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A força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/2004

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6. Direitos humanos fundamentais implícitos e explícitos

            Como bem ensina um eminente tributarista de nosso país, todas as normas são implícitas, pois somente são descobertas (ou construídas, na linha do renomado jurista) após uma necessária atividade de interpretação (15). Contudo, há normas que são mais facilmente detectadas no direito positivo e outras de percepção mais sutil. Nos incisos do art. 5º da Lei Magna, bem como noutros dispositivos do mesmo documento, extrai-se com simplicidade direitos humanos positivados como fundamentais. Ao lado deles, há uma série doutros que remanescem nas entrelinhas constitucionais, e são incorporados pelo hermeneuta ao conjunto normativo dos preceitos maiores, basicamente, por três razões: a) são constitucionais todas as regras e os princípios corolários da forma de Estado e da de Governo adotados pelo Brasil (é o que se extrai da primeira parte do parágrafo 2º do art. 5º, CR); b) estão no altiplano da Lei Primeira todas as normas que se afiguram absolutamente necessárias para a preservação da dignidade humana (guiamo-nos, mais uma vez, pelo art. 1º, III, da CR); c) são, finalmente, de altivez constitucional todas as garantias sem as quais deixam de subsistir faticamente os direitos fundamentais reconhecidos pelo Constituinte (aplicamos o chamado princípio da máxima efetividade ou da eficiência constitucional (16)).

            Decorrência da circunstância supramencionada é que muitas das cláusulas dispostas em convenções internacionais são já, independentemente destas, compreendidas no seio do sistema constitucional nacional. Nesses casos, por óbvio, a negativa do Parlamento em dar força de emenda constitucional a tais fontes de Direito não deve influir em sua aplicação.

            No caso em que comentamos, apesar de não ser indispensável a inserção do tratado no sistema interno, ela possui o mérito de dar conhecimento aos destinatários da norma sobre o conteúdo de direitos humanitários os quais, em muitas das vezes por ignorância de quem aplica o Direito e de quem lhe deve obediência, permanecem tempos sem eficácia social alguma.


7. Direitos humanos e cláusulas pétreas

            Uma vez incorporadas ao Texto Constitucional, os direitos humanos reconhecidos pelo tratado internacional abraçado por parte do Brasil passam a ser fundamentais e, por conseqüência, irreformáveis pelo Poder Constituinte Derivado (art. 60, parágrafo 4º, IV, CR).

            Anote-se que, conforme a posição do STF ditada no julgamento da ADIn nº 939/93, irreformáveis não são somente os direitos e garantias individuais previstos no art. 5º do Diploma Fundamental, mas quaisquer outros reconhecidos na Constituição da República. E mais: segundo o entendimento do Min. Carlos Velloso, expresso nos autos da mesma ADIn, irreformável não é somente o núcleo dos direitos e garantias individuais, mas sim o de todos os fundamentais, sejam individuais, sociais, econômicos ou de solidariedade (17). Pensar diferente seria dar um caráter individualista a uma Lei Constitucional de cunho eminentemente social. O eminente ministro citado defende ainda, pelo texto da época, o caráter de cláusula pétrea dos direitos e garantias fundamentais veiculados por tratado internacional, por força do art. 5º, parágrafo 2º, da CR.


Conclusão

            Os estados modernos passam por transformações desde seus surgimentos. Essas mudanças refletem-se, usualmente, em seus Diplomas Constitucionais. A tônica, hoje, já não é mais o confronto entre as ideologias liberal e socialista, mas sim a integração mundial entre as nações. Como já se podia refletir pela evolução dos direitos fundamentais acolhidos pelas Leis Magnas, a tendência mundial é a passagem do Estado Social para o Estado Solidário. Os entes estatais, após suas consolidações no desenrolar histórico, salvo algumas exceções, passam a substituir a necessidade de auto-afirmação soberana para se preocupar com a criação de conexões mundiais. Com razão fazem-no, pois, no mundo hodierno, quem se isolar tende a perder força não só política, mas também econômica (18). Numa realidade com essas características, será cada vez mais comum o fortalecimento das fontes internacionais de direito, invertendo-se o fluxo normativo do antes "interno ao externo" para o agora "externo ao interno".

            As alterações introduzidas em nosso sistema constitucional coincidem com o momento em que o país busca apoio internacional para ingressar no Conselho de Segurança da ONU como membro permanente, bem como procura fortalecer relações econômicas com outros estados, assim como pleiteia a formação de fundos financeiros globais para o apoio de demandas dos países pertencentes ao Terceiro Mundo (como o fundo contra a fome, p. ex.) etc..

            Eis a explicação da relevância atual dos direitos humanos. Como percebemos, no âmbito semântico que envolve a expressão, estão os direitos humanos para o Direito Internacional assim como os direitos fundamentais estão para o Direito Constitucional interno. Estando o estado moderno mais dependente do exterior, o direito interno passa também a depender do direito global. Os direitos humanitários, antes esquecidos pelos juristas de cá, passam a ganhar prestígio especial.

            A EC nº 45/2004, em dois momentos, mostra esse espírito que descrevemos: no preceito que comentamos neste estudo (art. 5º, parágrafo 3º, acrescentado à CR), e no parágrafo 4º adicionado ao mesmo artigo, em que prevê a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional.

            Nota-se, pelo que expomos, que a inovação no Texto Constitucional não é um mero adorno, senão o marco duma verdadeira transformação axiológica. O Direito Internacional deixa de ser "perfumaria jurídica". Não que vá subjugar nossas fontes legiferantes internas, mas deverá ser aplicado harmoniosamente com estas.

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            Definitivamente, os chamados direitos do homem e da humanidade não podem mais ser olvidados por quem tenha a pretensão de compreender corretamente nosso direito positivo. A modificação introduzida pela EC nº 45/2004 não é meramente técnica, pois conota uma opção valorativa do Constituinte. É um espelho da revalorização do homem e da humanidade no centro das preocupações jurídicas; é, quiçá, um testemunho do início da Era da Solidariedade, como achamos que pode ser batizado o século XXI.

            Em que pese a esperança depositada nas palavras acima averbadas, não somos ingênuos o bastante para imaginar que a reforma da EC nº 45/2004 seja a panacéia de todos os males jurídicos e sociais. Pouco ou nada vale o direito sem a garantia. Atualmente, em nosso país, a omissão tem sido um dos meios mais perversos para afastar ilicitamente os efeitos de normas constitucionais. Até o átimo em que se resolva atribuir força normativa positiva ao Poder Judiciário para resolver tais afrontas à Lei Maior, por meio de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão ou de mandados de injunção, não se terá um sistema efetivo de proteção dos direitos humanos.


Notas

            1

Não faremos, no presente estudo, distinção entre tratado e convenção internacional; utilizaremos as duas expressões como sinônimas, na linha do magistério de J.F. REZEK, Direito Internacional Público – Curso Elementar, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 15.

            2

A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 14.

            3

Direito Constitucional – e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 393.

            4

A Universalidade e a Indivisibilidade dos Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas in Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, org. C.A. BALDI, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 45.

            5

Ob. cit., pp. 66-70.

            6

Cf. P.G.C. LEIVAS, A Genética no Limiar da Eugenia e a Construção do Conceito de Dignidade Humana in A Reconstrução do Direito Privado, org. J.MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002, pp.560-6.

            7

Cf. R.R. RIOS, Dignidade da Pessoa Humana, Homossexualidade e Família: Reflexos sobre as Uniões de Pessoas do Mesmo Sexo in A Reconstrução do Direito Privado, org. J.MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002, pp.484-90.

            8

Cf. M.G. FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999, pp.98-9.

            9

Cf. o voto do Min. Celso de Mello no HC 76.561-3/SP, p. 7.

            10

Cf. A. de MORAES, Direito Constitucional, 14ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 613.

            11

Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 111.

            12

Cf. E. GRAU, Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 17.

            13

Ob. cit., p.571, nota 2.

            14

Cf. J.F. REZEK, ob. cit., p. 96.

            15

P. de B. CARVALHO, Curso de Direito Tributário, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p.10.

            16

Cf. J.J. CANOTILHO, ob. cit., p. 1224.

            17

P. 7 do voto, disponível em: "http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/It/FrameDown.asp?classe=ADI&Processo=939&Origem=IT& Recurso=0&TIP_JULGAMENTO=&CodClasse=504&Ementa=1737&tipo_colecao=EMENTARIO". Data de acesso: 30.12.2004.

            18

Daí a busca e a necessidade dos países em se acoplarem a algum megabloco econômico.

Bibliografia (somente as obras citadas)

            - CANOTILHO, José Joaquim Gomes; Direito Constitucional – e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003.

            - CARVALHO, Paulo de Barros; Curso de Direito Tributário, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000.

            - COMPARATO, Fábio Konder; A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003.

            - FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves; Direitos Humanos Fundamentais, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999.

            - GRAU, Eros; Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo, Malheiros, 2002.

            - LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; A Genética no Limiar da Eugenia e a Construção do Conceito de Dignidade Humana in A Reconstrução do Direito Privado, org. Judith MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002.

            - MORAES, Alexandre de; Direito Constitucional, 14ª ed., São Paulo, Atlas, 2003.

            - PIOVESAN, Flávia; A Universalidade e a Indivisibilidade dos Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas in Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, org. César Augusto BALDI, Rio de Janeiro, Renovar, 2004.

            -____; Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max Limonad, 1996.

            - REZEK, José Francisco; Direito Internacional Público – Curso Elementar, São Paulo, Saraiva, 2002.

            - RIOS, Roger Raupp; Dignidade da Pessoa Humana, Homossexualidade e Família: Reflexos sobre as Uniões de Pessoas do Mesmo Sexo in A Reconstrução do Direito Privado, org. Judith MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002.

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Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. A força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 549, 7 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6157. Acesso em: 24 abr. 2024.

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