O abuso de autoridade dentro da Polícia Militar: a responsabilidade estatal

27/09/2017 às 21:48
Leia nesta página:

O artigo discorre sobre o abuso de autoridade no Brasil, passando pelo significado do termo, seu enquadramento em lei específica e por uma linhagem histórica do abuso de poder dentro dos principais eventos do país onde chega na atuação da Polícia Militar.

1.    Abuso de autoridade

O abuso de autoridade pode ser acompanhado desde a descoberta do Brasil. Ainda que não houvesse a figura do Estado, na colonização portuguesa, a administração pública já cometia diversos atos que estavam em conflito com a lei. Nesta época, representada pela monarquia, a figura do Estado que ainda não era a figura moderna dos iluministas, já cometia atos ilegais que se pautavam - ademais todas as outras atividades ilícitas como fraudes - principalmente no contrabando das riquezas do novo território que foi conquistado e mais tarde no tráfico de pessoas – na época os escravos que chegavam nos imensos navios negreiros para serem comprados como objetos mercantis. O período democrático mais longo que o país já teve é cheio de interrupções e alternâncias que não dão a menor segurança à figura Estatal para povo, povo esse que já desistiu de entender a grande maleabilidade dos agentes estatais com o que é público ao agir como se os interesses de toda sociedade fossem facultativos - o representante do Estado escolhe o que vai fazer com o que é público como bem entender, abusivamente exercendo a função que lhe foi concedida.

Esses atos abusivos exercidos pelos agentes públicos, caracterizam o que hoje é conhecido como abuso de autoridade. Constitui “abuso de autoridade”, segundo os Art. 3 e 4 e seus incisos da Lei 4.898/65, qualquer atentado à liberdade de locomoção, inviolabilidade de domicilio, sigilo a correspondência, a liberdade de consciência e de crença, livre exercício de culto religioso, liberdade de associação, direitos e garantias quanto ao exercício do voto, direito a reunião, à incolumidade física do indivíduo e direitos e garantias fundamentais asseguradas no exercício profissional, que sejam conforme exposto no Art. 5 da Lei 4.898/65, praticados por aqueles que considera-se autoridade: quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração. Constitui-se também, casos de abuso de autoridade: ordenar ou executar medidas privativas de liberdade individual sem formalidades legais, submeter pessoa sobre vexame, guarda ou custódia contra a lei, levar a prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança permitida em lei dentre outros incisos contidos no Art. 4 da mesma Lei 4.898/65.

Partindo do ponto de vista do Direito Administrativo, o abuso de poder é cometido pelo agente de duas formas: o excessivo ou o desvio. O abuso de poder excessivo, é quando o agente público age de forma ilícita se privilegiando, agindo por interesse próprio de maneira abusiva e assim, inverte o princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o interesse privado ao minimizar o interesse do Estado que é o bem-estar social e a intervenção razoável, para agir em prol dos seus interesses individuais. Já, o desvio de finalidade,

“se processa quando um agente público busca finalidade diferente para a ação estatal realizada, utilizando-se da execução de um ato manifestamente legal, mas de modo ilegal e com a obtenção de um resultado diverso do que o pretendido pela Administração Pública” (SILVA, 2014).  

Sendo que neste caso, o agente público também vai na contramão do que a lei permite, pautando-se em sua obrigação funcional de agir, buscando atender ao interesse público, mas que no momento da execução fornece um fim contrário do que originalmente deveria ser pretendido. Conforme o Art. 6 da Lei de Abuso de Autoridade: “o abuso de autoridade sujeitará o seu autor a sanção administrativa, civil e penal”. Sendo também administrativa, é de responsabilidade do Estado o que decorre dos seus agentes públicos.

A administração pública sempre teve um caráter autoritário, por ter voz de Estado e estar representando diretamente em cada instituição o interesse deste, que é e sempre foi um interesse majoritário em relação a uma lide individual. Na monarquia, Pedro II criou o poder moderador para que pudesse por si só decidir sobre tudo que lhe parecia razoável na época, sem que tivesse a obrigação de consultar o povo para isso. E isso não se concentrou apenas nesta época como também na ditadura militar principalmente no que tange as práticas de tortura que desde essa época até agora dá sustentação a uma instituição pública que corriqueiramente pratica atos de abuso de autoridade, a Polícia Militar.

2.    A polícia militar e o abuso de autoridade

A polícia militar no Brasil, segundo Jair Krischke - referência mundial quando se trata de Direitos Humanos - é “uma invenção, uma criação da ditadura pois a militarização nasce por um decreto-lei da Ditadura em 1969”. Portanto, continuar com uma polícia como a de hoje é, segundo esse ponto de vista, um atentado ao estado democrático de Direito. É um abuso de autoridade que não deve ser mais aceito, seja em qualquer circunstância ou instância do exercício do poder público. Não é viável, sendo assim, que a administração pública na ambiência moderna de cumprimento aos princípios constitucionais no que tange a dignidade humana e os próprios direitos fundamentais, continue a admitir a existência de uma instituição tão autoritária e abusiva como está se mostrando ser a Polícia Militar no Brasil.

O que acontece, com a permanência da polícia do modo como está, é o aumento do número de mortes na guerra contra o crime e inchaço da população carcerária. Também o reforço aos estereótipos de criminosos, que foi chamado racismo institucional da PM, que reflete na população carcerária do Brasil onde jovens negros compõem nada menos que 67% - é um verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres, moradores de periferia. A PM se reforça nesses estereótipos de criminoso e muitas vezes acaba por cometer erros e abusos na sua atuação, desvios ou excessos, estes que podem custar a vida de um indivíduo e as consequências não se fazem presentes apenas para a população civil, como também no que diz tange ao número cada vez maior de processos movidos contra o Estado -  indenizações por danos morais, em sua maioria pois são inúmeros os casos que ocorreram nos últimos anos envolvendo a polícia militar em face do abuso do poder.

O abuso de poder por excesso pode ser visualizado a partir dos dados da violência na guerra contra o crime. Ainda em 1987, o operário Júlio César de Melo Pinto foi assassinado ao ser confundido com assaltante. Em 2013, o pai de seis filhos e marido de Elizabeth Gomes da Silva, o pedreiro Amarildo Dias de Souza morador da Favela da Rocinha nunca mais apareceu, nem o corpo dele foi encontrado. Em 2014, o dançarino de um programa da Rede Globo Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, morto na Favela Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, Zona Sul do Rio, com um tiro nas costas durante uma troca de tiros. Segundo dados do Fórum de Segurança Pública do Rio de Janeiro, foram mortos 11.197 adolescentes negros entre 2009 e 2013. Fora todos os casos de lesão corporal e lesão corporal grave que não são sempre mencionados e nem descobertos, mostrando as ações de abuso de poder excessivo do Estado para com o cidadão, um modo de agir ostensivo que agrava a situação violenta já existente e produz o verdadeiro terror dentro das periferias do Brasil.

Os casos de abuso por desvio são mais difíceis de serem estipulados através de dados pois no momento do ocorrido dificilmente são denunciados. No entanto, acredita-se que é possível que ocorram até mais vezes que o abuso de poder por excesso por serem práticas corriqueiras do cotidiano de trabalho policial como desde a invasão a domicílio sem o devido mandado policial, constrangimento ou até mesmo a interrogação do réu sem a presença de um advogado ou quando este é de menor, sem representante legal. São casos onde o policial acredita, subjetivamente estar fazendo a coisa certa. Dada a situação atual do Brasil, uma parcela da população até legitima esses atos policiais com muita frequência e possível motivo para isso pode ser a falta de segurança pública que gera, hodiernamente na vida dos brasileiros, uma vontade de justiça mais imediata - talvez pela morosidade do devido processo legal gerar uma a sensação de impunidade.

O que é preocupante não é apenas a ilicitude dos atos abusivos, mas como ele parece permitido moralmente na atitude policial ou legitimado por uma parcela significativa da sociedade. É como se, por este deter da força e ser investido do poder de Estado, pudesse praticar atos que excedem a sua função e acima de tudo, que violam a dignidade humana e tudo o mais que pertence em caráter inviolável de direitos fundamentais a Constituição. O abuso de autoridade da Polícia Militar, assim como nos demais âmbitos da esfera estatal, além de ser prática historicamente conhecida atualmente se tornou uma prática corriqueira – mesmo que seja ilegal e deva ser punida. Tais atos têm consequências muito graves para continuarem sendo negligenciadas, seja pela vista grossa do poder público ou inclinação moral dos agentes.

São preocupantes os números quando se trata também do número de policiais, agente públicos que morrem no exercício ou fora do horário de exercício da sua função. A polícia não apenas mata como morre - quase que na mesma proporção. No Rio de Janeiro, por exemplo, enterra-se um policial a cada dois dias.

 “Os confrontos no Estado, 4.212 em 2016, aumentaram 300% em apenas cinco anos, segundo dados do relatório da PM. Com os tiroteios cresceu a morte de policiais (275%), mas também de “marginais” (66%), como são denominadas genericamente pela corporação as vítimas nos confrontos. A cada policial morto, morrem 23 “marginais”, segundo dados da Inteligência da PM. Isto é: pelos 30 PMs mortos em confronto em 2016, morreram 701 supostos bandidos” (EL PAÍS)

E tudo isso, todos esses números absurdos que parecem – e são – dados de guerra, são de responsabilidade do Estado desde implantação de políticas públicas de segurança e sociais que sejam eficazes para diminuir o crime até a responsabilização dos seus agentes pela violação de leis. As consequências não são apenas para a população, mas também para o Estado que perde seus funcionários para a violência.

Em 2014, uma pesquisa realizada em todo país e publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 76,3% dos próprios policiais militares são a favor da desmilitarização. É de conhecimento de todos, inclusive da própria instituição que existe uma situação que deve ser solucionada. É essencial que esse braço tão importante da administração do Estado volte a cumprir a sua função de garantir a segurança pública e ainda assim, respeitar os direitos humanos como direitos fundadores do estado democrático em que se vive.

3.    Considerações Finais

Nem por desvio e nem por excesso o abuso de poder poderá apresentar um caráter de resolução desses conflitos. A polícia militar, deve ser instruída pelo poder público a ter uma melhor forma de agir perante a sociedade. Entendendo o ponto de vista social das comunidades, sendo mais humanizada para lidar com as pessoas. A PM deve modificar desde o treinamento a forma como os policiais irão agir, modificar o tipo criminoso estereotipado, ter caráter ostensivo apenas quando houver necessidade e enxergar por uma ótica menos brutal. Para isso, devem ser concedidos também meios suficientes para que os policiais efetivem da melhor forma possível o seu trabalho. De acordo com a pesquisa realizada em 2014 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública


“não é apenas a organização das polícias que precisa ser reestruturada. Baixos salários (99,1%), formação e treinamento deficientes (98,2%), contingente policial insuficiente (97,3%), falta de verba para equipamentos e armas (97,3%), leis penais inadequadas (94,9%) e mesmo corrupção (93,6%) são alguns dos principais obstáculos para a realização de um trabalho mais eficiente. Segundo 86% dos respondentes, falta foco em resultado e sobra burocracia”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

  As condições de trabalho devem melhorar consideravelmente para que o policial se sinta mais seguro no exercício da sua função. Atualmente, o policial trabalha no entendimento de que está protegendo acima de tudo a sua própria vida, pois as situações do cotidiano policial são tão perigosas que o trabalho acontece mediante constante pressão. Nessa situação defensiva, o abuso de autoridade se torna prática cada vez mais exercida. Para que o quadro melhore, só é possível se houver iniciativa.

Existem algumas medidas já tomadas pelo poder público devem ser ampliadas como por exemplo a criação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) em outros estados que não só o Rio de Janeiro.

 “As UPPs fazem parte de uma política pública criada pela Secretaria do Estado de Segurança do Rio de Janeiro e é uma ação que visa o desenvolvimento social e econômico das comunidades, ao potencializar a entrada de serviços públicos, infraestrutura, projetos sociais, esportivos e culturais, investimentos e oportunidades” (RIO DE JANEIRO, 2014)

Dá um novo sentido à vida daquela população que não dialoga com a violência bruta e abordagem ostensiva, mas sim com uma situação de bem-estar social. Já outra iniciativa estatal que deve ser ampliada é o turismo nas comunidades. No estado do Rio de Janeiro, hoje em dia as comunidades fazem parte das rotas de turismo. Além de mover a economia dentro da periferia também gera incentivo no âmbito cultural e corrobora para a diminuição da violência.

Ademais estes programas, programas de desenvolvimento que foquem nas crianças das comunidades devem ser incentivados pois as crianças e os adolescentes que convivem com essa situação de constante conflito geralmente seguem o caminho das drogas e do crime, por não possuírem a menor perspectiva de vida. A educação chega precariamente para esses jovens que desde cedo convivem com violência, armas e consumo de drogas. O incentivo a prática de esportes, por exemplo, deveria estar presente dentro de todas as comunidades, no entanto a maioria dos programas já existentes são de iniciativa privada e não estão em todas elas.

Em suma, o que se deve apreender mediante os casos de abuso de autoridade e a Polícia Militar no Brasil é que, além de se relacionarem diretamente com a moralidade do povo brasileiro também se relacionam com o modo com que a administração pública é omissa quanto a maioria das situações. Não parte desta, apesar de ser de sua responsabilidade em caráter obrigatório, meios de se solucionar os casos vistos. Não parte da administração pública um modo eficaz de combate a essa problemática, mesmo que havendo atos que violam leis, mesmo que havendo a perda dos seus próprios agentes e de uma parcela significativa de uma só classe marginalizada da sociedade. Existem muitos meios com os quais a administração pública pode erradicar as práticas que estão violando o bem-estar da sociedade como um todo, mas esses meios só irão de fato transformar a realidade quando o Estado decidir o que todos, tanto os policiais que estão morrendo quanto as comunidades que perdem a seu direito a paz todos os dias, estão esperando: agir.

Referências

CÉSPEDES, Lívia; ROCHA, Fabiana Dias de. Vade Mecum. 23 ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017.

SILVA, Valdeonne Dias da. Abordagem policial e abuso de autoridade em busca pessoalRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19n. 39638 maio 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28050>. Acesso em: 31 maio 2017.

INSITITUTO HUMANITAS UNISINOS. Entrevista especial com Jair Krischke. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/532364-a-ditadura-fez-com-que-perdessemos-mais-de-uma-geracao-de-politicos-entrevista-especial-com-jair-krischke> Acesso em: 23 de maio de 2017.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penintenciárias. Dezembro, 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf> Acesso em: 12 de maio de 2017.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA.  Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais, LADEM. 2016. Disponível em: <http://www.ufjf.br/ladem/2016/06/07/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-e-assassinado-no-brasil-diz-cpi/> Acesso em: 31 de maio de 2017.

EL PAÍS. No Rio, a polícia que mais mata é a que mais morre também. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/04/politica/1491332481_132999.html> Acesso em: 29 de maio de 2017.

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Pesquisa Inédita mostra que policiais querem reforma. Disponível em: <http://cpja.fgv.br/debate/pesquisa-inedita-mostra-policiais-querem-reforma> Acesso em: 30 de maio de 2017.

EL PAÍS. Os policiais brasileiros querem desmilitarizar a instituição. 2014. <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/30/politica/1406679075_861116.html#HRW?rel=mas> Acesso em: 29 de maio de 2017.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. UPP’s – Unidades de Polícia Pacificadora. <http://www.rj.gov.br/web/seseg/exibeconteudo?article-id=1349728> Acesso em: 31 de maio de 2017.

Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos