1. INTRODUÇÃO
Com a evolução da sociedade, surgem novos problemas a serem enfrentados pelo direito nos dias atuais. A complexidade da problemática ambiental, por exemplo, clama por ações que acompanhem essa evolução natural da sociedade e tragam alternativas jurídicas para resolver os problemas advindos da degradação do ambiente.
Para tanto, faz-se necessário o reconhecimento dos deveres fundamentais nesse novo modelo de Estado em que se vive[1]. Com o objetivo de estudar o regime dos deveres na Constituição Federativa do Brasil, o presente trabalho abordará o conceito, a estrutura e o regime dos deveres fundamentais, para em um segundo momento destacar os deveres fundamentais de proteção do meio ambiente disciplinados na Carta Magna.
2 O DEVER FUNDAMENTAL
2.1 O regime jurídico-constitucional do dever fundamental
O tema dos deveres fundamentais foi esquecido também na doutrina constitucional contemporânea. Segundo Nabais(1998)[2], com o desenvolvimento teórico e dogmático das chamadas situações jurídicas passivas, tratou-se tão-somente de:
dar prioridade à liberdade (individual) sobre a responsabilidade (comunitária). O que se impõe, uma vez que esta pressupõe, não só em termos temporais, mas também em termos materiais, a liberdade, que assim constitui um prius que dispõe de primazia lógica, ontológica, ética e política face à responsabilidade.
Os deveres fundamentais devem ser vistos como uma categoria jurídica autônoma, primeiro porque não podem ser entendidos como mero corretivo dos direitos fundamentais, ou seja, a liberdade (direitos) limitada pela responsabilidade (deveres). Segundo, porque não se pode aceitar teorias que dissolvem o conteúdo dos direitos fundamentais nos deveres fundamentais, tais como nos estados absolutos, onde vigora um total primado dos deveres, ou nos estados democráticos, onde, apesar da supremacia dos direitos, estes possuem um dever (direito-dever), como, por exemplo, o direito-dever ao voto.
No Brasil, desde a Constituição Federal de 1824, existia o instituto do dever; este, porém, era atribuído principalmente ao Estado. Destaca-se nesta Constituição o dever de todos os brasileiros serem obrigados a pegar armas para a defesa brasileira, conforme art. 145, o que comprova a ênfase dada às forças armadas[3].
Somente na última Constituição Federal Brasileira, de 1988[4], é que apareceu o dever de solidariedade, representado, principalmente, pelo dever de proteção ao meio ambiente no seu artigo 225, que “(...) impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de protegê-lo e preservá-lo (...)”, bem como o dever de proteção ao patrimônio comum da humanidade, mencionado no artigo 216, no qual o “Poder Público, com a colaboração da sociedade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”.
A explicação lógica para, nos dias atuais, o dever ser de suma importância na concretização efetiva de um Estado de Direito Ambiental é demasiada simples e será explicada no decorrer desse trabalho. Mas por trás de um Estado existem os indivíduos humanos, que devem viver com dignidade. Os deveres fundamentais são instrumentos que auxiliam a vida em comunidade, facilitando a sua organização e, por si só, devem ser respeitados e cumpridos.
Nas palavras de Nabais (1998) temos que:
[...] a instituição ou não de deveres fundamentais repousa, em larguíssima medida, na soberania do estado enquanto comunidade organizada, soberania que não pode, todavia, fazer tábua rasa da dignidade humana, ou seja, da ideia da pessoa humana como princípio e fim de sociedade e do estado[5].
Dentro do conceito de dignidade do ser humano está implícita a necessidade de proteção do meio ambiente, sem o qual a vida na terra não pode acontecer. Por mais sensacionalista que possa parecer essa informação, a humanidade caminha para tal destino, e o reconhecimento e eficácia do dever fundamental poderiam servir de auxílio para a tentativa de recuperar o meio ambiente.
Mas, afinal, qual de fato é o conceito de dever fundamental? Segundo NABAIS (1998), o dever fundamental é aquele que está implícita ou explicitamente na Constituição Federal. Os deveres que não estão consagrados na Constituição seriam apenas deveres ordinários ou legais, enquanto aqueles deveres que não dependem do Estado para a sua concretização são deveres meramente morais[6].
Faz-se importante salientar que a Constituição Federal, no seu art. 5°, § 2°, possibilita que demais direitos não consagrados dentro do Capítulo II sejam reconhecidos como direitos fundamentais.
Quanto ao dever de proteção ao meio ambiente, não há dúvida de ser o mesmo um dever fundamental, principalmente porque a Constituição é explícita no art. 225, caput que o Poder Público e a coletividade têm o “dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
No plano funcional os deveres fundamentais constituem valores que acabam por sobrepor e ultrapassar o interesse da pessoa humana. Mas é claro que os deveres visam à pessoa humana, e seus benefícios devem ser repartidos entre toda a coletividade. Já o efeito estrutural da dimensão objetiva do dever, corresponde às normas constitucionais. Assim, os deveres manifestam-se como a inconstitucionalidade de normas e atos que sejam contrários à Constituição Federal.
Primeiramente o capítulo destinado ao meio ambiente não se preocupou apenas com as gerações presentes, mas também com as gerações que estão por vir, adotando explicitamente o princípio da equidade intergeracional. O grande destaque, no entanto, foi o reconhecimento do meio ambiente não só como um direito, mas também como um dever de proteção que cabe a todos – ao Poder Público e à coletividade.
Na Constituição Federal, porém, o § 1° do artigo 225, somente prevê os deveres atinentes ao Poder Público. Já nos § 2° e 3° é possível identificar alguns dos deveres cujos titulares são a própria comunidade. Esses deveres, cuja comunidade é a titular, podem ser encontrados em diferentes leis ordinárias, e que infelizmente, não serão estudadas neste trabalho.
Quanto aos deveres do Poder Público, é possível mencionar: o dever de proteção e manejo ecológico das espécies e ecossistemas; o dever de preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético, o dever de identificar em todo o território nacional os espaços a serem especialmente protegidos, o dever de exigir das atividades degradadoras do meio ambiente o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, o dever de controlar a produção, a comercialização e emprego de técnicas que podem colocar em risco a vida humana e o meio ambiente, promover a educação ambiental e, por fim, o dever de proteger a fauna e a flora.
No entanto, isoladamente, o Poder Público, apesar de poder alcançar a efetividade dessas medidas, exerceria um trabalho muito mais eficaz se agisse em parceria com a comunidade. Como o próprio caput da Constituição Federal menciona, cabe também à coletividade tal participação, na proteção do meio ambiente.
2.1.2 Estrutura dos deveres fundamentais
Depois do conceito dos deveres fundamentais, faz-se relevante para esse trabalho a análise da estrutura dos mesmos para que se possa entender e classificar melhor o dever fundamental de proteção ao meio ambiente.
Os deveres podem ser classificados, segundo Nabais (1998)[7], quanto aos seus titulares e quanto ao seu conteúdo. Quanto aos seus titulares, faz-se necessária a distinção de três situações.
Em primeiro lugar, é possível identificar um dever fundamental, cujo titular é a comunidade, que tem deveres perante o Estado Federado. Esses deveres são conhecidos como deveres clássicos, com conteúdo ligado ao dever cívico-político. Exemplos desses deveres são: dever de votar, dever de serviço militar, dever de colaboração com a administração eleitoral, dentre outros.
Assim como os titulares dos deveres fundamentais clássicos, a comunidade também é titular dos deveres fundamentais modernos (dever fundamental de conteúdo econômico, social e político). Esses deveres são frutos, principalmente, de um Estado Social de Direitos, tendo como exemplos o dever de trabalhar, o dever de cultivar a terra, o dever de promover a saúde e de defender o ambiente, deveres estes que são frutos da própria organização e da sobrevivência da sociedade e não necessariamente do Estado. Os deveres também podem ser classificados quanto aos seus destinatários e estes são todas as pessoas físicas ou os indivíduos.
Os cidadãos, representando os interesses da comunidade, acabam por representar o interesse do próprio Estado, já que este tem o fim de proteger e assegurar a própria pessoa. Ainda, importante salientar o efeito de terceiros dos deveres fundamentais, ou seja, de deveres fundamentais entre cidadãos. Esse fato fica claro quando se fala em dever fundamental de proteção ao meio ambiente, conceito que traz a ideia de solidariedade e fraternidade, apontando para deveres que relacionam não só Cidadão/Estado, mas também Cidadão/Cidadão.
Analisar-se-á, a partir de então, o dever fundamental de proteção ao meio ambiente, enfatizando esse dever, na Constituição Federativa do Brasil.
3 O DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
A necessidade de proteção ambiental levou ao estudo mais aprofundado dessa temática, inclusive na área da ciência jurídica. A ciência do direito também possui importante papel nessa batalha, tendo como função estabelecer normas e leis que reprimam as atividades nocivas do ser humano à natureza, estimulando aquelas que possam vir a contribuir para o interesse público. O meio ambiente tem, portanto, valor jurídico e deve ser tutelado.
Para isso, no entanto, o reconhecimento do valor fundamental do meio ambiente é de suma importância. Esse fato está sendo visualizado nas constituições de diversos países, mas sua efetividade só será alcançada no momento em que os cidadãos reconhecerem seu dever na luta de proteção ao meio ambiente.
No Brasil, os ambientalistas não somaram esforços para pressionar o Poder Constituinte de 1988 para contemplar a proteção do meio ambiente como um direito constitucional. Essa maciça manifestação levou à redação do Capítulo VI na Constituição Federal, intitulado Do Meio Ambiente, que, no seu artigo 225, caput teve a seguinte redação: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações[8]
Segundo o inciso I do § 1° do artigo 225 da Constituição Federal, é dever do Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, assim como prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas.
Esse dever traz grande dificuldade para o seu cumprimento, pois nem sempre aquilo que o ser humano acredita ser o melhor no momento da feitura do manejo ecológico é de fato o melhor para a preservação da relação ser vivo e ambiente, e, mais, talvez o homem não tenha poder suficiente para isso.
Da mesma forma que o processo ecológico essencial, o manejo ecológico também apresenta riscos nessa fase de desenvolvimento e tecnologia em que se encontra a humanidade.
Outro dever do Poder Público é preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de materiais genéticos, conforme inciso II, do § 1° do artigo 225 da Constituição Federal.
O que se nota, no entanto, é que o Estado não está tendo condições de cumprir com todos esses deveres delegados pela Constituição Federal. Além de todos esses que já foram mencionados acima, há ainda o dever de promover a educação ambiental e o dever de proteger a flora e a fauna.
São poucas as legislações infraconstitucionais que mencionam o dever do indivíduo. A grande maioria coloca a responsabilidade no Estado. No entanto, talvez a melhor solução para a efetiva proteção do meio ambiente seja o cumprimento, em primeiro lugar, do dever de promover a educação ambiental.
O dever de “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública, para a preservação do meio ambiente”[9], tem regramento infraconstitucional ( Lei nº 9.795/99). Propõe-se, então, a modificação da percepção da educação ambiental nos moldes atuais, para uma visão integrada da educação juntamente com os parâmetros ambientais. O povo, alvo da legislação ambiental, ambientalmente educado, poderá, com maior propriedade, fazer cumprir seu dever perante o meio ambiente, pois conhecerá as leis e compreenderá a importância fundamental deste bem.
Com tudo isso, não resta dúvida da necessidade de reconhecer o dever fundamental de proteção do meio ambiente, discutido nesse trabalho. A própria Constituição já fala do dever da coletividade, como, por exemplo, no § 2° do art. 225, que menciona que as pessoas que explorarem recursos minerais têm o dever de recuperar o meio ambiente degradado, ou como no § 3° do mesmo artigo, no qual toda e qualquer atividade que causar dano ou que for considerada lesiva para o meio ambiente sujeitará o infrator (pessoa física ou pessoa jurídica) a sanções penais, civis e administrativas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho tratou, de forma sucinta, da problemática ambiental e da necessidade de se reconhecer o dever fundamental de proteção ao meio ambiente, para que haja uma efetiva preservação do mesmo. Destacou-se o dever fundamental de proteção ao meio ambiente trazidos pelo artigo 225 da Constituição Federal.
Importante notar que, pelo art. 225 da Carta Constitucional não só o Estado, mas também a coletividade são titulares dos deveres ambientais. Neste trabalho, porém, deu-se ênfase nos deveres estatais, previstos no § 1° do mesmo artigo, tentando-se demonstrar, ao final, que sem o auxílio do Estado e da sociedade, em um trabalho conjunto, as tentativas para a preservação do ambiente não serão concretizadas.
Os deveres da coletividade estão regulamentados em diferentes leis ordinárias que versam sobre a proteção ambiental. Por ser complexo tal tema, não foi possível aprofundá-lo neste trabalho.
Por fim, a concretização do dever fundamental de proteção ambiental é apenas o primeiro passo na tentativa de manter o equilíbrio do planeta terra. O desafio da ciência do direito é buscar novos mecanismos e instrumentos, que venham a auxiliar de forma transdisciplinar a resolução da complexidade sentida por toda a sociedade nos dias atuais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Brasileira. Brasília, DF: Senado Federal, 2006.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria lmedina, 1998.
MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016
Notas
[1] Entende-se por Estado de Direito Ambiental um Estado Democrático e Social, no qual todos do povo tenham o dever de proteger a natureza, não só para o presente, mas também para as futuras gerações, assumindo uma posição não mais antropocêntrica, mas ecocêntrica. Esse Estado, no entanto, necessita do trabalho em parceria entre o Poder Público e a sociedade civil, diferentemente dos outros modelos estatais já vivenciados, em que Estado e Sociedade trabalhavam isoladamente ou o Estado era apenas garantidor dos direitos da sociedade.
[2] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria lmedina, 1998.
[3] BRASIL. Constituição Brasileira de 1824. Coleção Constituições Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 2006.
[4] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Coleção Constituições Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 2006.
[5] NABAIS, J. C. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 60.
[6] NABAIS (1998), p. 61-63
[7] NABAIS (1998), p. 101-111.
[8] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
[9] Art. 225, § 1°, VI da Constituição Federal