O direito ao julgamento de mérito

Norma fundamental de processo civil

05/11/2017 às 18:59
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É muito grande a quantidade de processos extintos por problemas puramente formais, sem alcançar o resultado originalmente pretendido.

Nas palavras de BEDAQUE, “muito mais que alterar leis, é preciso mudar a mentalidade”. Todos dias, no Judiciário brasileiro, muitos processos são extintos sem resolução de mérito, motivados por um preciosismo e formalismo que impede as partes de superarem a crise do direito material, do direito posto em conflito.

Antes, ressalvo que este espaço não é dedicado à produção de conteúdo científico, mas tão somente o registro das minhas experiências na advocacia, sob o ponto de vista da técnica processual, ou melhor dizendo, sob a ótica do Processo Civil Democrático.

“É muito grande a quantidade de processos extintos por problemas puramente formais, sem alcançar o resultado originalmente pretendido. Gasta-se dinheiro, perde-se tempo, frustram-se esperanças, tudo por falta de visão adequada sobre o verdadeiro papel da técnica no funcionamento do instrumento.” (BEDAQUE, 2006, pag. 89)

Outrossim, estamos sob o comando do NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO, que entrou em vigor em 18 de março de 2016, carregado de novos princípios, inspirado pelos direitos fundamentais, que,  nas palavras do i. professor Fredie Didier, “não é apenas uma reforma, é um novo sistema”. As normas fundamentais de PROCESSO CIVIL estão elencadas do art. 1º ao art. 12º do Código (Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015), entre as quais chamo a atenção para a norma fundamental do art. 4º:

“As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa".

Esta norma ressalva que as partes têm direito prioritariamente a uma decisão de mérito, e que a decisão terminativa, que extingue o processo sem resolução de mérito, é medida excepcionalíssima. Esta norma nos traz o comando segundo o qual o magistrado deve tomar as providências necessárias para entregar a decisão de mérito; o magistrado deve aplicar esforços para entregar a solução satisfativa do litígio, e não resolver o processo sem solução de mérito, como caminho mais fácil, no modo como acontecida, muitas vezes, sob o comando do CPC de 1973, infelizmente.

Sob o comado do antigo sistema processual (CPC de 1973), eu mesmo presenciei, por diversas vezes, “decisões surpresa”, que extinguiam o processo sem resolução do mérito, de forma abrupta, sem ao menos consultar as partes na tentativa de solucionar as possíveis nulidades ou a falta dos pressupostos processuais. Esta lógica não mais existe, devendo o magistrado mudar sua mentalidade e se conformar ao novo sistema, que prioriza a decisão de mérito, ou seja, a superação da crise do direito substancial.

O que me levou a empreender esta breve reflexão foi um caso recente, envolvendo uma viúva e o INSS, em que aquela pedia alvará para o levantamento dos últimos benefícios de auxílio-doença deixados pelo marido falecido. Para ilustrar melhor, o marido, segurado do INSS, faleceu e deixou créditos relativos ao auxílio-doença. O Juiz Estadual concedeu alvará para a viúva levantar os valores, mas a instituição financeira já havia os devolvido ao INSS, tendo este se negado a cumprir o alvará da Justiça Estadual, mesmo diante de nova ordem judicial. Nada mais que um absurdo! Diante da minha objeção, o magistrado mandou as partes para vias ordinárias. Assim, impetramos Mandada de Segurança perante a Justiça Federal, o qual foi negado sob o argumento da necessidade de dilação probatória. Como o INSS alegara que só pagava mediante RPV, tentamos uma ação de cobrança, mas foi extinta por ilegitimidade de parte. Segundo o i. magistrado, “a ação deveria ser manejada contra a instituição financeira, pois o dinheiro estava na sua posse”.

Ledo engano do i. magistrado, o dinheiro referente aos auxílios-doença já não estava mais na posse da instituição financeira, pois esta já havia devolvido os valores ao INSS, pois o segurado, agora falecido, não comparecera para fazer o resgate.

Temos então um processo extinto sem resolução de mérito, mais um transtorno para a parte, por conta do capricho e preciosismo do i. magistrado, data maxima venia, que não consultou a parte antes da decisão. Onde estava o dinheiro relativo ao auxílio-doença, na posse de quem? Do INSS ou da instituição financeira? A petição inicial era clara ao afirmar que os valores já haviam sido restituídos pela instituição financeira ao INSS e que este se negara a entregar para a viúva, sendo portanto parte legítima da ação. Mas o i. magistrado, entendendo que os valores estavam na posse da instituição financeira, sem ao menos consultar a parte previamente para se certificar melhor, resolveu o caminho mais fácil, a extinção do processo sem resolução do mérito, em vez de dar solução ao conflito.

Concluiu o i. magistrado, sem ao menos fazer uma consulta à parte, para se certificar melhor, com as seguintes palavras: “...se os valores do auxílio-doença estão na posse da instituição financeira, então o INSS é parte ilegítima”.

Este caso demonstra a falta de cuidado do i. magistrado com os interesses da parte; demonstra o desvio de finalidade do processo, que é meio e não fim, que nasceu para ser instrumento, forma, método, destinado à solução do conflito fático e promoção da paz social. São por tais motivo que o NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL traz o princípio da primazia da decisão de mérito, como forma de evitar a negativa da prestação jurisdicional, reafirmando de forma dogmática as reais finalidades do processo: a solução do conflito e a paz social.

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Em 2006, o i. professor José Roberto dos Santos Bedaque já falava do processo justo, democrático, cuja decisão final é o resultado da influência das partes: “Se processo jurisdicional outra coisa não é senão meio ou método de solução de controvérsias, regulado de forma a possibilitar seu desenvolvimento seguro, sem dilações indevidas, bem como a garantir que as partes possam influir no resultado, participando efetivamente de tudo o que nele ocorrer, fica evidente o predomínio do fim sobre a forma. Esta serve tão-somente para proporcionar os resultados esperados” (BEDAQUE, 2006, pag. 60).

Diante dos princípios constitucionais que inauguraram o novo ordenamento jurídico (CF/88), e diante dos inúmeros estudos desenvolvidos a partir deste marco, também sob forte influência da doutrina Alemã, Italiana e Americana, o NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL é o dogma que resume em si todos estes pensamentos. Assim, o princípio da primazia da decisão de mérito é um desses que inspiraram nosso legislador, mas não bastando apenas a publicação da lei, mas, sim, a mudança de mentalidade dos atores do processo.

Termino com a sábia lição de Roberto Bedaque, que já em 2006 defendia uma teoria da efetividade do processo:

“É preciso enfatizar esse aspecto da técnica processual, para conscientizar todos os que se utilizam do processo de que sua estrutura é concebida para possibilitar sejam determinados fins. Só para isso, nada mais. A existência do processo é justificada pelos escopos que ele visa a alcançar, não pela forma de que se revestem seus atos. A observância da técnica, portanto, representa exigência infestável do sistema apenas se imprescindível à consecução dos objetivos buscados. A legitimidade do processo reside na eliminação da crise de direito material com segurança e celeridade, não na forma adotada para que tal efeito se produza.” (BEDAQUE, 2006, pag. 61).

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Sobre o autor
Rodrigo Silva Froes

Advogado, atua na advocacia cível, consumidor e família, pós-graduado em Direito Processual e História da Filosofia, ex-Oficial do Ministério Público/MG, amante do Direito e da Filosofia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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