentes, vendo-os como sujeitos de direitos.

As primeiras legislações nacionais relevantes para o estudo do Direito das crianças e adolescentes são as Ordenações Filipinas, que tiveram vigência no território brasileiro de 1603 até o advento do Código Criminal do Império de 1830. A diferenciação de resposta punitiva para os autores de delitos menores de idade já existia nas Ordenações Filipinas. No Título CXXXV, do Livro V, estabelecia-se “Quando os menores serão punidos por os delictos, que fizerem”. Pela dicção da referida lei, seriam punidos com a pena total aqueles que tivessem mais de vinte e menos de vinte e cinco anos. Se, no entanto, tivesse o autor do fato entre dezessete e vinte anos, ficaria ao arbítrio do juiz dar-lhe a pena total ou diminuí-la. Para os autores de delitos cuja idade fosse inferior a dezessete anos, estava vedada a pena de morte, podendo, outrossim, ser fixada qualquer das penas previstas nas Ordenações, a critério do juiz.

O Direito das crianças e adolescentes no Brasil, no que se refere às penas aplicáveis a estas pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento, divide-se em uma etapa penal indiferenciada, uma de cunho tutelar e uma etapa garantista.


ETAPA PENAL INDIFERENCIADA

Esta fase do pensamento caracteriza-se por considerar os menores de idade praticamente da mesma forma que os adultos, fixando penas atenuadas, porém, misturando nos cárceres adultos e menores na mais absoluta promiscuidade.

A etapa indiferenciada ocorre desde o nascimento dos Códigos Penais liberais do século XIX até as primeiras legislações do século XX, tendo como grande exemplo o Código Criminal brasileiro de 1830.

O Código Criminal do Império, apesar de ter trazido redução de delitos punidos com a pena de morte e implementado a prisão no lugar de penas corporais, também impunha que os menores que agissem com discernimento deveriam ser recolhidos às casas de correção, pelo tempo que ao juiz parecesse razoável, o que demonstra o caráter subjetivista e autoritário de tal norma, uma vez que pelo critério do discernimento o juiz poderia justificar a punição de uma criança de oito anos, o que foi objeto de inúmeras críticas.

O Código Penal promulgado em 16 de dezembro de 1830 acentua seu caráter de indiferença em relação às punições aplicáveis aos adolescentes e aos adultos em virtude da inexistência real de casas de correção, que, por não terem sido construídas, fizeram com que muitos menores fossem lançados na mesma prisão que os adultos em deplorável promiscuidade.

Proclamada a República, é editado o Código Penal de 1890, antes mesmo da própria Constituição Federal Republicana. Tal legislação, em seu art. 27, estabelecia não ser criminoso o menor de nove anos completo, reconhecendo sua inimputabilidade, assim como aquele cuja idade variasse entre nove e quatorze anos e que agisse sem qualquer discernimento na prática do delito. Já os menores que contassem entre nove e quatorze anos e tivessem agido com discernimento, deveriam ser recolhidos a estabelecimento disciplinar industrial pelo tempo que parecesse adequado pelo juiz (art.30). Por fim, quando o autor tivesse entre quatorze e dezessete anos, a responsabilidade era atenuada, por ser aplicada a pena de cumplicidade (art.65).

Apesar de mais bem explicativa que o Código Penal brasileiro de 1830, a legislação criminal pátria de 1890 novamente encontraria a barreira de falta de estrutura pública. Assim como as casas de correção previstas no Código Criminal do Império não saíram do papel, da mesma forma o estabelecimento disciplinar industrial foi letra morta.

Em 1921, surpreendentemente, por meio de uma lei orçamentária (Lei 4.242/21), começava a findar-se o período da tutela indiferenciada para nascer o período tutelar, vez que tal norma determinou a construção de abrigos e casas de preservação, além de estatuir que o menor de 14 anos não seria submetido a processo de espécie alguma e que o menor de 14 a 18 anos seria submetido a processo especial.


ETAPA TUTELAR

Essa etapa surge nos Estados Unidos no final do século XIX e visa responder a uma reação de profunda indagação moral ante as condições carcerárias então existentes e a promiscuidade do alojamento de maiores e menores nas mesmas dependências prisionais. A primeira Jurisdição especializada foi criada na Cidade de Chicago e data de 1899.

Existe um verdadeiro avanço, em comparação à fase anterior, pois adotam-se medidas especializadas, não se impondo as mesmas penas que eram aplicadas aos adultos, e as medidas aplicadas passam a possuir finalidade educativa. Isto se dá em razão de considerar-se o menor de idade como um ser inferior, digno de piedade e merecedor de uma postura assistencial, nascendo, assim, a expressão que mais caracteriza esta etapa tutelar: “menores em situação irregular”.

Em 1923 surgiu o primeiro Juizado de Menores do Brasil, no Distrito Federal, tendo como seu titular o Magistrado José Cândido Albuquerque Mello Mattos, que viria a ser o nome do Código de Menores de 1927. Para funcionar junto ao Juizado foi criado um abrigo para os infratores e abandonados, que tinha por objetivo recolhê-los e educá-los.

O Juizado acabou por caracterizar-se pela adoção de medidas absolutamente sem qualquer garantia de devido processo legal, misturando assistencialismo a um ideal abstrato de justiça e tendo como foco o envolvimento do magistrado para compreender o que era mais importante para o menor.


O CÓDIGO MELLO MATTOS

Pelo Código de Menores de 1927, também conhecido como  Código Mello Mattos, não se fazia qualquer distinção entre o menor abandonado e o delinquente, pois ambos estavam sujeitos, por exemplo, a ser internados em asilo ou orfanato, sem qualquer compromisso com a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.

Com o Código ficou confirmada a idade de imputabilidade penal de quatorze anos, limite abaixo do qual os menores não poderiam ser submetidos a qualquer tipo de processo, nos termos do art. 68. Entre quatorze e dezoito anos, quando houvesse prática de delito, haveria um processo penal, porém de natureza especial. A falta de garantias processuais ao adolescente acusado de infração era evidente.

Curioso e triste notar que, pautado no art. 92, a liberdade vigiada era medida restritiva de liberdade, que podia durar um ano, e que obrigava o adolescente ao comparecimento periódico diante do juiz, mesmo que absolvido!

Assim, o menor abandonado era internado pela prática do delito, mesmo que não o tivesse cometido, bastando a iminência de cometê-lo. Tais mecanismos, presentes na etapa tutelar, significavam a existência de um controle social formal, fortemente ancorado em medidas institucionalizadoras, com medidas de caráter penal, sem um devido processo legal, uma vez que o sistema era inquisitivo, sem intervenção do Ministério Público, nem de advogado de defesa.


O CÓDIGO DE MENORES DE 1979

O segundo momento da etapa tutelar, no Brasil, dá-se com o advento do Código de Menores de 1979 (Lei 6.697/79). Tal norma legal manteve a doutrina da situação irregular, equiparando pessoas carentes a delinquentes.

A criação da FUNABEM, em 1964, e da FEBEM, em 1976, entidade que se vinculava à primeira, permitiu uma consolidação da política de controle social que buscava mecanismos sociais de contenção da violência, que ignorava garantias às crianças e adolescentes e percebia os menores como objeto de direitos, e não sujeitos dele.

A lei passou a disciplinar a relação dos menores com o Estado, encarando-os como se houvesse uma patologia social. No art.1 se definia que o Código de Menores disporia sobre a assistência, proteção e vigilância a menores: “I - até dezoito anos de idade, que se encontrassem em situação irregular; II – entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei”. O artigo subsequente definia o que era situação irregular: “Art.2º - Para efeitos deste código, considera-se em situação irregular o menor: I- Privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsáveis provê-las; II- Vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; II- Em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV- Privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V- Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI- Autor de infração penal”.

Dessa forma, o artigo 26 do Código Mello Mattos é parcialmente reproduzido pelo Código de 79, equiparando pessoas carentes a infratores. Basta pensar em situações como em que crianças e adolescentes que vagassem pela rua e usassem roupas muito singelas, pelo simples fato de estarem com vestimentas pobres, já eram identificadas numa das duas categorias que permitiam enquadrá-las com em “situação irregular”.

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A etapa tutelar se apresenta, então, ancorada no binômio assistência e repressão, especialmente repressão, como se observa das medidas cabíveis, nos termos do art.13: “I – advertência; II - entrega aos pais ou responsáveis, ou a pessoa idônea mediante termo de responsabilidade; III – colocação em lar substituto; IV - imposição de regime de semiliberdade assisitida; V – colocação em casa de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional, ocupacional, psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico ou outro adequado”.

A força conferida ao Juiz de Menores dava um amplo poder inquisitivo, mediante a figura do “prudente arbítrio”, que esteve presente na redação do art. 8 do Código de Menores de 1979. A doutrina da situação irregular fez do juiz um bom pai de família que tinha toda a discricionariedade para decidir. O processo carecia de quaisquer formalidades, o menor poderia ser detido sem ordem judicial ou sem estar em flagrante e a assistência de advogado era inexistente.


A ETAPA GARANTISTA     

A última etapa da evolução histórica se inicia com a Promulgação da Constituição Federal de 1988, e tem sua posterior regulamentação com a Lei 8.069/90, o Estatuto da criança e do Adolescente (ECA).

Os arts. 227 e 229 da CRFB, articulados com sua lei regulamentadora, o ECA, substituem o paradigma da “situação irregular” pelo da “proteção integral”, permitindo estabelecer as regras que indicam a absoluta prioridade dada aos interesses da criança e do adolescente (art.227, caput, da Constituição federal de 1988, c.c. arts. 3 e 4 do ECA).

A etapa garantista obedece a um conceito internacional, resultante de inúmeros documentos internacionais de proteção à criança e ao adolescente, como: Declaração dos Direitos da Criança, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing), Diretrizes de Riad, entre outros.

No Brasil, além da ratificação dos Tratados Internacionais aplicáveis ao tema, o ECA proclama um sistema de garantias, incorporando uma série de direitos materiais e processuais para preservação dos direitos infantojuvenis.

O termo pejorativo “menor” cede espaço à criança e ao adolescente, sujeitos de direitos e muitas vezes alvo de medidas protetivas, e não somente de medidas socioeducativas.

O Estatuto passou a adotar princípios de natureza penal e processual para garantias de um justo processo. Avançou-se no que concerne ao princípio da legalidade, e a intervenção punitiva ou educativa já não se faz com “menores” abandonados ou carentes, havendo um procedimento em que se respeitam várias garantias processuais básicas (presunção de inocência, direito de defesa por intermédio de advogado constituído, direito ao duplo grau de jurisdição, direito de conhecer plenamente a acusação que é ofertada pelo representante do Ministério Público), além de trazer à tona um princípio aplicável exclusivamente às crianças e adolescentes: impossibilidade de sofrer sanções mais severas do que as aplicáveis legalmente aos adultos. A absoluta prioridade é, na essência, a aplicação do princípio da igualdade a desiguais.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (art. 2, ECA). Um grande avanço deste diploma legal é prever que caso se tenha ato infracional praticado por criança, só serão admitidas medidas que não tenham caráter punitivo, que estão relacionadas no art.101 do ECA. Verificando o ato infracional praticado por adolescente, a autoridade competente pode aplicar-lhe, conforme o caso, advertência, prestação de serviços à comunidade, obrigação de reparar o dano, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade ou, excepcionalmente, internação em estabelecimento educacional (art.112). Assim, claramente, a legislação ordinária admitirá medidas de conteúdo punitivo aos adolescentes, vedando-as às crianças.

Diferentemente do que ocorria na etapa tutelar, várias garantias são asseguradas ao adolescente infratores, inclusive o direito de solicitar a presença de seus pais ou responsáveis em qualquer fase do procedimento (art.111), o que evidencia o respeito a condição de pessoa em peculiar condição de desenvolvimento e demonstra a presença de uma proteção integral, que caracteriza esta nova etapa no trato do Direito Brasileiro com as crianças e adolescentes.

Em suma, percebe-se o quanto podem ser diferenciadas as etapas tutelar e garantista, sendo certo que este último não confunde menores de idade carentes ou abandonados com infratores, impossibilita aplicação de medidas socioeducativas a crianças (menores de 12 anos de idade) e, apesar de a intervenção punitiva ser ampla, é de se reconhecer que a limitação do período máximo de internação a três anos constitui um respeito aos princípios que regem o Direito Juvenil.

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Sobre o autor
Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro

Pós graduado em Direito Prcessual Civil pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS)/Universidade Estácio de Sá. Pós graduando em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (Curso CEI). Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense no ano de 2013. Curso Regular na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (FESUDEPERJ) no ano de 2012. Procurador Municipal de Paraty-RJ, entre 2018 e 2019. Delegado Municipal de Cultura pelo Município de Paraty-RJ no biênio 2018-2019. Desde 2019, Defensor Público do Estado do Paraná, atuando na comarca de Umuarama/PR.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trecho da Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense para aprovação no Curso de Graduação em Direito

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