Do direito de testar do silvícola

29/11/2017 às 11:08
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Pontos relevantes sobre a condição do índio no direito sucessório: afinal, o índio possui, ou não, capacidade testamentária?

 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo elucidar as questões acerca do direito de testar do silvícola, trazendo questões como a capacidade jurídica, quanto a validade de atos jurídicos por ele praticado e as condições para que tais atos tenham validade.

Os silvícolas – ou índios – são definidos como grupo de origem pré-colombiana que habita, em território nacional, como residentes originais do local, e, apesar de terem perdido o domínio por legítimo direito de conquista dos colonizadores do século XVI –  forma regular de conquista de direito possessório da época – os índios são protegidos pelo ordenamento jurídico nacional como forma de preservação da história do país por meio dos representantes que se mantêm dentro dos costumes dos habitantes originais destas terras há mais de 500 anos.

O foco do presente trabalho é elucidar quanto à capacidade de testar deste indivíduo, partindo da hipótese que um índio possua algum patrimônio que deseja regular a sucessão deste, este trabalho busca compreender se pode ou não o silvícola constar esse patrimônio em testamento a fim de que após sua morte um eventual sucessor receba como herança o quinhão que lhe coube em vida.


I. Do Estatuto do Índio.

É notável que a função deste Estatuto, do ano de 1973, é de gerar meios para que o índio se integre na sociedade, definindo deveres de proteção de cada uma das esferas de poder e assegurando direitos aos indivíduos dessas comunidades para que não ficassem à margem da sociedade brasileira.

Logo no parágrafo primeiro do artigo primeiro do referido estatuto, está previsto da seguinte maneira:

Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.

Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei.

Assim, fica claro que o intuito do legislador aqui foi o de aproximar as comunidades indígenas do cidadão brasileiro, de forma que o índio possa gozar de direitos semelhantes, se não iguais, aos do cidadão.

Mais claro traz o Art. 2° do mesmo estatuto, que é obrigação dos entes de poder resguardar os direitos dos silvícolas e estender a legislação no que for cabível para que abarque tudo aquilo que for para o indígena se aproximar de se tornar um cidadão brasileiro.

  Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:

I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação;

Assim, como regra espírito do Estatuto do Índio no Brasil, esses indivíduos serão protegidos pelo Estado, terão sua cultura resguardada, bem como suas crenças e práticas; contudo sempre que possível serão aproximados do real cidadão brasileiro, pelo que se pode deduzir que o escopo da lei é exatamente permitir ao índio a prática de atos jurídicos, sempre que possível.

Por exemplo, o ato de testar, que envolve apenas o próprio patrimônio do testador, não sendo passível gerar eventual dano à ordem ou a terceiros, não se verificando, portanto, qualquer obstáculo ao silvícola para testar.


 II. Das Bases Doutrinárias.

A capacidade para testar está baseada, principalmente, na capacidade intelectual do testador no momento da feitura do testamento, ao passo que entenda plenamente o que está fazendo e os efeitos daquele ato.

Dessa forma, a transferência de patrimônio post mortem está mais ligada à capacidade intelectual do agente do que a capacidade jurídica em si, de forma que há quem defenda o princípio do in dúbio pro capacitate, trazendo a ideia de que, para ter a capacidade testamentária, basta capacidade intelectual, não constando no rol dos “inibidos a testar”.

De acordo com o professor Doutor Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra acerca de Direitos das Sucessões, ele esclarece que: “ Os índios não foram incluídos no rol dos inibidos de testar. À medida que vão se adaptando à civilização, podem emancipar-se do regime tutelar especial que são submetidos. O simples fato de poderem exprimir vontade testamentária já comprova estarem plenamente entrosados na sociedade.”

Na mesma obra, o professor Carlos Roberto Gonçalves remete aos ensinamentos de Pontes de Miranda, que defende que o índio que demonstrar domínio do vernáculo pátrio e apresentar-se ao tabelião poderá fazer o testamento público, desde que mediante documento por ele redigido, ou escrito a pedido, e aprovado por oficial com o crivo de cinco testemunhas.

Conclui Pontes de Miranda que se o índio produz um testamento já existe a prova de que possui o suficiente de entendimento social para executar tal ato, trazendo a seguinte frase “se testou, era capaz”.


III. Das Bases Jurídicas.     

Pela legislação civil, a capacidade testamentária se encontra no título III do Código Civil nos artigos 1860 e 1861, prevendo que, além dos incapazesm não poderão testar aqueles que não possuírem o pleno discernimento, de forma que, pelo código, a questão volta ao que foi discutido na doutrina, se os indígenas teriam ou não o discernimento pleno do ato de testar.

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Como não são trazidos pelo código novos impedimentos, e, ao cidadão, é permitido tudo aquilo que a lei não proíbe. Assim, levando em conta que o ordenamento voltado para o índio tenta aproximá-lo do cidadão, extensivamente ao silvícola também é permitido tudo aquilo que a lei não proíbe, tendo resguardado sua condição.

Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.

Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.

Art. 1.861. A incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade.

Pela Constituição Federal de 1988, o assunto referente aos índios está previsto nos Arts. 231 e 232, sendo que neste é previsto que o indígena é parte legítima para ingressar em juízo, em defesa de seus interesses, de forma que o Ministério Público o assistirá em todos os atos do processo.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Assim, se o silvícola tem capacidade para ingressar em juízo, fica demonstrado que também teria capacidade de testar, sendo ambos atos jurídicos de complexidade semelhante.


IV. Considerações Finais.

Como assunto de testamento faz referência ao índio como indivíduo, e não como povo, não há de se falar em necessidade da representação deste pela FUNAI, uma vez que não diz respeito ao interesse de um povo indígena ou uma tribo em específico, mas sim, uma declaração de vontade individual que um silvícola manifesta ao efetuar tal ato.

Também há de se salientar que se tratando de patrimônio é de se pensar que a pessoa indígena deve seguir as formalidades das regras de herança vigentes no país, de forma que, em se tratando de parte disponível de patrimônio, ainda que o pensamento, por cultura ou costume da tribo, seja de forma adversa, deve o índio ter como herdeiros necessários aqueles que também seriam para o cidadão brasileiro, ou seja, descendentes, ascendentes e irmãos, vindo, em seguida, a figura do cônjuge ou companheiro, sempre seguindo a ordem de vocação hereditária estabelecida na lei civil.

Sendo observadas as devidas formalidades, e o indivíduo se submetendo aos ritos necessários, e deixando claro seu entendimento quanto aos atos que pratica, é de se concluir que poderá o silvícola exercer o ato jurídico de testar.

Dessa forma, considerando a abordagem constitucional no assunto, o pensamento doutrinário e as regras do direito material, a conclusão deste trabalho é de ser plenamente possível ocorrer o testamento por um testador indígena, desde que respeitadas as formalidades da elaboração do testamento e ainda que o testador se mostra em perfeito entendimento de sua vontade.


Bibliografia.

 GONÇALVES, CARLOS ROBERTO. Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. 9.ed volume 7 – São Paulo: Saraiva, 2015.

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