Capa da publicação Bazófia moral e a rapidez em que os seres humanos julgam uns aos outros
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Bazófia moral

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17/10/2017 às 10:03
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Notas

[1] Parodiando a Pierre-Jean-George Cabanis (1802) podemos dizer que o cérebro humano produz juízos morais igual que “el hígado segrega bilis”.

[2] Recordemos a afirmação de Umberto Eco: "Las redes sociales les dan el derecho de hablar a legiones de idiotas que primero hablaban sólo en el bar después de un vaso de vino, sin dañar a la comunidad. Ellos eran silenciados rápidamente y ahora tienen el mismo derecho a hablar que un premio Nobel. Es la invasión de los necios."

[3]https://www.researchgate.net/publication/279188015_Sobre_a_fofoca_e_a_vida_dos_demais

[4] Segundo Molly Crockett, para quem as redes sociais são «estímulos supernormais» para a indignação moral e disparam uma indignação (moral) maior da que disparariam os estímulos da vida diária, a indignação moral é tão antiga como a civilização, mas os meios digitais, Internet e as redes sociais, cambiaram por completo sua expressão de três maneiras principais: a) exacerbam a expressão da indignação moral ao inflar os estímulos que a desencadeiam, b) reduzem os custos da expressão da indignação (moral), e c) amplificam enormemente os benefícios pessoais (no caso, o efeito sobre a reputação e a qualidade moral do sujeito). Nota bene: «Estímulo supernormal» é um conceito evolucionista muito potente que consiste em um estímulo artificial que exagera as características do estímulo natural fazendo-o irresistível e muito mais atrativo para o animal que o estímulo natural; por exemplo, um bolo coberto de chocolate é um «estímulo supernormal» que exagera os traços doces pelos que nos sentimos atraídos de forma natural, uns seios de silicone são um «estímulo supernormal» e o programa Big Brother é um «estímulo supernormal» que sacia nosso grande apetite pela informação social. Resumindo, os meios digitais transformam a indignação moral ao cambiar tanto a natureza como a prevalência dos estímulos que a disparam.

[5] Justin Tosi & Brandon Warmke (2016). Moral Granstanding. Philosophy & Public Affairs 44:3 pp197-217.

[6] Na verdade, se nos detemos atenta e cuidadosamente sobre as condições do impulso de exibir-se saltará à vista que o exibicionismo não é um fim em si mesmo, senão um dos meios possíveis na realização de um propósito indicativo de baixa autoestima e de narcisismo pessoal ligado ao egocentrismo. Para dizê-lo de alguma maneira menos rebuscada: é um enorme «sem-sentido» (salvo o «sentido pessoal» da estimação, compreensão, diferenciação e individualização do mundo que nos rodeia) e com invisíveis consequências práticas se não julgamos e recriminamos para demonstrar aos demais que sabemos mais que o «outro», que vemos mais longe, mais rápido, mais profundo, mais preciso, mais elaborado e que nossa inatacável virtude moral é mais poderosa que a do «outro». Do contrário, julgar seria como rezar pelos enfermos, isto é, um pouco como a masturbação: os que a praticam podem sentir-se bem,  “pero no hace nada por la persona en la que están pensando” (no caso, à pessoa a quem se está julgando).

[7] E não é isto tudo. Somos uma espécie com uma predisposição especial para moralizar a tudo e a todos. E com esse processo pelo qual qualquer coisa que previamente se considerava fora do campo moral entra dentro do mesmo (moralização) — quer dizer, no campo moral que tem que ver com o bem e o mal, com o que se deve e não se deve fazer, e que se impõe —, surge o que Tzvetan Todorov denominou de moralismo (a lição moral ditada aos outros, da qual quem dita a lição se sente orgulhoso); e com o moralismo, o moralista. Para Todorov, o indivíduo moralista “no pierde su tiempo en elogiar el bien, ni en los otros, ni siquiera en él mismo; el beneficio indirecto — que él extrae de su postura, la de denunciador del mal en general — le basta. Siempre ha sido así: aquel que delataba a la mujer adúltera para la venganza de los otros gozaba secretamente de su propia superioridad. El moralista se parece, entonces, a aquel a quien se llama algunas veces el fariseo, si se pone el acento menos en su ocasional hipocresía, o en su formalismo, que en su tendencia a juzgar a su prójimo con severidad. El moralista vive en la buena conciencia, está animado de lo que se llama en inglés self-righteousness; como complemento de ello, vigila meticulosamente las faltas de los otros. Un precepto para el próximo siglo podría ser: comenzar por combatir, no el mal (en los otros) en nombre del bien (que nosotros detentamos), sino la confianza de quienes pretenden saber siempre dónde se hallan el bien y el mal; no al diablo sino —en principio— a los maniqueos.  Lo contrario de un mal no es forzosamente un bien; puede ser otro mal.”

[8] Jordan, J. J. et al. Third-party punishment as a costly signal of trustworthiness, Nature, 530, 473–476, (25 February 2016), doi: 10.1038/nature16981. Um bom resumo do artigo realizado pelos próprios autores: https://www.nytimes.com/2016/02/28/opinion/sunday/whats-the-point-of-moral-outrage.html?_r=0

[9] “Tanto si pasamos mucho tiempo con esas personas porque estamos de acuerdo con ellas o si estamos de acuerdo con ellas porque pasamos mucho tiempo juntos, la cuestión fundamental sigue siendo la misma. No es solo que participemos de una creencia; es que participamos de una comunidad de creyentes.” Kathryn Schulz

[10] Desnecessário entrar em detalhe sobre o experimento realizado no estudo. Basicamente se dá dinheiro a uma pessoa que pode dedicá-lo a castigar aos que se portem mal, enquanto que outra pessoa observa sua conduta e decide se confiar nele ou não. O resultado é que efetivamente os que mais castigam são mais fiáveis e o observador faz bem em confiar neles. Nota bene: Em um interessante artigo, C. J. Clark, R. F. Baumeister e P. H. Ditto (Making punishment palatable: belief in free will alleviates punitive distress. Consciousness and cognition, 2017, 51:193-211) propõem que o livre-arbítrio serve para justificar os impulsos de castigar ao fazer aos que infringem as normas moralmente responsáveis, e assim justificar seu castigo sem sofrer o stress que fazer dano a um semelhante implica. Segundo os autores do artigo, há que fazer o castigo mais aceitável e que o livre-arbítrio serve precisamente para isso, para facilitar o castigo e para aliviar o mal-estar que produziria fazer dano a outro ser humano.

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[11] Richard Feynman  escreveu um livro titulado  ¿Qué te importa lo que piensen los demás?, demonstrando assim que lhe importava tanto como para dedicar centos de páginas a intentar convencer aos demais de que não. Não podemos subtrair-nos às opiniões alheias (naquilo que dizia Austen de intentar condicionar a opinião que os demais tenham de nós) e menos ainda acerca de um tema tão transcendental como resulta ser “uno mismo”, e o curioso é que não importa que lugar se ocupe na hierarquia social, nem quanto poder se ostente, que essa dependência não diminui. De fato aumenta, multiplicando a necessidade de gastos suntuários que demonstrem essa posição, assim como a obsessão por autênticas banalidades. Não podemos evitá-lo, simplesmente.

[12] Seguramente o sofrido leitor (a), como ser humano que é, estará neste momento pensando que isto só ocorre com as outras pessoas. Uma ingenuidade sem paliativos. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para abandonar a cautela, buscar e encontrar padrões e narrações para interpretar a própria realidade, e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que se inventa. É natural nossa tendência a negar a relevância dos fatos, a rechaçar instintivamente as debilidades que nos caracterizam, a criar “pontos cegos” mentais no que à verdade se refere, e um longo etcétera. Nisso somos únicos: “la sensación de centralidad, sentirse epicentro del mundo y de las cosas, tomarse a sí mismo como unidad de medida y como promedio, como referencia y como verdad”. (E. Bruner)

[13] É deveras sabido que não julgamos igual os atos dos demais e os próprios, que vemos muito bem “a palha no olho alheio, mas não a viga no próprio”. Não somente tendemos a pensar que temos (e atuamos com) razão e que os que atuam motivados por interesses são os outros, senão que  sofremos de uma grande quantidade de vieses cognitivos que distorcem nossa visão do mundo e de nós mesmos. Somos vítimas de nosso delicado e “sobre-excitado” ego, cegos aos nossos próprios equívocos, tendenciosos em nossas avaliações, e muitas vezes não serve de nada que nos expliquem, porque seguiremos pensando o mesmo. Ademais, está o que se conhece como «erro fundamental de atribuição»: uma assimetria - demasiado recorrente em relações humanas - na atribuição da causa quando estamos considerando a conduta alheia em oposição à nossa própria. A ideia fundamental é que, ao intentar compreender o comportamento dos demais, as pessoas tendem a atribuir à conduta observada uns fatores de personalidade, em contradição às características das situações. Ao fim e ao cabo, é fácil explicar o comportamento dos demais em termos de personalidade (tanto no que se concerne aos traços relativos ao «caráter» como os vinculados com o «temperamento»), especialmente quando os conceitos e os correlatos de nossas «teorias da personalidade» intuitivas não estão bem definidos (por exemplo: «Sabia que faria isto porque é uma pessoa muito egoísta, um canalha empedernido»). Por outro lado, quando interpretamos nossas próprias ações, costumamos explicá-las desde uma perspectiva das circunstâncias em que nos encontramos (por exemplo: «Explodi porque me encontrava em uma situação insuportável e baixo muita pressão»). Somos sempre vítimas das circunstâncias; os demais, vítimas de uma personalidade viciada e/ou de um caráter débil ou deformado. A personalidade/caráter rege a conduta dos demais, mas a situação o faz com a nossa. Assim que ao tratar de compreender ou quando penso na atitude do outro percebo que sua personalidade destaca sobre um fundo de diferentes situações, isto é, não tenho nenhum problema para julgar que seu comportamento se baseia fundamentalmente em um determinado tipo de temperamento ou tendências que contribuem à incoerência das pautas de sua vida emocional, de seus pensamentos e de seus atos (como assinala Richard Alexander, ao estabelecer o conceito de «reciprocidade indireta», “se trata de un matiz importante de la psicología moral humana, a saber, que los seres humanos atribuimos con más facilidad la virtud a la persona y consideramos que la virtud es un atributo de la persona más que pensar que la virtud es un atributo de los actos o de las decisiones, es decir, que no tendemos a pensar que alguien puede ser bueno en una situación y malo en otra.”). Ao tratar de compreender ou explicar minhas próprias ações, no entanto, percebo os câmbios das circunstâncias destacados sobre o fundo estável e fiável de meu caráter, de meu «eu» (https://www.researchgate.net/publication/282869932_Sobre_o_mito_e_a_maldicao_do_Eu_Parte_1). Minha ablepsia unicamente se aplica a meus próprios motivos e atos, não aos dos demais. Em outras palavras, “não existe o bem e o mal, só meu bem e vosso mal” (L. Bruce): miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Como vítimas inocentes dos estragos produzidos pelas circunstâncias, o nosso é o mundo ético, verdadeiro, evidente e normal (a despeito de todo e qualquer indício em contra); imoral, desquiciado, egoísta, falso, ilusório, excêntrico, profano, sacana, infiel, disparatado ou ao menos estúpido é o mundo dos demais. Para uma compreensão sobre a arte de equivocar-se e a dinâmica da conduta humana com relação ao alcance e os limites do poder pessoal, do poder situacional e do poder sistêmico: Philip Zimbardo, The Lucifer Effect; Kathryn Schulz, Being Wrong. Adventures in the margin of error.

[14] Geoffrey Miller (The Mating Mind: How Sexual Choice Shaped the Evolution of Human Nature), por exemplo, defende que as principais capacidades da mente humana que estão detrás da cultura, da moral, da linguagem, da música, da arte, da criatividade, do exibicionismo ideológico, etc...etc.,   evolucionaram tanto em homens como em mulheres por mútua seleção sexual. Nas palavras de Robert Ford (Westworld):“I read a theory once that the human intellect was like peacock feathers. Just an extravagant display intended to attract a mate. All of art, literature, a bit of Mozart, William Shakespeare, Michelangelo, and the Empire State Building just an elaborate mating ritual.”.

[15] «De todo nos cansamos, menos de poner en ridículo a los demás y vanagloriarnos de sus defectos», escreveu William Hazlitt em um ensaio que publicou em 1826 (The Pleasure of Hating). 

[16] No que à opinião sobre os demais se refere, em muitíssimas ocasiões sim que há fumaça sem fogo. Daí a cautelosa advertência de Patrick Stokes: “Salvo que tengas argumentos y pruebas, no, no tienes derecho a una opinión”.

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Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Bazófia moral . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5221, 17 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61185. Acesso em: 19 abr. 2024.

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