IGUALDADE, CRISTIANISMO E DEMOCRACIA EM NIETZSCHE

Considerações Contemporâneas.

07/12/2017 às 10:36
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O artigo demonstra como, para Nietzsche, a ideia de igualdade, promovida no Cristianismo e na Democracia, suprime a diversidade natural dos seres humanos, e objetiva a domesticação e docilização do rebanho humano para facilitar sua dominação.

INTRODUÇÃO

Definitivamente, Nietzsche não é um autor de fácil leitura. Requer cautela, atenção. "El próprio pensamiento de Nietzsche exige que su intérprete se enfrente ante todo” com a questão epistemológica: há uma tendência ao engodo em todo conhecimento, uma certa propensão a ser enganado pela 'doçura das palavras'. Deve-se, portanto, manter um estado mental de prevenção, para que se mantenha o foco nas próprias ideias do filósofo. (PUY, 1996, p. 23, 24.)

O pensamento de Nietzsche foi apropriado pela teologia da superioridade ariana, na Alemanha que engendrou o Nazismo; foi condenado pelos revolucionários comunistas como herético, defensor do “inimigo” e justificador da opressão capitalista sobre os proletários. Nietzsche foi também considerado, por alguns teóricos do socialismo, como um dos primeiros filósofos a denunciar a velhacaria do sistema capitalista, e a anunciar vitória do novo homem, o proletário livre dos grilhões patronais, no governo do mundo. (NEGRI, VATTIMO, RORTY, 1994.)

O próprio Nietzsche foi crítico de tudo o que havia em sua volta: política liberal, socialismo, religião, educação, conhecimento, mas não se vinculou a qualquer escola teórica, nem a qualquer movimento político de seus dias. Isso deve indicar algo sobre o que ele queria dizer ao mundo...

Este trabalho é construído a partir de leituras pessoais de sua obra, que jamais deixa de exercer um forte efeito em quem se aprofunda nela, sobretudo como vivência. Não se intenciona realizar uma compilação de interpretações de especialistas sobre temas complexos e discutíveis da obra de Nietzsche, mas oferecer uma reflexão sobre um tema específico: a igualdade como fundamento de duas ideologias, o cristianismo e a democracia.

Alguns comentaristas contribuíram mais ou menos para as ideias que se desenvolvem neste artigo: Heidegger, com sua perspectiva fenomenológica; Vattimo, Negri e Rorty, que ajudaram a situar o pensamento nietzscheano no contexto do mundo contemporâneo; e Scarlett Marton, com a cosmologia que diagnosticou na obra de Nietzsche. Mas o autor assume sua própria responsabilidade frente às reflexões que ora se desenvolverão.

É um desafio trabalhar com o filósofo, pois, como destacado, as interpretações tendem a distorcer o pensamento original. Tradutore, traditore, diriam os italianos. Constata Nietzsche, em Para Além do Bem e do Mal: "Há uma infinidade de traduções que foram feitas com boas intenções, mas que são quase falsificações, porque se esqueceram do caráter verdadeiro do texto original, ou de seu tom vigoroso e alegre, que ajuda a sobrevoar tantas coisas e palavras perigosas." (2001b, p.40)

O desafio proposto neste breve artigo é o de entender os motivos pelos quais a ideia de igualdade, especialmente a ideia de igualdade de direitos, é repudiada no pensamento de Nietzsche, assim como entender a relação dessa ideia com o movimento cristão e seu sucessor, o movimento democrático. Considerar-se-ão também a possibilidade de aplicação prática das restrições de Nietzsche à equalização dos seres humanos.

O que se propõe é uma tentativa de definir o ponto de vista do filósofo e entender sua possível postura perante a realidade contemporânea.

 

IGUALDADE

Eis a questão primeira: o que é igualdade, para Nietzsche? Igualdade é, antes de mais nada, um termo que define uma qualidade ou situação relacional, abstrata, oriunda da experiência. No ensaio Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral, de 1873, Nietzsche descreve como certas ideias, expressas como palavras, se tornam conceitos ao serem invocadas para nomear reiteradas experiências ou fenômenos análogos ao original. (NIETSCHE, 1979, Cap. IV.) Passa-se a conceber a realidade a partir desses conceitos abstratos e a tomá-los como se fossem realidades concretas, ou seja, a tratar o particular por universal ou “semelhante por idêntico”. (MARTON, 1990, p. 115.)

A igualdade entre humanos é uma maneira de se conceber os homens como membros de um mesmo rebanho. “Somos todos iguais” é uma afirmação tranquilizadora, que torna o rebanho dócil, e facilita sua condutibilidade. Nasce de um anseio de segurança: “a felicidade do rebanho, as verdes pastagens, a segurança e o bem-estar.” (NIETZSCHE, 2001b, p. 53.) Mas para entender a rejeição de Nietzsche pelo estatuto de igualdade, é necessário compreender melhor sua concepção de mundo.

 

COSMOLOGIA: VONTADE DE POTÊNCIA

No conjunto de suas ideias, a noção de que existem diferenças inconciliáveis entre os elementos da vida é fundamental para entender a vida, a diversidade, a evolução, a predominância de uma espécie sobre outra. Na verdade, toda a concepção de vida, de kosmo, em Nietzsche, pauta-se pelo conceito, desenvolvido aos poucos durante seu curso de vida, de vontade de potência, essência do existir de todas as coisas animadas e inanimadas. Na obra Assim Falava Zaratustra (2004, passim) Nietzsche desenvolve esse conceito, de um modo prolixo e rico, como um verdadeiro arauto do fim de um mundo obsoleto, e de uma nova era para os homens que puderem percebê-la nascendo. Como esclarece Scarlett Marton,

A vontade de potência é o impulso de toda força a efetivar-se e, com isso, criar novas configurações em sua relação com as demais. Ela não se impõe, porém, como nomos; instigando as transformações, não poderia coagir as forças a se relacionarem seguindo sempre o mesmo padrão. Tampouco reflete um telos; superando-se a si mesma, não poderia ter em vista nenhuma configuração específica das forças. (MARTON, 1990, p. 40.)

É por causa desse impulso que o universo muda, cria-se, destrói-se e renova-se a cada época, em infindáveis revoluções.

Entre a humanidade, a potência criadora se revela em formas altivas, preponderantes, enfim, se expressa em todo valor de potência vital concebível: na arte, seja como pintura, escultura ou música; na guerra, no caráter expansionista dos impérios; na filosofia, no caráter real e livre do pensar, independente de barreiras artificiais criadas para conter a liberdade. Enfim, em tudo o que promova a vida em potência criativa. (MARTON, 1990, p. 29-66.)

 

IGUALDADE DE DIREITOS

Para Nietzsche, aplicada aos seres humanos, a noção de igualdade é, portanto, a absoluta negação de um fato da experiência real: os seres humanos não são iguais. Existe sempre alguém mais forte, mais potente, mais “humano, demasiado humano, assim como existe sempre alguém mais fraco, mais débil, mais racional. Essas qualidades se equilibram, produzindo, por vezes, grande racionalidade e inteligência em indivíduos fracos, desejosos de sufocar, se possível, quaisquer outros que lhes ameacem seu status quo.[1] A igualdade dos seres humanos é uma “mentira”. (2002, p. 101.)

O problema que ora se trata nasce, portanto, de um erro. A universalização dos direitos de igualdade são, na realidade, direitos a algo inexistente. Mas Nietzsche aponta como uma ideia tão absurda se universalizou.

O filósofo observa que a realidade cotidiana dos homens (que vivem em rebanhos, como outras espécies), desde sempre, foi e é a luta, a disputa pela vida e pelos meios de vida. Como exposto, essa disputa de elementos pela preponderância é a verdadeira essência do universo, e se verifica em todos os fenômenos, sejam humanos, sejam naturais, se é que vale de alguma vantagem tal distinção. Os fortes, ou os que mandam, sempre impõem seu direito aos outros. Por isso, Nietzsche fala de direito de mando, e não direito contra o mandante.

Em Aurora (2008), no aforismo 112, ele descreve a “história natural do dever e do direito”. Fala que os homens, que sempre viveram em rebanhos maiores ou menores, se submetem a concessões mútuas em função de suas próprias relações de força. Um homem se considerava mais fraco que seu vizinho, e estabelecia com ele um contrato para que ele não lhe roubasse a colheita, ou as reses. Este, por sua vez, concordava, temendo que o primeiro se articulasse com outros vizinhos contra sua força. Assim, estabeleceram-se direitos e deveres mútuos, nascidos do medo. Aí está o início de um princípio de equitatividade que deveria, doravante, reger as relações dentro de um rebanho.

Nossos deveres — são os direitos que os outros têm sobre nós. Como os adquiriram? Porque nos consideram como capazes de estabelecer contratos e mantê-los, porque nos vervieram [sic] na esfera de nosso poder e nela deixariam uma influência duradoura se pelo “dever” não usássemos de represálias, isto é, se interviermos no poder deles. Os direitos dos outros só podem se referir ao que está em nosso poder: seria irrazoável da parte deles querer de nós qualquer coisa que não nos pertencesse. Dever-se-ia dizer mais exatamente: somente naquilo que eles pensam estar em nosso poder, admitindo que seja a mesma coisa que igualmente nós pensamos estar em nosso poder. O mesmo erro poderia facilmente se produzir dos dois lados. O sentimento do dever exige que tenhamos em toda a extensão de nosso poder a mesma crença que os outros; isto é, que pudéssemos prometer certas coisas, comprometer-nos a fazê-las (“livre-arbítrio”). — Meus direitos: essa é a parte de meu poder que os outros não somente me concederam, mas que querem também manter para mim. Como chegaram a isso? De um lado, por sua sabedoria, seu temor e sua prudência: seja porque em troca esperam de nós algo de equivalente (a proteção de seus direitos), seja porque consideram um embate conosco perigoso e inoportuno, seja porque veem em toda diminuição de nossa força uma desvantagem para eles, pois, nesse caso, seríamos inaptos para uma aliança com eles contra uma terceira força hostil. Por outro lado, por meio de doações e cessões. Nesse caso, os outros dispõem de suficiente poder para ceder uma parte e para poder tornar-se garantes dessa cessão: caso em que se pressupõe um fraco sentimento de poder naquele que aceita a dádiva. É assim que se formam os direitos: graus de poder, reconhecidos e garantidos. Se as relações de  poder sofressem uma modificação essencial, desapareceriam alguns direitos e outros surgiriam — o que é comprovado pelo direito dos povos em seu vaivém incessante. Se nosso poder diminui muito, o sentimento daqueles que garantiam até agora nosso direito se modifica: pesam as razões que tinham para nos conceder nossa antiga posse. Se esse exame não estiver em nosso favor, negam doravante “nossos direitos”. Do mesmo modo, se nosso  poder aumenta de forma considerável, o sentimento daqueles que o reconheciam até então e do qual não temos mais necessidade, se modifica também: tentarão reduzir esse poder à sua dimensão anterior, quererão intervir em nossos negócios, apoiando-se em seu dever — mas trata-se de palavras inúteis. Em toda parte onde reina o direito, mantém-se um estado e certo grau de poder, rechaça-se todo aumento e toda diminuição. O direito dos outros é uma concessão feita por nosso sentimento de poder ao sentimento de poder dos outros. Se nosso poder se mostra profundamente abalado e quebrado, nossos direitos cessam; pelo contrário, se nos tornamos muito mais poderosos, os direitos que até então havíamos reconhecido aos outros deixam de existir para nós. — O “homem equitativo” tem, pois, necessidade incessante  do toque sutil de uma balança para avaliar os graus de poder e de direito que, segundo a vaidade das coisas humanas, só se mantêm em equilíbrio muito pouco tempo e só fazem subir ou descer: — se equitativo é, pois, difícil e exige muita experiência, boa vontade e uma carga enorme de espírito. (NIETZSCHE, 2008, p. 109-111.)

É a partir do medo do homem pelo homem que se cria o direito, que se expressa como um contrato a que se atribui força coercitiva. A partir dessa crença, dessa concepção cultivada em sociedade, criaram-se regras, e proclamaram-nas maiores do que seus criadores! Doravante, as gerações posteriores encará-las-iam como eternas. Mais, que isso, sempiternas, divinas.

Também Francesco Carnelutti (2001), jurista italiano, reconhece que o mundo dos homens é o mundo da guerra, que só é contido pela criação do direito. Carnelutti entende que “a economia é o reinado do eu, ou seja, do egoísmo” (grifos no original), e o direito surge como “sub-rogado da moral” para conter os impulsos egoístas humanos. Contudo, Nietzsche vê na transmutação da moral em direito um genuíno ato de tartufaria, uma mesquinha e hipócrita distorção ideológica que visa unicamente garantir status àqueles que não possuem força suficiente para preservá-lo.

Na vida social do rebanho humano, na esperteza das frágeis ovelhas que anseiam estabilidade, nascem concepções de “bom” e “mau”, referindo-se o primeiro a tudo o que é altruísta, e o segundo, a tudo o que lhe é contrário e egoísta. Assim, nivelam-se todas as diferenças entre os membros da sociedade, eliminando tudo o que for maior, mais forte, capaz de ameaçar a quietude e paz do rebanho. (NIETZSCHE, 2009, p. 28-30.)

Por isso, Nietzsche afirma que é injusto dar tratamento igual a homens desiguais. Essa desigualdade está na própria natureza dos homens, na sua própria constituição pessoal. E que mal há nisso? Ele desenvolve sua opinião no em O Anticristo, como segue:

[Na] ordem das castas [hindu], a hierarquia simplesmente formula a lei suprema própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar a sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais sublimes — a desigualdade de direitos é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. — Um direito é um privilégio. Cada qual tem seus privilégios de acordo com seu modo de ser. Não subestimemos os privilégios dos medíocres. Quanto mais elevada, mais dura torna-se a vida — o frio aumenta, a responsabilidade aumenta. Uma civilização elevada é uma pirâmide: somente subsiste com uma base larga; seu pré-requisito é uma mediocridade sã e fortemente consolidada. O ofício, o comércio, a agricultura, a ciência, grande parte da arte, em suma, toda a gama de atividades ocupacionais, são apenas compatíveis com a mediocridade no poder e no querer; tais coisas estariam fora de seu lugar entre homens excepcionais; o instinto necessário encontrar-se-ia em contradição tanto com a aristocracia como com o anarquismo. O fato de o homem ser publicamente útil, uma engrenagem, uma função, é evidência de uma predisposição natural; não é a sociedade, mas o único tipo de felicidade de que são capazes, que faz deles máquinas inteligentes. Para os medíocres a felicidade é a mediocridade; possuem um instinto natural para dominar apenas uma coisa, para a especialização. Seria profundamente indigno da parte de um intelecto profundo ver algo de condenável na mediocridade em si. Ela é, de fato, o primeiro pré-requisito ao surgimento das exceções: é uma condição necessária a toda civilização elevada. Quando o homem excepcional trata o homem medíocre com mais delicadeza que si próprio ou seus iguais, isso não se trata de uma gentileza — é simplesmente seu dever... A quem odeio mais entre a ralé de hoje? A escumalha socialista, aos apóstolos de chandala que minam o instinto do trabalhador, seu prazer, seu sentimento de contentamento com uma existência pequena — que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça nunca está na desigualdade de direitos, mas na exigência de direitos “iguais”... (2006, P. 144-5.)

Ainda outro texto do filósofo aponta os efeitos degenerantes de se tratarem mutuamente os homens como partes de um contrato social, como seres medidos. Em A Genealogia da Moral, Tratado 2, §8, Nietzsche afirma que :

A palavra alemã "Mensch" (manas) exprime ainda um pouco deste sentimento: o homem designa-se a si mesmo como ser que estima valores, que aprecia e avalia como o animal avaliador por excelência. A compra e a venda e seus corolários psicológicos são anteriores às origens de toda a organização social e o sentimento que nasceu da troca, do contrato, da dívida, do direito, da obrigação, da compensação, transportou-se logo para os complexos sociais mais primitivos e mais grosseiros (em suas relações com outros agrupamentos semelhantes), ao mesmo tempo que o hábito de comparar, medir, calcular uma forçar com relação a outra força.

O olhar acostumou-se com essa perspectiva e, com essa coerência sólida, própria do pensamento da humanidade antiga, difícil de abalar mas seguindo depois inexoravelmente seu movimento na mesma direção, logo se chegou a essa generalização típica: “Tudo tem seu preço, tudo pode ser pago”. Este foi o cânon moral mais antigo e mais singelo da justiça, o começo de toda “benevolência”, de toda “equidade”, de toda “boa vontade”, de toda “objetividade” na terra. A justiça, nesse primeiro estágio de sua evolução, é a boa vontade entre poderes aproximadamente iguais, que dispõe “a chegar a um acordo” de novo por meio de um compromisso; com relação aos menos poderosos, obriga-os a um compromisso mútuo.(NIETZSCHE, 2009, p. 77-8.)

Segundo esses critérios de equitatividade, o ser humano se transforma em coisa a ser vendida por um preço, e não agente, destinatário, e senhor da atividade que se realiza, ainda que em comum, ainda que medíocre e simplória.

Na Cosmologia de Nietzsche, a desigualdade, a diversidade, a superioridade vital de uns sobre outros é elemento indissociável. É o que promove a vitalidade da humanidade, que a engrandece e enriquece. Afirmar-se a igualdade de pessoas distintas é um erro metodológico, e foi a expansão do cristianismo, bem como de seu filho mais novo, o movimento democrático, que trouxeram o mundo à situação ideológica e política que Nietzsche tanto criticou.

 

SOMOS TODOS IGUAIS EM CRISTO

O movimento cristão proclamou a irmandade de seus adeptos, e isso, como de costume, foi confundido com igualdade. Irmãos não são iguais: Caim e Abel, Ismael e Isaque, Esaú e Jacó, apenas para citar exemplos da própria Escritura Hebraica. Prometeu e Epimeteu; Zeus, Posseidon, Hades; Dionísio e Apolo. Disso nunca houve dúvidas, mas a afirmação de Cristo, de que somos todos irmãos, em Mateus 23:8, distorcida em “somos todos iguais”, corrompeu a humanidade mais do que a edificou.

O filósofo reconhece que o movimento cristão não corresponde ao seu próprio personagem principal. Em O Anticristo, ele esclarece:

Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria palavra “cristianismo” é um mal−entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou−se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium. É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. (NIETZSCHE, 2013, §XXXIX.)

A religião cristã, segundo Nietzsche, secundou o ressentimento do escravo contra o senhor contido na religião hebraica (2001, §195), e proclamou a iniquidade do que é superior por sua própria natureza. Em O Anticristo, Nietzsche declara que

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável; corrompeu até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. (NIETZSCHE, 2013, §V.)

O “primeiro cristão” — e também, receio, o “último cristão”, que eu talvez viva tempo suficiente para ver — é um rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio — vive e guerreia sempre pela “igualdade de direitos”... (NIETZSCHE, 2013, §XLVI.)

 

No cristianismo, prosperou a ideia de igualdade, que Nietzsche entendeu ser a definitiva rebelião dos escravos:

A “igualdade das almas perante Deus” — essa fraude, esse pretexto para o rancor de todos espíritos baixos — essa ideia explosiva terminou por converter-se em revolução, ideia moderna e princípio de decadência de toda ordem social — isso é dinamite cristã... (NIETZSCHE, 2013, §LVII.)

A partir dessa constatação, de que houve um nivelamento ideológico, fundado na ideia de igualdade, torna-se possível compreender o motivo do repúdio de Nietzsche ao estatuto de igualdade de direitos. Como ele próprio se explica, ainda em O Anticristo:

Os sentimentos aristocráticos foram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas; e se a crença nos “privilégios da maioria” faz e continuará a fazer revoluções — é o cristianismo, não duvidemos disso, são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! O cristianismo é uma revolta de todas as criaturas rastejantes contra tudo que é elevado: o Evangelho dos “baixos” rebaixa... (NIETZSCHE, 2013, §XLIII.)

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O problema dessa forma niveladora de igualdade é a atribuição do caráter de “mau” a toda qualidade altiva que se destaca do ordinário. Nos valores cristãos, não há lugar para o cientista ou o filósofo que duvida e questiona a linguagem da Escritura Sagrada, por exemplo. Não há lugar para o príncipe que preserva os seus súditos e promove sua prosperidade, mas cria uma floresta de corpos empalados com os cadáveres daqueles que lhes ameaçam a segurança e a paz. Veja-se a história de Vlad Dracul, o empalador, ou de Napoleão, a quem Nietzsche chamou, em O Crepúsculo dos Ídolos, de “herdeiro de uma civilização mais forte, mais constante, mais antiga que aquela que na França ia se evaporando e esmigalhando, [...] o senhor, o único que podia ser o senhor”. (NIETZSCHE, 2001a, p.87.)

Outros a quem o filósofo louva são os imperadores romanos, que por sua grandeza expandiram os domínios de Roma e impuseram sua cultura, seu direito e seu modo de vida a muitos. Para Nietzsche,

As sociedades aristocráticas, como Roma e Veneza, essas grandes escolas, verdadeiras incubadoras de homens fortes, da espécie mais enérgica de homens que já existiu, entenderam a liberdade exatamente no mesmo sentido que eu a entendo: como algo que se tem e não se tem ao mesmo tempo, que se quer, que se conquista. (NIETZSCHE, 2001a, p.82.)

Os que possuem tal caráter de potência não encontram escape para sua própria natureza e são, muitas vezes, rotulados como criminosos. Isso ocorre hoje, e no século XIX isso já ocorria, como Nietzsche descreve, ainda em O Crepúsculo dos Ídolos

Em nossa sociedade dócil, medíocre, castrada, um homem que está próximo à natureza, que vem da montanha ou do mar, degenera facilmente num criminoso. Ou quase fatalmente, pois há casos em que um homem desse gênero resulta mais forte que a sociedade. O corso Napoleão é o exemplo mais famoso. Para o problema que aqui se apresenta tem importância o testemunho de Dostoiewsky — o único psicólogo, que seja dito de passagem, de quem se tem algo a aprender e que se faz parte dos acasos mais felizes de minha vida, mais ainda que a descoberta de Sthendal. Esse homem profundo, que tinha razão de sobra para fazer pouco dum povo tão superficial como os alemães, viveu muito tempo entre os presidiários da Sibéria e esses criminosos, para os quais não há redenção, possível na sociedade, lhe produziram uma impressão muito diferente da que esperava. Pareceram-lhe da melhor madeira que existe na terra russa, da madeira mais dura e mais preciosa.

 

Nietzsche alude à obra Recordações da Casa dos Mortos, em que Dostoievisk (1952) descreve suas experiências nas prisões siberianas quando para lá foi enviado pelo Czar. Ali, ele conheceu pessoas de um caráter profundo e intenso, diversa da hipócrita e superficial aristocracia burguesa de seus dias. No mundo civilizado, não há lugar para a virtude que se destaca e ameaça o frágil equilíbrio de poder fundado no direito e na tradição.

A proclamação de igualdade entre irmãos cristãos é, na verdade, um engodo: como em todo grupo social, ainda existirão aqueles que exercerão funções de mando. Contudo, como bem definiu o filósofo em Para Além do Bem e do Mal, essas mesmas autoridades

[...] precisam inicialmente se iludir, a fim de poderem comandar: fingem também obedecer. Este é o estado da Europa moderna. E se a este instinto se permitisse alcançar o grau máximo, não existiria mais ninguém para mandar e viver independentemente. e eu o chamo "a hipocrisia moral dos dominadores". Para calar sua consciência fazem-se passar pelos executores de mandatos antigos e supremos (os dos antepassados, os da Constituição, os de direito, os das leis e inclusive os de Deus), ou recolhem fórmulas gregárias da mentalidade do rebanho e se oferecem seja como "o primeiro servidor do Estado" ou como o "instrumento" do bem público. (NIETZSCHE, 2001b, §199.)

O modelo de excelência, com a ascensão do cristianismo, se tornou um asceta, e não mais o guerreiro, conforme descrito em A Genealogia da Moral. (NIETZSCHE, 2009, p. 33; p. 107 et seqs.) E quando se afirmou que os homens são membros iguais de um só rebanho, abençoado pela abnegada morte de seu deus, Jesus Cristo, todos se tornaram, como por milagre, dóceis, bondosos, virtuosos por natureza, como imaginaria Rousseau posteriormente. A igualdade de direitos se tornou fundamento de regimes políticos que requerem o apoio de massas populares para funcionar. Em O Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche clama:

A doutrina da igualdade!... Não há veneno mais venenoso, pois parece pregado pela própria justiça, quando é a ruína de toda justiça. "Para os iguais, igualdade; para os desiguais, desigualdade", tal deveria ser a linguagem de toda justiça, de onde se deduziria necessariamente o não igualar jamais o desigual. . (NIETZSCHE, 2001a, p. 92.)

Assim, a partir do desenvolvimento histórico do movimento cristão, surgiu outra versão, mais contemporânea, da ideia de igualdade, que é fundamento do regime político mais difundido na atualidade: a democracia.

 

SOMOS TODOS IGUAIS NA DEMOCRACIA

Nos dias de Nietzsche, a ideia de democracia convivia com diversos outros regimes de governo. Formas autocráticas de governo predominavam, mas ele via na expansão daquele ideal um grave risco à vitalidade potencial da cultura europeia. As mesmas críticas por Nietzsche feitas à democracia, em seus dias, podem-se aplicar à atualidade.

Antes, contudo, de considerar suas opiniões sobre o regime democrático, é necessário que se considere de quê democracia se fala.

Democracia é um termo polissêmico, e seu tratamento superficial induz a erros de interpretação. Norberto Bobbio (1993) a definiu como governo dos muitos, dos mais (ou melhores), da maioria, ou mesmo dos pobres. Mas há diferenças inconciliáveis entre a democracia antiga e a moderna.

A democracia antiga direta regia “cidades-Estado pequenas; povos de solidariedade mecânica; pequena divisão de trabalho; vasta utilização de escravos; vidas austeras e rudes.” (MALUF, 2010, p. 36,37.) Quanto mais complexas se tornavam tais cidades, mais difícil era manter o regime íntegro. O povo era constituído de uns poucos cidadãos nativos, sendo que o enorme contingente de escravos, estrangeiros e mulheres não participavam nas votações em que se decidiam as questões da cidade, das quais os poucos cidadãos não podiam se esquivar de participar, sob pena de serem declarados idiotas. O sentido dessa expressão, idiotes, é de alguém que se ocupa apenas com negócios particulares, que desconsidera seu estatuto de cidadão e abdica de sua virtude máxima ao se omitir da obrigação de participar na política. Não se refere a alguém débil ou estúpido. (JAEGER, 2001, p. 107. Livro I.) A igualdade democrática se referia, portanto, apenas a poucos gregos, nascidos na própria cidade-Estado. Eles eram iguais entre si, mas não entre todos as pessoas da comunidade.

O século XIX, em que Nietzsche viveu, presenciou a ascensão de um tipo especial de democracia, fundada numa ideia de igualdade universal. Essa concepção se espalhou pelo mundo. A ideia é tão forte, como direito de igualdade, que foi incluída na Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1948:

Artigo 1°

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. (ONU, 2013.)

É pressuposto desse ideal de democracia[2] que os representantes tenham sido escolhidos pessoalmente pelos representados, num processo cujo objetivo é reproduzir “identidade de governantes e governados”. (BONAVIDES, 2001, pp. 57-8.) Imagina-se que as eleições dos agentes políticos devam ser livres, justas e periódicas; que exista ampla liberdade de expressão popular e dos candidatos, assim como fontes informativas independentes e diversificadas para subsidiar a escolha dos eleitores. Se esses elementos não existirem integralmente, não se realiza o ideal de democracia. (DAHL, 2001, pp. 97-113.)

Apesar desse ideal, verifica-se que a ideia de representação efetiva é, em si, uma ilusão, pois nas democracias reais não há vinculação entre a vontade do parlamentar à de seu eleitor. (KINZO, 1980, pp. 21-43.). Não existe representação de fato. O que ocorre é uma delegação de poderes.

Guillermo O’Donnel constatou a presença incômoda dessa “democracia delegativa” na realidade política do mundo. Ele parte da proposta teórica da democracia representativa e reconhece que, na verdade, não existem tais elementos nas democracias reais. “Espera-se que os eleitores/delegantes retornem à condição de espectadores passivos – mas quem sabe animados? – do que o [agente político] faz”. (O’DONNEL, 1991, p. 32.) Espera-se que os eleitores “não se envolvam com os assuntos mais importantes dos quais o agente executivo ou o parlamentar cuida.” (FREITAS, MALUF, 2012, P. 21.)

O’Donnell (1991, p. 33) aponta ainda que quando o agente público não precisa prestar contas de sua atuação ao seu eleitor, quando não há accountability; não existe representatividade, e, portanto, não se realiza o ideal de democracia.

O [cidadão ou cidadã] que ganha a eleição presidencial é autorizado a governar o país como lhe parecer conveniente. [...] O presidente é a encarnação da nação, o principal fiador do interesse nacional, o qual cabe a ele definir. O que ele faz no governo não precisa guardar nenhuma semelhança com o que ele disse ou prometeu durante a campanha eleitoral – ele fica autorizado a governar como achar conveniente. (O’DONNEL, 1991, p. 30.)

A democracia ideal não existe. O que é chamado de democracia é um regime de controle ideológico, em que todos são logrados pelo lema do governo do povo, pelo povo, para o povo. Em uma obra de George Orwell, Animal Farm, onde se descreve uma rebelião dos animais de uma fazenda, que matam seu dono e se libertam do domínio humano, há um lema interessante, dentre os sete mandamentos proclamados pelos animais, na voz de um porco ancião: “All animals are equal”.[3] (2013b, p. 9.) Contudo, os animais que assumiram a liderança da fazenda alteram o mandamento para algo mais conveniente a seu gosto: “ALL ANIMALS ARE EQUAL, BUT SOME ANIMALS ARE MORE EQUAL THAN OTHERS”.[4] (2013, p. 50-1.)

Em duas obras cinematográficas, contrastam-se as posições de duas épocas: O Grande Ditador, de Charles Chaplin (1940), e O Ditador, de Larry Charles (2012). Ambas nos fornecem um bom diagnóstico da política e do desenvolvimento da democracia.

No primeiro, o personagem de Chaplin profere um discurso inspirador sobre direitos humanos, incitando os povos a se insurgirem contra ditadores. Fala sobre as necessidades humanas e da responsabilidade de os governos supri-las. Fala contra o automatismo e a contra as formas contemporâneas de escravização, e sobre a possibilidade de libertação, através da insurreição democrática. É melhor que se leiam suas palavras, para que se entenda:

Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos! (CHAPLIN, 2013.)

A Segunda Guerra Mundial acabou, e Hitler caiu, juntamente com seu Partido. Stalin caiu, e, mais tarde, a União Soviética. Governos atuais se rotulam de democráticos, e a prática de se realizarem eleições para a escolha de governantes e legisladores se torna cada vez mais generalizada, em cumprimento nominal do art. 21 da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1948. Mas nem a democracia ideal, nem a de Chaplin, existem, afinal. O que resta uma outra “democracia”, conforme descrita por outro personagem, desta vez do filme O Ditador (2012) de Larry Charles, com o ator Sacha Baron Cohen, na voz do tirano Aladeen:

Por que são tão antiditadores? Imaginem se a América fosse uma ditadura! 1% do povo teria toda a riqueza da nação. Ajudariam os seus amigos ricos diminuindo os impostos deles e pagando as dívidas de jogo deles. Ignorariam as necessidades de saúde e educação dos pobres. Sua mídia pareceria livre, mas seria controlada por uma pessoa e a família dela. Grampeariam telefones e torturariam prisioneiros estrangeiros. Adulterariam as eleições. Mentiriam sobre as guerras. Encheriam as prisões com uma raça específica e ninguém reclamaria. Usariam a mídia para assustar o povo apoiando políticas contra os interesses dele. (CHARLES, 2013.)

Tudo isso ocorre na chamada maior democracia do mundo.

As democracias de massa escondem formas de ditadura. O discurso democrático prospera, porque a ideologia precisa ser mantida íntegra. Cumpre esclarecer que um aparato ideológico visa controlar, não por força de armas, mas por condução moral, a população que se pretende governar. (ALTHUSSER, 2012, p. 2.) Um exemplo de como isso ocorre foi bem retratado por George Orwell (2013), na obra 1984. No atual modelo ideal de governo, o povo precisa imaginar que governa através das mãos de outros, para que o sistema funcione. É preciso deixar que os escolhidos governem em paz, e façam o que precisa ser feito. Mas todos são iguais na democracia...

Atualmente, o poder e a riqueza se concentram nas mãos de um pequeno grupo de pessoas, extremamente ricas e influentes, que são capazes de determinar a política econômica do mundo, de modo a garantirem seu status indefinidamente, mesmo com a iminência do exaurimento da matriz energética do planeta, num regime chamado de plutonomy. Noam Chomsky diz que

Plutonomy refers to the rich, those who buy luxury goods and so on, and that’s where the action is. They claimed that their plutonomy index was way outperforming the stock market. As for the rest, we set them adrift. We don’t really care about them. We don’t really need them. They have to be around to provide a powerful state, which will protect us and bail us out when we get into trouble, but other than that they essentially have no function. These days they’re sometimes called the “precariat” -- people who live a precarious existence at the periphery of society. Only it’s not the periphery anymore. It’s becoming a very substantial part of society in the United States and indeed elsewhere. And this is considered a good thing.

 So, for example, Fed Chairman Alan Greenspan, at the time when he was still “Saint Alan” -- hailed by the economics profession as one of the greatest economists of all time (this was before the crash for which he was substantially responsible) -- was testifying to Congress in the Clinton years, and he explained the wonders of the great economy that he was supervising. He said a lot of its success was based substantially on what he called “growing worker insecurity.” If working people are insecure, if they’re part of the precariat, living precarious existences, they’re not going to make demands, they’re not going to try to get better wages, they won’t get improved benefits. We can kick ’em out, if we don’t need ’em. And that’s what’s called a “healthy” economy, technically speaking. And he was highly praised for this, greatly admired. (CHOMSKY, 2012.)[5]

Todos são iguais, na democracia. Só que alguns são mais iguais do que outros, nas democracias contemporâneas. (ORWELL, 2013, p. 50-51.)

 

HIPOCRISIAS

Nietzsche afirmou, em Para Além do Bem e do Mal, que o “movimento democrático é o herdeiro do movimento cristão”. (2001b, §202.) As mesmas formas de submissão e engodo se encontram presentes em ambos. No cristianismo, o pastor finge que obedece ao Senhor Jesus, o alegado dono do rebanho, para mandar em suas ovelhas, e as ovelhas o agradam, pensando que agradam ao Senhor. Na democracia, as ovelhas invertem a fórmula acima e criam um sistema novo, em que o pastor finge que obedece ao Senhor para mandar nas ovelhas, que, ao mesmo tempo, imaginam ter o poder de criar um estatuto de regras para o próprio pastor! Sim, as ovelhas são transformadas em legisladores, e se tornam capazes de mandar no próprio pastor! Por sua vez, o pastor finge obedecê-las para nelas mandar, e elas se enganam, dizendo-se que mandam no pastor, e assim ficam mais felizes, sentindo-se livres.

Nietzsche identificou certas características comuns entre o cristão típico e o homem democrático ou socialista. No cristianismo, a igualdade perante Deus foi proclamada como tábua de nivelamento de sentimentos aristocráticos, em resultado do ressentimento de pessoas submetidas ao domínio romano. Do mesmo modo, a igualdade democrática é proclamada como resultado do ressentimento de alguns do povo contra abusos perpetuados por pessoas em posições de poder.

Aquilo que a Nietzsche tanto incomodava era o nivelamento de instintos mais ambiciosos, ou melhor, seu sufocamento. A história é testemunha das pechas atribuídas a personagens de valor peculiar, como indivíduos que agiram e agem com violência na defesa de seu próprio grupo social, como Vlad, o Empalador, em defesa de seus domínios; como Adolf Hitler, nos dias em que ressuscitou a economia alemã; como os jovens heróis anônimos que apedrejam tanques judeus na Palestina, ou que atiram sapatos em Presidentes invasores, no Iraque. Todos esses são tratados como tiranos, loucos ou criminosos, embora sua ação tenha sido motivada pelo desejo de proteção para com seu próprio grupo social.

 

A EXCELÊNCIA DA VIRTUDE

A vontade de potência, que se manifesta de modo diferente em cada ser humano, é tolhida pelo nivelamento promovido pela ideia de igualdade. As pessoas são diferentes. Não que a virtude seja algo exclusivo de uma casta, mas ela se distribui de modo diverso, multiforme: um homem é um ótimo vendedor, mas é péssimo administrador; outro homem é um grande médico, mas é inseguro e tímido ao se expressar perante ouvintes; ainda outro é um grande político, um ótimo orador e, portanto, um grande demagogo, mas é apressado e superficial, e toma decisões precipitadas que lhe trazem consequências prejudiciais, assim como aos seus administrados. Cada um tem uma virtude, e deveria ser tratado concordemente. Seja ela ordinária ou não.

John Ruskin escreveu, em 1860, um ensaio que inspirou grandemente um eminente promotor de transformações: Mohandas Karamchand Gandhi. O ensaio se chamou Unto This Last, e tratou das diferenças entre os homens. Ruskin afirmou que existem cinco funções básicas, ou profissões, relacionadas às necessidades humanas: o soldado, o pastor (ou professor); o médico; o lawyer (ou homem de leis); e o mercador. Afirmou que as coisas vão bem quando cada um vive e morre, se necessário, por sua profissão, como segue:

Five great intellectual professions, relating to daily necessities of life, have hitherto existed — three exist necessarily, in every civilized nation:

The Soldier’s profession is to defend it.

The Pastor’s to teach it.

The Physician’s to keep it in health.

The lawyer’s to enforce justice in it.

The Merchant’s to provide for it.

And the duty of all these men is, on due occasion, to die for it. “On due occasion,” namely: -

The Soldier, rather than leave his post in battle.

The Physician, rather than leave his post in plague.

The Pastor, rather than teach Falsehood.

The lawyer, rather than countenance Injustice.

The Merchant— what is his “due occasion” of death?[6]

(RUSKIN, 2013, p. 15.)

Pois sim: qual é a “devida ocasião de morrer” por dever, do mercador? A função básica do mercador, para Ruskin, é a prover para a nação e não lucrar. Lucro é a consequência necessária de sua atividade, um estipendo justo. “Inequalities of wealth, justly established, benefit the nation in the course of their establishment; and, nobly used, aid it yet more by their existence."[7] (RUSKIN, 2013, p. 28.) Sua ‘due occasion to die’ é assim descrita:

[…] The merchant is bound to put all his energy, so for their just discharge he is bound, as soldier or physician is bound, to give up, if need be, his life, in such way as it may be demanded of him. Two main points he has in his providing function to maintain: first, his engagements (faithfulness to engagements being the real root of all possibilities, in commerce); and, secondly, the perfectness and purity of the thing provided; so that, rather than fail in any engagement, or consent to any deterioration, adulteration, or unjust and exorbitant price of that which he provides, he is bound to meet fearlessly any form of distress, poverty, or labour, which may, through maintenance of these points, come upon him. (RUSKIN, 2013, p. 16.)[8]

Os problemas apontados anteriormente, relativos ao acúmulo excessivo de riqueza nas mãos de poucos, é a insaciabilidade do mercador contemporâneo, um desequilíbrio verificado na civilização burguesa, em acumular além de suas necessidades ou além da própria disponibilidade. "The art of making yourself rich, in the ordinary mercantile economist’s sense, is therefore equally and necessarily the art of keeping your neighbour poor.": (RUSKIN, 2013, p. 27.)

Ademais, no desempenho de suas profissões, as pessoas nem sempre empregam toda sua potencialidade visando a excelência. Realizam-nas como se não tivessem alma. Desumanizam-se, assim. Animalizam-se, assim, tornando-se promotores da mediocridade, da negligência, e da ruína.

Se cada um faz bem sua atividade, seja ela de pouca importância ou não, a sociedade prospera, mesmo que cada um tenha uma virtude diferente, seja ela grandiosa ou ordinária. Não se tolhem iniciativas construtivas, e a vontade de potência encontra seu próprio curso.

 

CONCLUSÃO

Nietzsche morreu louco, em 1900, sem presenciar a expansão da ideia de igualdade que tanto desprezou. Atualmente, seus ideais aristocráticos são francos demais, honestos demais, para serem admitidos na esfera política (MARTON, 2011), e qualquer almejo de radical mudança política é hoje tolhida pela estrutura de poder imposta pelos ricos do mundo, cuja almejada queda é um anseio de muitos. Não mais se admite a aristocracia na política, embora os próprios homens em posições de poder ajam como se fossem melhores do que os outros. Melhores, são, mas em cuidar de seus próprios interesses e de seus patrões financistas. Não há mais excelência, em política.

Contudo, quanto à posição do homem frente à sociedade contemporânea, as ideias de Nietzsche podem oferecer um real incentivo para escapar de padrões de pensamento e de comportamento ideologicamente construídos e heteronomamente impostos, a semelhança da sociedade descrita por George Orwell em 1984. (2013.)

Atualmente, muitos vivem alienados pelo encanto produzido pela moda, ou pela atualização tecnológica constante, pela ostentação de riqueza, em universos existenciais destituídos de sentido cultural ou histórico. Pão e circo é sua alegria agora, como era antes. Esse é o esgotamento previsto por Nietzsche, que levaria os homens a se aprofundarem ainda mais em sua mediocridade, tornando a cultura ainda mais estéril. Como se diz em algumas esferas, nada mais se cria, tudo se copia. É o esgotamento da vontade de potência, fator primordial da vida e da cultura.

Pelo contrário, o homem contemporâneo pode (e deve) postar-se contra ser tratado como engrenagem de um sistema, como um membro despersonalizado, acrítico e manipulável, conforme fazem a mídia e as campanhas publicitárias. É necessário que compreenda que as notícias não traduzem toda a verdade dos fatos, que os produtos fabricados podem não ser tão bons quanto parecem, que nem tudo o que reluz é ouro. A postura do indivíduo frente à sociedade de consumo não precisa ser semelhante à de um “animal de rebanho”. Contudo, o quê envolve essa postura, que instrumentos necessita nessa guerra ideológica, não há espaço nesta obra para estudá-los. Há de ser tratado em outro trabalho.

Não, não “somos todos iguais”, mas cada um possui uma função natural no mundo. Resta a cada um encontrá-la, vivê-la e, se necessário, morrer por ela. Eis a grandeza aristocrática que Nietzsche tanto acalentou...

 

REFERÊNCIAS

CHAPLIN, Charles. Discurso final de Adenoid Hynkel In O Grande Ditador. Los Angeles, EUA: Charles Chaplin Productions, 1941. (Informações em http://www.imdb.com/title/tt1645170/) Documento eletrônico, disponível em Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Grande_Ditador#cite_note-1>. Acesso em 15 jan 2013.

CHARLES, Larry. O Ditador. Los Angeles, EUA: Paramount Pictures, 2012. Informações disponíveis em <http://www.imdb.com/title/tt1645170/. Trecho traduzido, sem indicação de tradutor, disponível em <http://www.legendasbrasil.com.br/legenda-the-dictator-2012-14956380.htm>. Acesso em 15 jan 2013.

DOSTOIEVISK, Fiodor. Os Irmãos Karamazov. 2.ed. Trad. Boris Solomonov. Rio de Janeiro: Vecchi, 1958. Obra em 2 volumes.

DOSTOIEVISK, Fiodor. Recordações da Casa dos Mortos. Trad. Rachel de Queiróz. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952.

FREITAS, Mona Lisa de Moraes de e MALUF, Emir Couto Manjud. Povo e Democracia: Exercícios de Soberania. In Revista de Julgados do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso. Cuiabá: Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, 2012. Vol. 6, 2010-2011.

JAEGER, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Trad. Joaquín Xiral. Mexico: Fondo de Cultura Econômica, 2001, p. 107. Livro I.

MALUF, Emir Couto Manjud. O Desafio da Justiça Eleitoral Face à Crise de Moralidade Política. In TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS. Revista de Monografias – I Concurso de Monografias do TRE-MG. Belo Horizonte: Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, 2010.

MARTON, Scarlett. NIETZSCHE: Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MARTON, Scarlett. Nietzsche e a Crítica da Democracia. In Dissertatio – Revista de Filosofia. Universidade Federal de Pelotas, v. 33, inverno de 2011, p. 17-33. Documento eletrônico, disponível em <http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/33/01.pdf>. Acesso em 4 jan 2013.

NEGRI, A.; VATTIMO, G.; RORTY, R. Tres Lecturas de Nietzsche. In Zona Erógena., Nº. 20, 1994. Trad. Claudia Oxman e Paula Galdeano. Documento eletrônico, disponível em < http://www.scribd.com/doc/22929000/Vattimo-G-Negri-T-y-Rorty-R-Tres-lecturas-de-Nietzsche>. Acesso em 07 jan 2013.

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ORWELL, George. Animal Farm. Documento eletrônico, disponível em <http://msxnet.org/orwell/print/animal_farm.pdf>. Acesso em 15 jan 2013.

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RUSKIN, John. Unto This Last. Publicado em Corhill Magazine, 1860. Documento eletrônico, disponível em < http://muff.uffs.net/skola/dejum/ruskin/texts/unto-this-last/unto_this_last.pdf> Acesso em 16 jan 2013.

 

[1] Em Os Irmãos Karamazov, romance que pode considerado o grande espelho das paixões humanas, Fiodor Dostoiévisk(1958) descreve quatro caracteres: Dimitri, Ivan e Aliocha Karamazov e Smerdiakov, seu irmão bastardo. Quatro irmãos, e inconciliavelmente diferentes. O caráter passional do primeiro, a racionalidade do segundo, a espiritualidade do terceiro, a astúcia do quarto, são exemplos de como se diversificam os homens, de como seus valores, seus ideais, suas paixões e razões os movem e os distinguem. É impossível concebê-los como iguais.

 

[2] Utilizar-se-ão as expressões ideal e real para se contraporem a teoria e a prática das democracias contemporâneas.

[3] Todos os animais são iguais.

[4] Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros.

[5] Plutonomia refere-se aos ricos, àqueles que compram bens de luxo, e coisas assim, e é onde está [o poder para] a ação. Eles afirmaram que o seu índice de plutonomia era o que viabilizava a performance do mercado de ações. Quanto ao resto, [os não ricos,] que fiquem à deriva. [Dizem:] “Nós[,os ricos,] realmente não nos preocupamos com eles. Nós realmente não precisamos deles. Eles têm que existir para fornecer um estado poderoso, que vai nos proteger e salvar-nos quando estivermos em apuros, mas além disso não têm nenhuma função.” Atualmente são às vezes chamados de "precariato" - pessoas que vivem uma existência precária na periferia da sociedade. Só que não são apenas a periferia. Estão se tornando uma parte muito substancial da sociedade nos Estados Unidos e mesmo noutros países. E isso é considerado uma coisa boa.

Assim, por exemplo, o presidente do FED [ - Federal Reserve Bank -] Alan Greenspan, na época em que ele ainda era "Saint Alan" - aclamado pelos economistas como um dos maiores economistas de todos os tempos (isso foi antes do acidente para o qual ele foi substancialmente responsável) - foi depor ao Congresso nos anos Clinton, e ele explicou as maravilhas da grande economia que estava supervisionando. Ele disse que muito de seu sucesso foi baseado substancialmente no que ele chamou de "crescente insegurança do trabalhador". Se as pessoas são inseguras de trabalho, se eles são parte do precariato, vivendo existências precárias, eles não vão fazer exigências, eles 'não vão tentar obter melhores salários, eles não vão conseguir melhores benefícios. Nós podemos chutá-los para fora, se não precisar deles. E isso é o que é chamado de uma economia "saudável", tecnicamente falando. E ele foi muito elogiado por isso, muito admirado. (Tradução do autor.)

[6] Cinco grandes profissões intelectuais, referentes às necessidades diárias da vida,  existem desde sempre - três existem necessariamente, em qualquer nação civilizada:

A profissão do soldado é defendê-la.

[A profissão do] pastor é ensiná-la.

[A profissão do] médico é mantê-la saudável.

[A profissão do homem de leis] é fazer valer a justiça nela.

 [A profissão do] mercador é a de prover para ela.

E o dever de todos esses homens é, na ocasião devida, morrer por ela. "Na devida ocasião ", a saber: -

[Do] soldado, ao não abandonar seu posto na batalha.

[Do] o médico, ao não abandonar seu o cargo em [face de] praga.

[Do] pastor, ao não ensinar falsidade.

[Do] advogado, ao não tolerar injustiça.

[E a do] Mercador - o que é sua "devida ocasião " para morrer [por sua profissão]?

(Tradução livre do autor.)

[7] As desigualdades de riqueza, justamente estabelecidas, beneficiam a nação no curso de seu estabelecimento, e, nobremente usadas, ajudam ainda mais por sua existência." (Tradução livre do autor.)

[8] O mercador é obrigado a colocar toda a sua energia, por isso para o seu cumprimento ele é obrigado, como soldado ou médico é obrigado, a dar, se necessário, a sua vida em sua profissão, segundo for exigido dele. Dois pontos principais ele tem de manter em sua função provisional: primeiro, seus compromissos (fidelidade aos compromissos, que são a verdadeira raiz de todas as possibilidades no comércio); e, segundo, a perfeição e pureza da coisa fornecida, de modo que, em vez de falhar em qualquer compromisso, ou consentir em qualquer deterioração, adulteração, ou preço injusto e exorbitante do que ele oferece, ele é obrigado a enfrentar, sem medo de qualquer forma de pobreza, angústia, ou de trabalho, o que pode sobrevir sobre ele, através da manutenção destes pontos.

Sobre o autor
Emir Couto Manjud Maluf

Servidor público federal em Belo Horizonte(MG) Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas, 2011. Especialista em Filosofia pela Universidade Gama Filho, 2012.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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