3. Permanência do direito à purgação da mora
Uma segunda questão suscitada com o advento da Lei 10.931/04 diz respeito ao exercício do direito do devedor de purga da mora, quando se torna inadimplente e o credor promove a ação de busca e apreensão do bem dado em garantia. A nova redação atribuída ao parágrafo 2º. do art. 3º do Dec. Lei 911/69 não prevê a possibilidade de purga da mora exclusivamente das prestações vencidas e em atraso como forma de o devedor emendar sua inadimplência. O citado dispositivo somente autoriza que, no prazo de 05 dias contados a partir da execução da liminar, pague a integralidade da dívida pendente, o que inclui tanto as prestações vencidas quanto aquelas que se venceram por antecipação em face do inadimplemento(13).
Temos que, ainda que o legislador tenha tido a intenção de eliminar a possibilidade de pagamento apenas das prestações vencidas (e encargos moratórios), o direito à purgação da mora subsiste, pois decorre de outros dispositivos legais, a que o aplicador não pode deixar de recorrer quando tiver de garanti-lo ao réu da ação de busca e apreensão, numa interpretação sistemática dos diversos diplomas sobre relações obrigacionais e dos princípios fundamentais das relações de consumo.
Com efeito, entender-se em contrário implicaria em retirar a utilidade do próprio instituto da purgação da mora, tal como vem disciplinado no art. 401, I, do Código Civil, que o admite como forma de evitar a ruptura do vínculo contratual. A purgação da mora é um direito do contratante moroso, que visa a remediar a situação a que deu causa, evitando os efeitos dela decorrentes, reconduzindo a obrigação à normalidade. Como preleciona Agostinho Alvim, "a purgação é um favor que a lei concede ao devedor, permitindo-lhe neutralizar o direito do credor atinente à rescisão do contrato" (Da Inexecução das Obrigações e sua Conseqüências, p. 173). Assim, de um modo geral, deve se admitir a purga da mora nos casos de obrigações contratuais, pela oferta da prestação devida e dos prejuízos (juros moratórios) ocorrentes até essa oferta. Somente quando não se mostrar viável, por se apresentar inteiramente inútil aos interesses do credor, é que não se deve admiti-la. Essa hipótese, no caso da alienação fiduciária, não ocorre, pois os pagamentos sempre serão úteis ao credor, que tem mais interesse no recebimento dos seus créditos, mesmo que algum atraso ocorra, sendo-lhe útil a manutenção do contrato e recebimento dos pagamentos em dinheiro, mais do que a recuperação do bem dado em garantia do financiamento. A melhor doutrina processualística considera que, quando já em sede judicial o litígio em torno da inadimplência contratual, a purga da mora pode ser realizada até a contestação da lide(14). Só não pode ocorrer após a contestação, por se revelarem antitéticas as proposições contestativa e emendativa da mora, considerando que, pela primeira se afronta o direito reclamado enquanto que, pela segunda, se reconhece a dívida.
Especificamente em relação às relações contratuais de consumo(15), a possibilidade de purga da mora é de ser admitida ainda com mais firmeza. É que nos contratos de adesão a cláusula resolutória é admitida – art. 54, par. 2º., do CDC -, "desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor" (salvo nos pactos de consórcio), ou seja, ao consumidor cabe exercer a opção de, ao invés da resolução do contrato em que incorreu em inadimplemento, postular o cumprimento da avença, pondo-se em dia com suas obrigações, e efetuando portanto a purgação da mora em que incidira.
Ainda que o parágrafo 2º. do art. 3º do Dec. Lei 911/69 (na nova redação da Lei 10.931/04) pareça estar em conflito com par. 2º. do art. 54 do CDC, este último dispositivo é que tem que prevalecer quando se trata de garantir ao consumidor o direito à purgação da mora. Havendo conflito aparente entre as normas do CDC e alguma lei especial que regule determinado setor das relações de consumo, ainda que posterior, a regra principiológica presente no Código é que se superpõe à lei específica que a desrespeitou, não se aplicando o princípio da especialidade. Essa é a lição Nelson Nery Junior sobre o assunto:
"O microssistema do CDC é lei de natureza principiológica. Não é nem lei geral nem lei especial. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à principiologia do CDC. Conseqüentemente, as leis especiais setorizadas (v.g. seguros, bancos, calçados, transportes, serviços, automóveis, alimentos etc.) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC. Não seria admissível, por exemplo, que o setor de transportes fizesse aprovar lei que regulasse a indenização por acidente ou vício do serviço, fundada no critério subjetivo (dolo ou culpa), pois isso contraria o princípio o princípio da responsabilidade objetiva, garantido pelo CDC 6º. VI. Como o CDC não é lei geral, havendo conflito aparente entre suas normas e alguma lei especial, não se aplica o princípio da especialidade (Lex specialis derogat generalis): prevalece a regra principiológica do CDC sobre a lei especial que o desrespeitou. Caso algum setor queira mudar as regras do jogo, terá de fazer modificações no CDC e não criar lei à parte, desrespeitando as regras principiológicas fundamentais das relações de consumo, estatuídas no CDC"(16).
O direito de o consumidor, antes da contestação na ação de busca e apreensão, pleitear a purga da mora decorre do princípio da conservação dos contratos de consumo, que o par. 2º. do art. 54 do CDC visa consagrar, ao garantir a ele a escolha pela cláusula resolutória ou a opção de manter o contrato, pelo pagamento das prestações vencidas e juros moratórios. Esse dispositivo, por ter natureza principiológica, não foi revogado e prevalece sobre outro de lei setorial com o qual conflite. Sempre que a solução pela manutenção do vínculo contratual seja mais benéfica ao consumidor, por ela deve se pautar o julgador.
Ainda outros argumentos podem ser utilizados em prol do direito de purgação da mora, no bojo da ação de busca e apreensão. Um deles é o da semelhança desta ação com institutos afins. Em outras espécies de contratos de financiamento, em que se busca a aquisição de um bem mediante o pagamento de prestações, a exemplo das vendas com reserva de domínio, a purga da mora é, em regra, assegurada. A faculdade de purgação da mora, para as vendas com reserva de domínio, está expressamente garantida pelo art. 1.071, par. 2º., do CPC, dentro do prazo para resposta. Embora a regra seja específica para a ação de apreensão e depósito de coisa vendida a crédito com reserva de domínio, seria bem plausível a extensão do direito à purgação da mora para o procedimento da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente. Com efeito, existe todo um conjunto de características que aproxima a alienação fiduciária em garantia das vendas a crédito com reserva de domínio, autorizando a construção analógica.
É bom lembrar, ainda, que a legislação específica sobre arrendamento mercantil ("leasing") não previa oportunidade para a purga da mora, no caso de inadimplemento do arrendatário. Mesmo assim, o STJ não hesitou em conferir esse direito ao réu na ação de reintegração de posse, como necessidade para preservar a execução do contrato e conservar o seu caráter comutativo. Bem expressivos desse entendimento são os acórdãos reproduzidos abaixo em ementa:
"CIVIL. PROCESSUAL. ''LEASING''. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR INADIMPLEMENTO. PURGA DA MORA.
Embora de admitir-se a purga da mora em ação resolutória de contrato de "leasing", por inadimplemento contratual, esta não tem lugar após instalada a lide com a contestação (STJ-3ª. Turma, RESP 6696 / SP, rel. Min. Dias Trindade, j. 20/03/1991, DJ 22.04.1991.
"ARRENDAMENTO MERCANTIL - ''LEASING''. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. POSSIBILIDADE DE PURGAÇÃO DA MORA PELO ARRENDATARIO.
Tendo em vista a natureza e os objetivos do contrato de arrendamento mercantil, com a opção concedida ao arrendatário para a compra do bem, a possibilidade de purgação da mora preserva os interesses de ambas as partes e mantém a comutatividade contratual" (REsp 9219-MG, rel. Min. Athos Carneiro, j. 19/06/91, DJ 23.09.91)
A Corte Superior não levou em consideração o argumento de que os contratos de arrendamento mercantil continham cláusula resolutiva expressa, para o caso de inadimplemento das prestações do financiamento. Pesou mais a necessidade de ser oportunizada a purga da mora, como direito do devedor moroso de restituir o contrato à normalidade, oferecendo a prestação devida mais a importância dos juros moratórios antes da contestação, pouco importando se tratar de negócio jurídico sob condição resolutiva expressa.
No caso da ação de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente, ainda mais se justifica a aceitação da purgação da mora, pela compatibilidade procedimental que esse tipo de ação oferece. No caso da ação de reintegração de posse, o procedimento especial não comportava uma fase preliminar própria para o pagamento do débito. Mesmo assim, os tribunais não hesitaram em conferir ao devedor oportunidade para a purga da mora no contrato de leasing, ainda que o exercício desse direito importasse em inserção de figura procedimental não prevista na lei processual específica. Em relação à ação de busca e apreensão para retomada de bem objeto de alienação fiduciária, nem sequer esse problema aparece, pois o tipo procedimental já comporta fase própria para o pagamento do débito – no prazo de 05 dias após a execução da liminar (parágrafo 2º. do art. 3º. do Dec. 911/69). É certo que, na nova redação dada a esse dispositivo pela Lei 10.931/04, o legislador somente previu a possibilidade de pagamento integral da dívida pendente e pelos termos da planilha apresentada pelo credor, extinguindo o ônus fiduciário. Mas nada impede – pelo contrário, se sugere -, que se interprete que nessa mesma fase procedimental o devedor possa purgar a mora apenas das prestações devidas, mantendo-se o vínculo contratual. A previsão de momento para purgação da mora, assim, pode ser inserida no procedimento da ação de busca e apreensão sem provocar qualquer deformação procedimental ou alterar o perfil célere que a nova Lei (10.931/04) procurou imprimir ao processo de recuperação do bem.
3. Conclusão
Interpretados os dispositivos da nova Lei (10.931/04) dessa maneira, em consonância e em interpretação sistematizada com outros textos e normas civis e que regulam as relações de consumo, serão alcançados os objetivos que o legislador efetivamente pretendeu, de dar maior eficácia à garantia fiduciária, aperfeiçoando sua execução judicial. Os benefícios que essa interpretação produz são para todas as partes. O credor fiduciário porque passa a contar com a antecipação do momento da consolidação da propriedade e posse plena, o que lhe confere autorização para vender o bem apreendido desde já, sem ter que esperar pelo momento da sentença, com todas as conseqüências que essa espera poderia produzir em termos de deterioração do bem e dificuldades para recuperação do crédito. O devedor, por sua vez, porque além de preservar o direito de purgação da mora, mantendo-se à sua escolha a continuidade da execução contratual (quando assim lhe favorecer), passa a contar com a opção de pagar integralmente a dívida, livrando-se do ônus fiduciário, e ainda ter prazo mais largo para contestação e sem limitação de matérias.
Notas:
1- A Lei 10.931/2004, a par de emprestar maior eficácia à garantia fiduciária, alterou o perfil do contrato de alienação fiduciária, inclusive passando a admitir a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito (art. 66-B da Lei 4.728/65, na redação alterada pela Lei 10.931/2004).
2- O par. 5º. do art. 3º. do Dec. Lei 911/69 estabelecia que: "A sentença, de que cabe apelação, apenas, no efeito devolutivo, não impedirá a venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente e consolidará a propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário. (...)".
3- O par. 2º. do art. 3º., na nova redação dada pela Lei 10.931/04, prevê a possibilidade de o devedor impedir a consolidação da propriedade do bem em favor do credor, por meio do pagamento integral da dívida no prazo de 05 dias contados após a retomada.
4- Desde sua versão original, a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, consagrou um seção inteira (Seção XIV) para regular a alienação fiduciária em garantia no âmbito do mercado de capitais e, dentre os dispositivos atinentes a esse instituto, elegeu um que tornava "nula a cláusula que autorize o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga em seu vencimento" (par. 7º. do art. 66). O Dec. Lei 911/69 produziu uma alteração nessa Seção da Lei 4.728/65, mas deixou intacta (apenas renumerando-a como parágrafo 6º.) a regra que proibia o credor fiduciário ficar com o bem dado em garantia, no caso de inadimplemento da obrigação. A Lei 10.931/04 produziu nova e substancial modificação na Seção XIV, inclusive passando a admitir a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão de direitos fiduciários, mas eliminou a tal regra proibitiva.
5- CDC, art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
6- A relação de consumo pressupõe, além de outros requisitos, que uma das partes enquadre-se no conceito legal de consumidor, ou seja, de pessoa que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final (art. 2º. do CDC). O contrato de financiamento com garantia fiduciária será definido como contrato de consumo, e portanto alcançado pelas normas do CDC, quando o devedor-fiduciante se enquadrar no conceito legal de consumidor, ou seja, quando utilizar o bem na condição de destinatário final.
7- Esse argumento é defendido em decisão do Dr. Fábio Eugênio Oliveira Lima, Juiz da 28ª. Vara Cível do Recife, no proc. n. 001.2004.032513-0, quando diz: "Perdendo a liminar seu caráter transitório, tem-se, em via de conseqüência direta, a solução de uma lide – ou parte dela – sem defesa. Haverá decisão irrevogável em face de cognição sumária e sem qualquer bilateralidade, porquanto o provimento liminar é concedido inaudita altera pars. O par. 1º. do artigo 3º. do Dec. Lei n. 911/69, na sua nova redação dada pela Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004, não encontra, portanto, fundamento de validade na Constituição Federal, à medida que retira o caráter transitório do provimento antecipatório, já que, como dito, resolve de modo irrevogável a lide quanto à resolução do contrato, tudo sem ouvida da parte contrária".
8- É o que ocorre em relação aos embargos à execução fundada em sentença (art. 741 do CPC).
9- O parágrafo 3º. do art. 3º. do Dec. Lei 911/69, com a nova redação atribuída pela Lei 10.931/04, ficou com a seguinte redação: "O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar". As restrições às matérias da contestação, como se vê, não permaneceram.
10- § 4º: "A resposta poderá ser apresentada ainda que o devedor tenha se utilizado da faculdade do § 2º, caso entenda ter havido pagamento a maior e desejar restituição".
11- Independentemente de reconvenção, como ocorre nas ações possessórias (art. 922 do CPC).
12- A improcedência da ação de busca e apreensão somente ocorre se o devedor comprova não ter havido inadimplemento ou descumprimento das obrigações contratuais.
13- § 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.
14- Confira-se, a respeito, Agostinho Alvim, ob. cit.
15- O contrato de financiamento com garantia fiduciária será definido como contrato de consumo, e portanto alcançado pelas normas do CDC, quando o devedor fiduciário se enquadrar no conceito legal de consumidor, ou seja, quando utilizar o bem na condição de destinatário final (art. 2º. do CDC).
16- Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in nota 4 ao art. 1º. do CDC – Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2º. Edição revista e ampliad, Ed. Revista dos Tribunais.