INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda a realização do ato do interrogatório judicial do acusado perante o procedimento ordinário, levando-se em consideração ao direito ao silêncio, de acordo com o princípio nemu tenetur se detegere, bem como o direito a não autoincriminação do acusado, sem que com isso haja qualquer valoração negativa para a defesa.
O acusado deve ser informado sobre o seu direito de permanecer em silêncio, podendo escolher determinadas perguntas das quais irá responder, sem que com isso produza prova contra si mesmo.
Ainda, o presente trabalho versa sobre a possibilidade de o acusado confessar a prática delitiva, ainda que em parte, podendo até mesmo mentir sobre determinados fatos, ou todos.
No mesmo sentido, será abordada a existência de nulidades com o não cumprimento das formalidades exigidas para a realização do interrogatório judicial, especificamente a ausência de intimação para comparecimento no ato.
Com este objetivo, o trabalho está estruturado em dois capítulos, que tratam do interrogatório judicial, nulidades existentes pelo não cumprimento das formalidades legais e a possibilidade de ser realizado um novo interrogatório do acusado.
No primeiro capítulo aborda-se o ato do interrogatório judicial como meio de defesa do acusado no processo penal, a partir da Lei n.º 11.719/2008, que alterou o procedimento do interrogatório, passando a ser o último ato da instrução processual, mantendo garantido o direito ao silêncio e a sua não autoincriminação, bem como a possibilidade de confissão da prática delitiva.
O segundo capítulo trata da existência de nulidade absoluta quando da ausência de intimação para a realização do ato de interrogatório. Ainda, versa sobre a não realização do ato quando o juízo, podendo, não realiza o interrogatório, gerando, assim, prejuízo presumido para a defesa. Ressalta-se que tais nulidades devem ser arguidas a qualquer tempo, podendo ser reconhecida de ofício. Por fim, o presente capítulo aborda a possibilidade da realização de um novo interrogatório.
1 DO INTERROGATÓRIO JUDICIAL COMO MEIO DE DEFESA ADMITIDO NO PROCESSO PENAL
1.1 DO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
O Código Processual Penal Brasileiro, com o advento da Lei 11.719/2008, passou a admitir o interrogatório judicial como o último ato da instrução processual, sendo realizado após a apresentação de defesa escrita e da audiência una, após a produção de todas as provas (depoimento do ofendido, oitiva das testemunhas, provas periciais, etc), conforme determina o artigo 400 do Código de Processo Penal, quando regula a formalidade da audiência de instrução e julgamento.
Consta no artigo 185, do Código de Processo Penal1, que o acusado deve estar acompanhado de seu defensor no momento de suas declarações, in verbis:
“Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.
§1º O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
§2º Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor.”
De acordo com entendimento de Aury Lopes Junior2, o interrogatório do acusado deve ser um ato em que não haja qualquer tipo de pressão, física ou mental, devendo ser de livre arbítrio do réu e de forma espontânea. Ainda, Fernando da Costa Tourinho Filho3 entende que o interrogatório é um dos atos processuais mais importantes, pois é meio de defesa do acusado.
No mesmo sentido é o entendimento de Norberto Avena, ressaltando a importância do interrogatório em todos os processos criminais, podendo existir variações acerca do momento em que será realizado4.
O interrogatório do acusado possui valor probatório no processo penal. Porém, também é considerado como meio de autodefesa, tendo em vista que utiliza a orientação da presunção de inocência, pois ao acusado é garantido o direito ao silêncio, de acordo com o artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal5, onde não é obrigado a produzir provas contra si mesmo.
Ainda, há a possibilidade de o acusado aduzir argumentos que possam justificar a sua conduta, podendo confessar a autoria de delitos ou justificar alguma extinção de culpabilidade ou ilicitude, contribuindo, assim, para o convencimento do juiz.6
Após o réu ser devidamente qualificado e obter ciência do teor dos fatos dos quais está sendo acusado, bem como sobre os seus direitos, principalmente o de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, podendo permanecer em silêncio, conforme dispõe o artigo 186, do CPP, o interrogatório é inicializado7.
Para que o interrogatório não seja objeto de nulidade, é necessário que sejam observados requisitos legais para a sua realização, devendo ser realizado de forma espontânea e imediata ou em um prazo razoável após a prisão do acusado, ou logo que se tenha conhecimento sobre o paradeiro do réu; na presença do seu defensor, sendo permitido entrevista prévia e reservada; proibição de qualquer forma de coação, seja física ou moral, para que o acusado confesse ou colabore com a instrução8.
O artigo 185 do Código de Processo Penal, em seu parágrafo 5º, determina que em momento anterior a realização do interrogatório, o réu tem o direito de entrevistar-se com seu defensor, reservadamente, garantindo, assim, o princípio constitucional da ampla defesa9.
Ainda, deve ser respeitado o direito ao silêncio do acusado, bem como que este possa indicar elementos que comprovem sua versão dos fatos, sem que, com isso, haja valoração negativa10.
O interrogatório possui algumas formalidades que devem ser respeitadas para a sua realização, evitando, assim, possíveis nulidades, como a publicidade, obrigatoriedade, oralidade, individualidade, judicialidade e espontaneidade11.
É necessário que o ato do interrogatório seja público, devendo ser realizada de portas abertas, possibilitando a permanência de qualquer pessoa durante a audiência. Contudo, para que o ato seja regular, “a permanência no recinto deve ser restringida, limitando-se o número de pessoas que possam estar presentes na sessão”12, a fim de que não tenhamos qualquer incidente que afete o andamento natural do ato.
Da mesma forma, o ato deve ser obrigatório. O réu deve ter a oportunidade de se manifestar no processo, esclarecendo os fatos, confessando, ou, sendo de seu interesse, permanecendo em silêncio, exercendo, assim, o seu direito de autodefesa13, especificamente o seu direito de presença e o seu direito ao silêncio.
Ainda, deve ser respeitada a oralidade do ato, não podendo ser substituída por qualquer ato escrito14, bem como respeitada a característica personalíssima, na medida em que o interrogatório somente poderá ser praticado pelo réu, sendo vedado a sua substituição ou representação, até mesmo pela figura do seu defensor15.
Conforme já mencionado, o ato do interrogatório deve ser espontâneo, sendo vedada qualquer forma de pressão e ameaças para que o réu se manifeste no processo, sob pena de invalidação do ato.
Por fim, o ato deve ser praticado perante a autoridade judicial que preside o processo, podendo esta realizar perguntas ao réu, conforme menciona o artigo 187 do Código de Processo Penal, seguida pela acusação e por fim, pela defesa, sendo que ambos formularão as perguntas ao juiz, que repassará ao acusado, se entender por sua necessidade16.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento no Habeas Corpus n.º 94.601/CE17, entendeu que o interrogatório consiste como meio de autodefesa do acusado, tendo em vista que, além de não ser obrigado a constituir prova contra si mesmo, podendo permanecer em silêncio, não poderá sofrer qualquer sanção em razão da sua escolha.
Nesse sentido, é o entendimento de Aury Lopes Júnior quando menciona que “o interrogatório não serve para provar o fato, mas para fornecer outros elementos de prova que possam conduzir à sua comprovação”18. Nesse sentido, é durante o interrogatório que o Juiz colhe os elementos para o seu convencimento, sendo, assim, o interrogatório utilizado como meio de prova e, também, como meio de autodefesa do acusado.
Vale ressaltar que, conforme dispõe o artigo 400 do Código de Processo Penal, quando disciplina a audiência de instrução e julgamento no procedimento ordinário, o interrogatório do acusado é realizado após a oitiva das testemunhas de acusação e defesa, após eventuais esclarecimentos de peritos judiciais e reconhecimento de pessoas, respectivamente nesta ordem.
Assim, conclui-se que o interrogatório do acusado é um dos principais atos do processo criminal, tendo em vista que é a oportunidade de o réu exercer seu direito de autodefesa (com direito de presença e direito de ser ouvido), podendo esclarecer tópicos que ajude o convencimento do juiz, bem como não sofrerá qualquer sanção ao exercer o seu direito ao silêncio.
1.2 DO DIREITO AO SILÊNCIO E A NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
Durante o interrogatório, o acusado deve ser informado sobre o seu direito de permanecer em silêncio, bem como que tal prerrogativa não será utilizada em prejuízo de sua defesa, conforme prevê o artigo 186 do Código de Processo Penal.
O direito ao silêncio está previsto no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal19
Art. 5º, LXIII - O preso será informado sobre os seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência familiar e de advogado.
Ainda, tal direito também está recepcionado pelo Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8º, 1 (Decreto n.º 678/92)
Art. 8º. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
O direito ao silêncio é decorrente do Princípio do nemu tenetur se detegere, garantindo ao réu o direito de não produzir provas contra si mesmo, ao direito de não autoincriminação, podendo calar-se ou responder apenas o que entender ser devido, durante todas as fases do processo20.
De acordo com Alexis de Couto Brito21, bem como entendimento jurisprudencial, nenhuma pessoa está obrigada a produzir provas contra si mesma ou praticar atos lesivos à sua defesa ou, ainda a autoincriminar-se, podendo, inclusive, faltar com a verdade ao negar fato ilícito que lhe é imputado.
Salienta-se que o direito de permanecer em silêncio somente é referente ao interrogatório de mérito, pois em um primeiro momento são feitas perguntas ao réu acerca de sua qualificação (nome completo, idade, profissão...), tendo em vista que tais questionamentos não possuem conteúdo ofensivo22.
Nesse sentido, entende-se que o réu tem o direito de escolher se quer ou não responder as perguntas sobre o fato delitivo, podendo até mesmo mentir sobre tais fatos, sem que tal ato seja valorado negativamente.
Conforme entendimento de Aury Lopes Júnior23
O direito ao silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório.
No mesmo sentido, é o entendimento de Fernando da Costa Tourinho Filho24, quando aduz que “atualmente vigora o princípio do nemo tenetur se detegere, isto é, de que ninguém é obrigado a acusar-se. O imputado tem ampla liberdade: responderá às perguntas se quiser”.
Cabe salientar que o silêncio do acusado não se presumirá como forma de confissão, porém, poderá ser elemento para o convencimento do juiz, conforme dispõe o artigo 198 do CPP.
Conforme entendimento de Eugênio Pacelli de Oliveira25
O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como ainda se nota em algumas doutrinas, mas a proteção contra as hostilidades e as intimidações historicamente desfechadas contra os réus pelo Estado. (...)
O princípio atua ainda na tutela da integridade física do réu, na medida em que autoriza expressamente a não-participaçãoo dele na formação da culpa.
No mesmo sentido é o entendimento de Norberto Avena26 quando menciona que
(...) antes de iniciar o interrogatório, deverá o juiz advertir o acusado do seu direito de permanecer calado, sendo que tal silêncio, não importando em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Essa garantia, prevista ao interrogatório judicial, tem igual aplicação ao interrogatório policial, conforme dispõe o art. 6º, V, do CPP.
Na mesma senda é o entendimento de Brito27
O direito ao silêncio é expressão de extrema relevância ao direito contra a autoincriminação. A frase em latim nemo tenetur prodere sipsum, quia nemo tenetur detegere turpitudiem suam; ou nemo tenetur se detegere, entre outros, bem revela o significado desse direito, qual seja, o de que nenhuma pessoa está obrigada a produzir provas contra si mesma ou praticar atos lesivos à sua defesa ou, ainda a autoincriminar-se, podendo, inclusive, faltar com a verdade ao negar fato ilícito que lhe é imputado.
Assim, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, bem como a utilização do princípio nemo tenetur se deteger não pode acarretar prejuízo ao réu, tendo em vista que possui a liberdade de responder as perguntas elaboradas pelas partes, de mentir ou de permanecer em total silêncio.
1.3 DO DIREITO À CONFISSÃO
Conforme já informado, o réu, durante o seu interrogatório, tem o direito de permanecer em silêncio, conforme determina a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXIII, não produzindo provas contra si mesmo.
No entanto, o acusado possui a possibilidade de confessar o delito caso queira. Ou seja, conforme bem entende Fernando da Costa Tourinho Filho28, a confissão é o reconhecimento feito pelo réu da sua própria responsabilidade sobre aquele ato delitivo.
No entanto, a confissão não possui valor probatório absoluto. Ela deve ser levada em consideração pelo juízo com as demais provas existentes no processo. Nesse sentido, o artigo 197 do Código de Processo Penal determina que o valor da confissão deverá ser afrontado com as demais provas, verificando se possui compatibilidade ou concordância:
Art. 197 – O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existem compatibilidade ou concordância.
Ou seja, não basta que o réu confesse a prática do delito. É necessária sua valoração com as demais provas, bem como que o acusado tenha sido assistido pelo seu defensor.
Nesse sentido, é o entendimento de Eugênio Pacelli de Oliveira29
A previsão legal que indica a necessidade de se confrontar o conteúdo da confissão com os demais elementos de prova (art. 197) é bastante emblemática da situação do acusado perante o sistema do Código de Processo Penal de 1941. É que, na ordem precedente (antes do sistema processual implantado com a Constituição de 1988), as provas produzidas na fase policial sempre serviram de fundamento, às vezes único, para a condenação.
Como sabemos, as provas colhidas durante a fase inquisitorial, não devem ser levadas em consideração se não forem confirmadas perante o juízo, valendo-se, assim, o contraditório e ampla defesa.
A confissão deve ser analisada juntamente com as demais provas existentes nos autos e não de forma isolada, tendo em vista que sozinha não justificaria uma condenação. Deve ser analisada na mesma linha das provas produzidas, valorando-se em conformidade e harmonia pelo juiz correspondente. Ainda, cabe ressaltar que a confissão não terá valor algum se obtida somente na fase inquisitorial, devendo a mesma ser repetida perante o juízo competente.
Conforme entendimento de Guilherme de Souza Nucci30, a confissão deve ser considerada em seu ato voluntário, produzido livremente pelo acusado, sem que haja qualquer tipo de coação ou ameaça. Deve ocorrer de forma clara, a fim de que não paire dúvidas nos autos, bem como deve ser pessoal, sendo vedada qualquer representação.
Segundo entendimento de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar31
(...) não existe hierarquia entre as provas, sendo a confissão mais um meio probatório, e na sua apreciação o magistrado deverá confrontá-la com as demais provas do processo, para aferir se há compatibilidade entre elas (art. 197, CPP), dando o devido valor à confissão apresentada. A confissão perdeu o status de prova absoluta, e como as demais, o seu valor é relativo, cabendo ao juiz a justa valoração.
Nesse sentido, entende-se que a confissão deve ser levada em consideração pelo juízo juntamente com as demais provas colhidas aos autos, não podendo ser recebida com valor absoluto.