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O documento eletrônico na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

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12/01/2005 às 00:00
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7. Peticionamento Eletrônico: protocolo dos originais.

Como visto na seção 4, a Lei nº 9.800, de 26 de maio de 1999, tornou possível o envio de petições aos Tribunais por meio de recursos eletrônicos, instituindo o chamado sistema de peticionamento eletrônico.

Esse sistema visou a permitir a utilização processual dos modernos instrumentos tecnológicos de transmissão de dados.

Na prática, quem utiliza o peticionamento eletrônico vem se deparando com alguns problemas.

De início, cumpre distinguir duas situações:

1) quando a transmissão eletrônica de dados é perfeita, porém a parte se equivoca ao efetuar o protocolo dos originais; e

2) quando ocorre erro na transmissão eletrônica da petição, ainda que os originais sejam corretamente protocolizados.

A primeira hipótese cuida de erro da parte e será analisada nesta seção. A segunda hipótese, por outro lado, refere-se à falha no mecanismo eletrônico de transmissão de dados e será objeto de estudo no tópico seguinte.

Frise-se, portanto, que o raciocínio a ser desenvolvido nesta seção aplica-se apenas aos casos em que a transmissão eletrônica da petição tenha sido perfeita, tal como nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 525.067/ES 27.

Esse caso versa sobre Embargos de Declaração interpostos contra decisão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Os Embargos foram interpostos perante o Superior Tribunal de Justiça, tempestivamente, via fax.

Entretanto, a recorrente, por engano, efetuou o protocolo dos originais no Supremo Tribunal Federal, no prazo previsto no artigo 2º da Lei nº 9.800/1999 28.

Ao constatar o equívoco, o próprio setor de protocolo do Supremo Tribunal Federal remeteu a via impressa do recurso ao Superior Tribunal de Justiça. Porém, nesse momento já havia se esgotado o prazo de 05 (cinco) dias para apresentação dos originais.

Então o Superior Tribunal de Justiça, por decisão unânime, deliberou não conhecer dos Embargos de Declaração 29.

A mencionada decisão foi induvidosamente correta. A interposição de recurso por meio de peticionamento eletrônico é ato complexo 30 que só se aperfeiçoa com a posterior entrega dos originais no Tribunal competente, no prazo previsto no 2º da Lei nº 9.800/1999. In casu, os originais não foram devidamente protocolizados, por falha exclusiva da parte. Conseqüentemente, deve-se considerar inválida a petição do recurso, por inobservância da forma prescrita em lei para a prática do ato 31.

Até o advento da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, esse posicionamento era indene de dúvidas. Entretanto, após o advento da referida norma, torna-se necessária uma reflexão.

A Medida Provisória nº 2.200-2 implantou no país o substrato legal necessário à certificação dos documentos eletrônicos, possibilitando auferir sua autenticidade e integridade 32. Em face dessa inovação, é possível supor que, no futuro, se dispense a entrega dos originais da petição eletrônica, desde que esta seja devidamente certificada por meio de assinatura digital, atendendo à forma prescrita em lei para a prática do ato.

Disse-se no futuro. Porém, cabe frisar que tal prática já está sendo testada no Tribunal Regional Federal da 4º Região 33.

7.1. Falha na transmissão de dados.

Outra dificuldade prática decorrente da utilização do sistema de peticionamento eletrônico consiste em determinar a conseqüência jurídica que deve ser atribuída à parte quando o documento eletrônico não é corretamente recebido no Tribunal de destino, ainda que os originais em papel sejam posteriormente protocolizados.

Essa questão relaciona-se à interpretação dos artigos 2º e 4º da Lei nº 9.800/1999:

"Art 2º A utilização de sistema de transmissão de dados e imagens não prejudica o cumprimento dos prazos, devendo os originais ser entregues em juízo, necessariamente, até cinco dias da data de seu término.

Parágrafo único. Nos atos não sujeitos a prazo, os originais deverão ser entregues, necessariamente, até cinco dias da data da recepção do material."

"Art 4º Quem fizer uso de sistema de transmissão torna-se responsável pela qualidade e fidelidade do material transmitido, e por sua entrega ao órgão judiciário.

Parágrafo único. Sem prejuízo de outras sanções, o usuário do sistema será considerado litigante de má-fé se não houver perfeita concordância entre o original remetido pelo fac-símile e o original entregue em juízo."

O alcance dos referidos dispositivos foi analisado pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 529.447/RJ 34.

Trata-se de recurso de Agravo Regimental interposto via fax, com base na Lei nº 9.800/1999.

Por erro na transmissão eletrônica de dados, a petição não foi integralmente recebida pelo Tribunal.

Assim, mesmo tendo sido entregues tempestivamente os originais, não se conheceu do recurso 35.

Salientou a Relatora, Ministra Laurita Vaz, que constitui ônus exclusivo do peticionário assegurar que a petição por ele remetida ao Tribunal tenha sido recebida em sua integralidade. Se o peticionário não se desincumbe de tal ônus, considera-se não praticado o ato, ainda que os originais da petição sejam tempestivamente protocolizados.

No caso concreto, tal posicionamento foi acertado.

De fato, a forma e o conteúdo da petição remetida pela via eletrônica devem equivaler aos originais em papel 36. Se assim não fosse, far-se-ia letra morta do artigo 2º da Lei nº 9.800/1999. Haveria, assim, uma dilação ilegal de prazos processuais. Imagine-se, por exemplo, a situação em que tivessem sido enviadas eletronicamente apenas as três primeiras páginas de uma petição, enquanto os originais em papel, posteriormente protocolizados, totalizassem 15 laudas. Como certificar que as demais 12 laudas não foram escritas após o término do prazo?

Esse caso não constitui decisão isolada do Superior Tribunal de Justiça. Ao contrário, o mesmo raciocínio orientou o posicionamento dos Ministros no julgamento de diversos outros recursos, dos quais destacam-se os Embargos de Declaração no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11.438/RO 37.

Cuida-se de Embargos de Declaração interpostos tempestivamente, via fac-símile, sendo que aproximadamente três laudas do recurso não foram recebidas pelo Tribunal.

Não obstante, os originais em papel foram posteriormente protocolizados, dentro do prazo previsto no artigo 2º da Lei nº 9.800/1999 38.

Também neste caso não se conheceu do recurso ao argumento de que não havia identidade entre a petição remetida pela via eletrônica e os originais. Salientou-se, uma vez mais, que o ônus de assegurar tal equivalência incumbe ao peticionário.

Os casos citados foram ambos decididos por unanimidade. Tais decisões vêm sendo aceitas e repetidas sem maiores questionamentos, pois parecem adotar a única interpretação possível dos artigos 2º e 4º da Lei nº 9.800/1999, tendo em vista a clareza desses dispositivos.

Entretanto, uma análise mais aprofundada dos mencionados artigos deve diferenciar duas situações:

1) quando o erro na transmissão do documento eletrônico decorre de falha do peticionário; e

2) quando esse erro é imputável, exclusivamente, ao Poder Judiciário.

Esse questionamento será retomado na seção 7.3, por meio da análise de caso concreto que ilustra a importância prática de tal distinção.

7.2. Utilização do e-mail.

Antes de adentrar na questão proposta neste tópico, convém transcrever novamente o artigo 1º da Lei nº 9.800/1999:

"Art 1º É permitida às partes a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita."

Como destacado anteriormente 39, o artigo 1º define quais recursos tecnológicos podem ser utilizados na transmissão eletrônica de documentos, delimitando o âmbito de aplicação da Lei nº 9.800/1999.

Ao invés de arrolar taxativamente tais recursos, esse artigo optou por uma "norma de caráter aberto" 40. Assim, o texto da norma refere-se apenas ao fac-símile, ressalvando a possibilidade de utilização de instrumentos similares.

Quais são, atualmente, esses instrumentos similares?

Especificamente a internet e o e-mail podem ser utilizados para fins de peticionamento eletrônico?

Na Doutrina, de um modo geral, a resposta é positiva:

"A nova lei permite (a advogados e juízes) a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de forma escrita. Assim, petições e decisões judiciais podem ser veiculados por fax ou por e-mail.

A expressão ou outro similar, contida no art. 1º, realmente, compreende a transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou via e-mail. O correio eletrônico ou e-mail e´, hoje, uma das maneiras mais fáceis e rápidas de transmissão de dados e imagens." 41

(sem grifos no original).

"Com base nessa lei (Lei nº 9.800/1999), algumas varas em alguns Estados implantaram via Internet serviços de recepção eletrônica de petições, como ocorreu com a 1ª Vara Criminal de Campinas. As petições e documentos podem ser remetidos para o e-mail da Vara, inclusive arquivos gráficos, sonoros e de vídeo. (...) O cartório imprime diariamente os e-mails, juntando-os aos respectivos autos." 42

(sem grifos no original).

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, a questão está longe de ser pacífica. O Recurso Especial nº 594.352/SP 43 porfiou o tema, concluindo pela impossibilidade de utilização do e-mail. Eis o caso:

Cuida-se de Recurso Especial produzido em programa editor de textos e remetido ao Superior Tribunal de Justiça por e-mail.

A Terceira Turma dessa Corte, por maioria, entendeu que o e-mail não equivale ao fax para fins de peticionamento eletrônico.

O argumento foi o de que o fax transmite cópia idêntica do documento original, reproduzindo-o como em uma fotografia. Já o arquivo eletrônico, por outro lado, não corresponderia integralmente ao documento original, entre outros fatores, por não conter a assinatura manuscrita do advogado 44.

Por esse raciocínio, a utilização do e-mail seria admissível apenas para enviar ao Tribunal a cópia digitalizada do documento, já devidamente assinado, pois somente nessa hipótese haveria completa identidade entre o arquivo eletrônico e a via original.

Destaque-se o trecho final do voto do Relator, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro:

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"A mera transmissão do arquivo eletrônico produzido nos editores de texto não constituirá forma idônea de interposição de recursos enquanto não se viabilizarem as chamadas assinaturas eletrônicas, que, aliás, penso eu, dispensarão qualquer envio posterior de documento original." 45

O trecho citado enseja duas considerações.

Primeiro, equivoca-se ao não distinguir a assinatura eletrônica da assinatura digital 46.

O termo assinatura eletrônica é um gênero que compreende diversas espécies, tais como a assinatura digital, as senhas e a assinatura biométrica. Assinatura eletrônica, portanto, já existe no Brasil há anos. Exemplo clássico são as senhas bancárias utilizadas nos caixas eletrônicos.

Em segundo lugar, o Relator esqueceu-se de que, desde o ano de 2001, já existe regulamentação legal no país dispondo sobre a assinatura digital. Trata-se da Medida Provisória nº 2.200-2 que implantou o chamado ICP-Brasil, a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira, destinada a possibilitar a certificação digital dos documentos eletrônicos. Ora, pra que serve então toda essa infra-estrutura?

O caso em exame evidencia que o real problema não é a falta de regulamentação. Ao contrário, parece ser o seu desconhecimento ou, simplesmente, sua não utilização.

Essas duas considerações servem de prelúdio às demais críticas que poderiam ser tecidas em relação ao citado acórdão. Entretanto, ao invés de críticas, preferimos apresentar decisão anterior do próprio Superior Tribunal de Justiça, versando sobre o mesmo tema, porém, desta feita, digna de elogios.

Cuida-se de Embargos de Declaração apresentados por e-mail, nos moldes do caso anterior 47. No mérito, entretanto, a conclusão deste acórdão foi absolutamente diversa.

Cabe frisar que o Relator deste acórdão foi justamente o Ministro Humberto Gomes de Barros, que havia sido voto vencido no caso anterior.

No mérito, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou que o e-mail equivale ao fax para fins de peticionamento eletrônico, por serem ambos mecanismos de transmissão de textos escritos.

Salientou-se ser desnecessária a assinatura do recorrente no arquivo enviado por e-mail, uma vez que o artigo 2º da Lei nº 9.800/1999 não faz tal exigência. Sendo assim, não pode o magistrado interpretar extensivamente uma norma restritiva de direitos, sob pena de criar óbice não previsto em lei.

Em conclusão, considerou-se válido o peticionamento via e-mail, desde que o peticionário certifique-se de que o arquivo foi integralmente recebido pelo Tribunal 48.

Perfeita a decisão.

O curioso, neste caso, é que o voto prolatado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros foi acolhido, à unanimidade, pelos membros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça. Posteriormente, entretanto, o mesmo voto foi rechaçado pelos componentes da Terceira Turma, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 594.352/SP.

Parece-me que os Ministros da Primeira Turma, mais afetos ao Direito Público, sobretudo ao Direito Constitucional 49, souberam acolher com maior facilidade o louvável e contemporâneo entendimento do Ministro Humberto Gomes de Barros. Oxalá este, e não o posicionamento esposado no Recurso Especial nº 594.352/SP, se torne o entendimento predominante do Superior Tribunal de Justiça.

7.3. Inversão da Teoria do Risco.

Cuida-se, neste tópico, de caso concreto que evidencia a importância da seguinte distinção:

1) quando o erro na transmissão de um documento eletrônico decorre de falha do peticionário; e

2) quando esse erro é imputável, exclusivamente, ao Poder Judiciário, ou seja, ao Tribunal ao qual fora remetido o documento.

O caso 50 versa sobre Recurso Especial interposto via e-mail, no último dia do prazo recursal, durante o expediente forense, às 16h10. Entretanto, o funcionário do Tribunal de destino somente juntou o recurso aos autos no dia seguinte, quando então já havia se expirado o prazo.

Em conseqüência, o Relator do recurso, Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, dele não conheceu, por intempestividade.

Inconformada, a recorrente interpôs Agravo Regimental argumentando que enviara tempestivamente ao Tribunal a petição do Recurso, apresentando como prova documento do qual constavam a data e o horário de envio do arquivo eletrônico.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, manteve a decisão do Relator 51. O fundamento da decisão foi o de que o artigo 4º da Lei nº 9.800/1999 dispõe ser responsabilidade do peticionário certificar-se de que o documento eletrônico tenha sido corretamente recebido pelo órgão judiciário 52.

Além disso, a recorrente demonstrou apenas ter remetido a petição às 16h10 do último dia do prazo, porém não comprovou que ela tenha sido recebida pelo Tribunal no mesmo dia, ainda durante o expediente forense 53. Em conseqüência, considerou-se que a petição fora recebida após as 19h e, por isso, juntada aos autos apenas no dia seguinte 54.

Com tal decisão, evidentemente, não se pode concordar.

Primeiro, porque o e-mail caracteriza-se, justamente, pela celeridade na transmissão de informações. Uma carta enviada por correio, de um país a outro, pode demorar alguns dias para chegar a seu destino. A mensagem eletrônica, ao contrário, percorre a mesma distância em questão de segundos 55.

Assim, em circunstâncias normais, não é razoável admitir que um e-mail enviado à 16h10 tenha sido recebido após as 19h, tal como entendeu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. Principalmente pelo fato de que o remetente juntou aos autos documento comprobatório da data de envio 56.

Ademais, ao transferir para o usuário do serviço de peticionamento eletrônico o ônus de certificar o recebimento dos dados pelo destinatário, em última análise, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça transfere ao usuário o risco de falha técnica no serviço.

Por esse raciocínio, em caso de falha técnica nos serviços disponibilizados pelo Poder Judiciário, os prejuízos daí decorrentes devem ser suportados pelo particular que deles se utilizou.

Mutatis mutandis, seria como transferir ao usuário do sistema de transporte público a obrigação de suportar os danos decorrentes de falha nesse sistema. Ora, a se admitir isto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em matéria de documentos eletrônicos seria contrária à orientação firmada pelo próprio Tribunal em relação às demais espécies de serviço público 57.

Conclui-se, portanto, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em matéria de documentos eletrônicos inverte a teoria do risco administrativo na prestação de serviços públicos 58.

QUADRO COMPARATIVO

Serviço de Peticionamento Eletrônico

X

Demais espécies de Serviço Público

Falha na prestação do serviço

Ausência de responsabilidade do prestador do serviço

(Poder Judiciário)

Prejuízos suportados pelo usuário

X

Falha na prestação do serviço

Responsabilidade do prestador do serviço

Prejuízos suportados pelo prestador do serviço

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Sobre o autor
Leonardo Netto Parentoni

professor, advogado, mestrando em Direito Empresarial pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARENTONI, Leonardo Netto. O documento eletrônico na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 560, 12 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6099. Acesso em: 26 abr. 2024.

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