Autotutela no direito civil brasileiro

Análise crítica acerca dos institutos da legítima defesa e do desforço imediato

28/09/2017 às 15:40
Leia nesta página:

O presente trabalho tem como objetivo promover discussões acerca dos institutos da legítima defesa e do desforço imediato, formas de proteção possessória, no que se refere a sua aplicação no atual cenário nacional.

INTRODUÇÃO

Estamos diante de uma sociedade cada vez mais tensa, onde a fluidez e liquidez dos valores e do tempo acaba por tornar as pessoas cada vez mais distantes e intolerantes, gerando conflitos que abarrotam o Judiciário brasileiro, levando-o a morosidade processual. Essa morosidade, por sua vez, gera na população a sensação de ineficiência da justiça, em todas as suas esferas e, usando como desculpa e motivação, partem para soluções pelas suas "próprias forças".

É nesse cenário em que vivemos atualmente que se encontra inspiração para questionamentos acerca dos institutos da legítima defesa da posse e do desforço imediato, ambos abarcados pelo art. 1.210, §1° do Código Civil de 2002. A autotutela, um meio tão antigo de se resolver litigâncias ainda poderia ser utilizada numa sociedade que se diz contemporânea, globalizada e politicamente correta? Esse instituto não corroboraria para a violência tão crescente no Brasil?

O presente trabalho tem como objetivo principal fomentar a discussão acerca da autotutela, no que tange a legítima defesa e ao desforço imediato, nesse cenário de crise ética no qual o Brasil se encontra. A metodologia escolhida foi a revisão bibliográfica, onde se debruça no que temos de mais atual e relevante na doutrina nacional acerca do tema escolhido.

Serão abordados conceitos de autotutela, legítima defesa e desforço imediato, meios utilizados na defesa da posse, bem como serão esses temas relacionados ao momento atual do Brasil no que diz respeito à crise ética, violência. Far-se-á, ainda, relação com o estado de natureza descrito por Thomas Hobbes e a notória falha do Estado em promover a paz.


METODOLOGIA

A metodologia utilizada para desenvolver o presente trabalho foi a revisão bibliográfica, onde buscou-se artigos científicos, livros, resumos que tratassem acerca do assunto trabalhado.

A pesquisa foi realizada virtualmente, através de sites de buscas voltados para trabalhos científicos.


DISCUSSÕES

Segundo o dicionário online de português, autotutela é a resolução de um conflito em que uma parte se sobrepõe a outra. É, portanto, a resolução da lide por suas próprias forças, onde a parte detentora de maior força e astúcia é a vencedora.

A autotutela está presente no ordenamento jurídico brasileiro, além de outros ramos do direito, no Código Penal Brasileiro, quando aponta a legítima defesa e o estado de necessidade como excludentes de ilicitude, em seu art. 23, inciso II. Está também no Código Civil, no Livro III, Título I, Da posse, art. 1.210, §1°.

Entende-se a autotutela como a autoproteção da posse. Sendo importante mencionar dois requisitos essenciais para que ocorra a autotutela: a imediatidade e a moderação. Ou seja, o possuidor turbado ou esbulhado poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo, não podendo ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse. O possuidor deve agir com suas próprias forças, embora possa ser auxiliado por amigos ou serviçais. É possível até o emprego de armas no limite necessário para fazer cessar a vedação. Logo, o detentor não possui legitimidade para fazer uso da autotutela, por ter apenas a coisa em seu poder, e não a sua posse.

Entende-se em legítima defesa, de acordo com o art. 25 do Código Penal, quem repele injusta agressão atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, usando de forma moderada os meios necessários. Assim, quem defende seu direito de posse, de forma proporcional e utilizando os mecanismos necessários, encontra-se abarcado por esse instituto de proteção possessória.

O desforço imediato ocorre quando o possuidor, depois de ter perdido a posse, consegue reagir e tomar a coisa (Gonçalves, 2016, p. 131).

O nosso ordenamento jurídico, portanto, legitima a possibilidade de seus cidadãos resolverem algumas questões por sua própria força, sem a interferência do Estado.

A autotutela nos remete ao passado, onde a presença do Estado nas relações sociais era inexistente, remete aos primórdios da sociedade, à Lei do Talião, o famoso "olho por olho, dente por dente", onde o mais forte vencia a lide "discutida".

É claro que muito se evoluiu daqueles tempos até os dias atuais, o Estado passou a reger a vida da sociedade, tomou para si a função/dever de intervir na vontade das partes, substituindo-as, tomando para si o papel de Estado-juiz e, hoje, a autotutela representa uma exceção à jurisdição estatal. Entretanto, por ser exceção, não deixa a autotutela de ser um dispositivo patrimonialista, carregado do espírito do homem em seu estado de natureza, regido por sua própria força, lutando contra todos. Sobre isso, ensina-nos Hobbes (1651), que, se dois homens desejam a mesma coisa e, ao mesmo tempo, é impossível ela ser gozada por ambos, isso acaba por torná-los inimigos. Eles, então, esforçam-se para destruir ou subjugar um ao outro. Diz, ainda, o renomado autor que, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provável que outros venham preparados com forças conjugadas para desapossá-lo.

Percebe-se, então, que esse homem, em seu estado de natureza, vive a temer uma turbação, um esbulho, porque, se ele tivesse a oportunidade, também o faria com outrem. Por isso, esse homem deve viver preparado para defender sua posse, sua liberdade, sua vida, através da autotutela. Ocorre que, para evitar viver dessa forma, sempre temeroso de invasão, os homens convencionam um contrato social, no qual abrem mão de um pouco de suas liberdades para terem uma segurança ofertada pela figura do Estado. O Estado assume, então, o papel de protetor, mediador das relações sociais, fazendo as vezes de estado-protetor e de estado-juiz.

A autotutela perdura como um resquício desse estado de natureza, como uma desconfiança para com o estado, uma oportunidade de resolução quando este for omisso. Diante da morosidade do judiciário brasileiro que, segundo o Conselho Nacional de Justiça, tem cerca de 92 milhões de processos tramitando desde 2012, da falta de acesso dos cidadãos ao Sistema Judiciário, onde, do número de processos existentes, apenas 5% são protocolados por estes, da sensação de impunidade e insegurança, a justiça pelas próprias mãos é vista como uma alternativa válida e necessária para garantia de direitos. Tanto que existem inúmeros argumentos favoráveis ao porte de arma de fogo livre a todos, por exemplo.

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Sabemos que a autotutela é uma exceção que somente pode-se dar por autorização legal e, em caso de desrespeito, encontrar-se-á o sujeito desobediente na figura tipificada pelo artigo 345 do Código Penal Brasileiro. No entanto, está cada vez mais sendo noticiado casos de linchamento de pessoas "julgadas criminosas pela sociedade", casos de massacres como o de Mato Grosso ocorrido em abril de 2017, por disputa de terras. A que (quem) devem ser atribuídos esses casos? A ineficácia da justiça que não deixa alternativa senão agir por conta própria? Ou a ineficácia da justiça que dá uma certeza de impunidade e liberalidade para tais práticas?

O fato é que a autotutela representa uma falência do contrato social firmado para a convivência em sociedade, seja porque o estado forte descrito por Hobbes não é capaz de proteger seu povo, seja porque a igualdade pretendida em detrimento de parcela da liberdade não está sendo respeitada como deveria ser no contrato social de Rousseau. O estado falhou com seus súditos e eles voltaram ao seu estado de natureza.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto até aqui, cumpre-nos refletir sobre os assuntos mencionados. Não há que se discutir a importância de mecanismos de defesa da posse, também é claro que, enquanto o Estado não for capaz de lidar com suas responsabilidades de proteção de seu povo, enquanto não puder oferecer segurança em todas as suas formas de forma eficaz e eficiente, a autotutela não desaparecerá, ao contrário, continuará a ser um mecanismo indispensável para proteção possessória.

Os pontos negativos de fomentar o uso da força para resolução de conflitos, raízes essencialmente patrimonialistas, não anulam a efetividade e necessidade da autotutela.

O estado de natureza do homem, apesar de ser uma criação hipotética, explica com louvor o que acontece atualmente em nossa sociedade. Uma crise ética, de valores fluidos, onde vive-se a temer, tanto ataques uns dos outros quanto a omissão do Estado. Este não é o homem forte descrito por Thomas Hobbes, ele é, pelo menos aqui e agora, um ente omisso e desatento às necessidades de seu povo, incapaz de proteger seus administrados e zelar por sua segurança.

A autotutela só poderá ser finalmente desnecessária quando os valores éticos da população e a efetivação dos direitos de propriedade, liberdade e segurança por parte do Estado ocorrerem simultaneamente. Como isso nos parece improvável ou distante, seguimos na compreensão de que a resolução pela força continue a ser uma exceção, baseada no princípio da proporcionalidade e utilizada em último caso.


REFERÊNCIAS

MALMESBURY, Thomas Hobbes de. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Disponível em: < http://lelivros.bid/book/baixar-livro-leviata-thomas-hobbes-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/ >. Acesso em: 22 de setembro de 2017.

DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS. Significado de autotutela. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/autotutela/>. Acesso em: 21 de setembro de 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 9ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL, Código Penal (1940). Código Penal. Vade Mecum Saraiva. 20° ed. São Paulo, 2015.

BRASIL, Código Civil (2002). Código Civil. Vade Mecum Saraiva. 20° ed. São Paulo, 2015.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Ministério da justiça aponta três principais problemas do Judiciário. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61341-ministerio-da-justica-aponta-tres-principais-problemas-do-judiciario >. Acesso em 22 de setembro de 2017.

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