A necessária preservação dos quilombos

01/09/2017 às 19:01
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Se considerado inconstitucional, o decreto perde a validade e pode provocar a revisão de demarcações realizadas em centenas das mais de três mil áreas de remanescentes de quilombos hoje existentes no país.

A presidente do STF, Carmen Lúcia, deve pautar, para os próximos dias, o julgamento da ação de inconstitucionalidade sobre o decreto de 2003, que regulamenta a demarcação de terras de comunidades quilombolas. O ministro Dias Toffoli, que havia pedido vista do caso, liberou seu voto para o plenário. Se considerado inconstitucional, o decreto perde a validade e pode provocar a revisão de demarcações realizadas em centenas das mais de três mil áreas de remanescentes de quilombos hoje existentes no país.

Argumenta-se que o decreto seria um regulamento autônomo.

No Brasil, Diógenes Gasparini, dentre outros(Poder regulamentar), defenderam a tese de que o País admitia os regulamentos autônomos. Fundamentavam a tese, basicamente, no artigo 81, V, que atribuía ao Presidente da República competência para “dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal”. Mas como disse Clèmerson Merlin Clève(Atividade legislativa do poder executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988, 1993, pág. 241), tenha-se em conta, porém, que o dispositivo se encontra, na atual Constituição de 1988, (artigo 84, VI) redigido de modo a atribuir ao Chefe de Estado, Presidente da República, que, no presidencialismo ainda é o Chefe de Governo, “competência para dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal, na forma da lei”.

Ora, se os regulamentos devem ser editados na forma da lei, é porque não podem ser editados independentemente da lei.

Nosso sistema jurídico alberga os chamados regulamentos de execução, ou executivos, que não podem operar contra legem, nem ultra legem, nem praeter legem. Isso porque, na hipótese, o Legislativo pode delegar ao Executivo as operações de acertar a existência de fatos e condições para a aplicação da Lei.

O decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamentou em todo território nacional, os procedimentos para identificação, delimitação, reconhecimento e titulação das terras ocupadas por comunidades quilombolas. Portanto, as comunidades remanescentes de quilombos já são reconhecidas e amparadas pela lei brasileira. Este mesmo decreto transferiu para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a função de delimitar as terras das comunidades quilombolas remanescentes.

Muitos quilombos, por estarem em locais afastados, permaneceram ativos mesmo após a abolição da escravatura em 1888. Eles deram origens às atuais comunidades quilombolas (quilombos remanescentes). Existem atualmente cerca de 1.500 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares, embora as estimativas apontem para a existência de cerca de três mil. Grande parte destas comunidades está situada em estados das regiões Norte e Nordeste.

O decreto em discussão não é regulamento autônomo, pois visa a regulamentar o artigo 68 das Disposições Transitórias, embora não localizado no Título II da Constituição Federal, encerra uma norma com nítido conteúdo de direito fundamental, porquanto estabelece direitos mínimos às comunidades quilombolas, como o direito à moradia e a sobrevivência digna, tutelando, desta forma, o princípio maior de qualquer ordenamento jurídico, que é a dignidade da pessoa humana. Assim o decreto foi editado na forma da Constituição.

O Decreto define como terras ocupadas por remanescentes de quilombos aquelas utilizadas por eles como instrumento necessário à sua reprodução física, social, econômica e cultural. Vejamos a redação do seu art. 2º, §§ 2º e 3º:

§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

§ 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

Como elucida Maria Elizabeth Guimarães Teixeira:

A despeito do conteúdo histórico, o conceito de quilombos, contemporaneamente, designa a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Ele não mais se refere a resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica nem, tampouco, se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogenia constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados. Consiste, sim, em grupos que consolidaram um território próprio e nele desenvolveram práticas cotidianas de resistência e reprodução de seus modos de vida. O que os define é a experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo(Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas: Lei nº 12.228/2010 e Decreto n° 4.887/2003. Col. Leis especiais para concursos – v. 40. Salvador: Juspodivum. 1 ed. p. 238). .

A redação do artigo 68, do ADCT, norma constitucional de eficácia plena, estabeleceu que aos quilombolas que estiverem na posse de suas terras, ser-lhes-á reconhecida à propriedade. Assim, a Constituição Federal trata de reconhecimento e não em atribuição da propriedade, cristalizando o entendimento segundo o qual a propriedade quilombola, à semelhança da posse dos indígenas, é originária.

Na matéria, assim lecionou Daniel Sarmento:

Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental de massas. Não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica(Territórios Quilombolas e Constituição: a ADI 3.239 e a constitucionalidade do Decreto 4.887/03. p. 6-10. Parecer divulgado pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal).

De acordo com Daniel Sarmento, no entanto:

Em outras palavras: o caso, a rigor, não é de desapropriação, mas é perfeitamente possível o recurso aos procedimentos e mecanismos da desapropriação para cálculo e pagamento da indenização devida aos ex-proprietários das áreas a serem tituladas em favor dos remanescentes de quilombo.

Assentada esta premissa, torna-se irrelevante a alegação do Autor da ADI 3.239, no sentido de que a desapropriação aludida no Decreto 4.887/03 não se enquadra com exatidão em nenhuma das hipóteses de constitucionais ou legais de expropriação. Ora, se ela não se enquadra , é justamente porque o caso realmente não é de desapropriação, o que não obsta que se utilize, por analogia, o procedimento previsto na ação de desapropriação para arbitramento, em contraditório, do valor da compensação a ser paga ao antigo proprietário, em razão da perda do seu bem, como lembrou Marcela Baudel de Castro(A natureza jurídica da propriedade quilombola).

De acordo com o referido autor, entendimento adotado pelo Ministério Público Federal, consubstanciado na manifestação feita na ADI, a solução encontrada foi a mais justa e proporcional, conciliando os interesses em jogo. Assim, reparte-se, entre toda a sociedade, o ônus de financiar os custos de implementação do art. 68 do ADCT, pois não seria razoável que os ônus relacionados à efetivação deste direito recaíssem exclusivamente sobre os antigos proprietários das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, sobretudo levando-se em conta a definição ampla dos territórios quilombolas, estabelecida no Decreto 4.887/03.

O Supremo Tribunal Federal ainda não julgou a ADI, mas o Ministro Relator Cezar Peluso já proferiu seu voto pela inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03. No tocante à previsão de desapropriação, que o Ministro Relator entende ser a mais flagrante inconstitucionalidade, aduz que propriedade já foi concedida pela própria Constituição, de modo que não há transferência que enseje indenização a ser feita. O julgamento encontra-se suspenso em razão do pedido de vistas da Ministra Rosa Weber.

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Edilson Vitorelli expõe (Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Salvador: Editora Juspodivm, 2012.):

O conceito jurídico de quilombo não se confunde, portanto, com o conceito leigo a ele se costuma associar, de local de aglomeração de escravos fugitivos. Quilombo, juridicamente, são “as terras de preto”, as áreas tradicionamente ocupadas por comunidades negras, que ali se instalaram não apenas em razão de fuga, mas por doação, herança, compra ou pela simples tolerância do antigo “senhor”. Essas comunidades construíram suas vidas nesses locais, conservando suas tradições e modos de produção, se perpetuando geração após geração, mesmo com a não rara pressão dos proprietários vizinhos. A terra, nessa circunstância, deixa de ser mera propriedade ou ativo produtivo, passando a constituir um elemento da própria identidade da comunidade que, por isso, resiste à passagem do tempo, chegando à contemporaneidade.

Prosseguindo, Edilson Vitorelli, expõe:

Percebe-se, portanto, que não há que se investigar se a comunidade negra remonta a uma ocupação decorrente de fuga, nem qual foi o escravo que originalmente a fundou. O que interessa, em síntese, é que se trate de um grupo negro com ocupação temporalmente remota do território, que nele vive segundo seus costumes e tradições.

Assim, o conceito legal mostra-se consentâneo com o espírito da Constituição Federal, já que o que esta reconhece e protege é a heterogeneidade cultural e a variedade de etnias.

Quilombolas é uma designação comum aos escravos refugiados em quilombos, ou descendentes de escravos negros cujos antepassados no período da escravidão fugiram dos engenhos de cana-de-açúcar, fazendas e pequenas propriedades onde executavam diversos trabalhos braçais para formar pequenos vilarejos chamados de quilombos.

Os quilombos surgiram como refúgios de negros que escapavam da repressão durante todo o período de escravidão no Brasil, entre os séculos 16 e 19. Como a função era de esconderijo, tiveram sucesso os locais de mais difícil acesso. Pelo mesmo motivo, se fazia necessário criar laços comunitários e promover uma autonomia para não depender de recursos externos.

Mais de duas mil comunidades quilombolas espalhadas pelo território brasileiro mantêm-se vivas e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras consagrado pela Constituição Federal desde 1988.

Tais comunidades estão dispersadas pelo território brasileiro nos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Pará, Bahia, Maranhão, Amapá, Mato Grosso do sul, Goiás, Rio de janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Segundo dados oficiais da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgãos responsáveis pela identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos quilombolas, existem atualmente mais de setecentas comunidades oficialmente registradas pela Fundação Palmares, do Ministério da Cultura e mais de duzentos processos de regularização fundiária em andamento, envolvendo mais de trezentas comunidades espalhadas por 24 estados brasileiros.

Observe-se, pois, a gravidade do tema.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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