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A Emenda Constitucional nº 45/04 e o novo regime jurídico dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos

02/02/2005 às 00:00

Resumo:


  • Foi publicada a Emenda Constitucional nº 45 no Diário Oficial da União em 31/12/2004, trazendo alterações significativas no texto constitucional, especialmente em relação ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.

  • A inclusão do novo parágrafo 3º ao art. 5º da Constituição Federal, pela referida emenda, gerou debates sobre a hierarquia dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos em relação à Constituição.

  • A EC nº 45/04 introduziu mudanças que, ao invés de fortalecer a proteção dos direitos humanos, acabaram fragilizando a vigência interna das normas internacionais, gerando questionamentos sobre sua constitucionalidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Foi publicada no Diário Oficial da União do último dia 31.12.2004 a Emenda Constitucional nº 45, promulgada no dia 08 do mesmo mês, que consubstancia a tão festejada "reforma do Judiciário", que procedeu a profundas alterações em diversos dispositivos constitucionais, notadamente no que se refere ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, dentre outros temas.

Dentre as inovações procedidas pela Emenda em referência no texto constitucional, chama a atenção o novo parágrafo 3º, inserido pela referida emenda à constituição, cujo teor é o seguinte:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Em princípio, numa leitura rápida, parecia uma alteração alvissareira, a valorizar os tratados e convenções internacionais sobre a matéria, reforçando tese pela qual, por longo tempo, debateram-se importantes doutrinadores, visando o reconhecimento do status hierárquico de norma constitucional aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Esta impressão logo desapareceu, após breve reflexão acerca das conseqüências de referida alteração, razão pela qual parece oportuno expender os comentários que se seguem.

No Brasil, existe uma tendência em situar as normas internacionais no mesmo plano hierárquico que as normas infraconstitucionais, conferindo, em geral, o mesmo grau hierárquico de lei ordinária às normas internacionais. Tal entendimento é predominante, quer na doutrina, quer nos pretórios, equiparando-se as normas internacionais à lei ordinária e submetendo ambas à Constituição Federal.

Ocorre que tais questionamentos devem ser analisados cum granus salis, especialmente no que se refere à hierarquia. Senão vejamos: o constituinte originário, após o extenso rol de direitos e garantias fundamentais, constante do art. 5º da Carta Magnas, estabeleceu, nos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo, que:

§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Numa interpretação sistemática do texto contido nos dois parágrafos supra, da lavra do constituinte originário, repise-se, verifica-se que o § 2º consubstancia uma espécie de cláusula geral aberta de recepção dos tratados internacionais que contenham direitos e garantias fundamentais pela Constituição da República – utilizando-se a expressão de FLÁVIA PIOVESAN1 -, sendo que tais disposições, por força da norma contida no § 1º, têm aplicação imediata.

Neste sentido, pesam entendimentos de doutrina respeitável, embora minoritária, dentre os quais citam-se, à guisa de exemplo, a própria FLÁVIA PIOVESAN, a autoridade de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE2, FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, dentre outros.

É do magistério de FLÁVIA PIOVESAN o seguinte excerto:

"Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a hierarquia de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados."3

Não é outro o entendimento de FERNANDO LUIZ XIMENES ROCHA, citado por ALEXANDRE DE MORAES:

"Posição feliz a do nosso constituinte de 1988, ao consagrar que os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte recebe tratamento especial, inserindo-se no elenco dos direitos constitucionais fundamentais, tendo aplicação imediata no âmbito interno, a teor do disposto nos §§ 1º e 2º do art 5º da Constituição Federal."4

Reforçam o entendimento que equipara os referidos instrumentos internacionais às normas constitucionais a natureza materialmente constitucional dos direitos e garantias fundamentais, como bem lembra J.J. GOMES CANOTILHO.5

Assim sendo, o entendimento esposado por esta moderna doutrina entendia que existem dois regimes jurídicos em matéria de instrumentos internacionais no Brasil: o regime jurídico comum, para os tratados em geral, cujo status hierárquico é igual ao das leis ordinárias, e o regime jurídico especial e próprio dos tratados em matéria de direitos humanos, cujo status hierárquico é equiparado ao de normas constitucionais, devido às disposições constantes dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição da República.

Pois bem. Vê-se que ao invés de robustecer tal entendimento, que encontra-se em consonância com a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, assim como com o Princípio da Primazia da Norma Mais Favorável, vigente no direito humanitário internacional, a alteração introduzida na Carta Magna pela EC nº 45/04, com a inclusão do famigerado § 4º ao art. 5º, nada mais faz do que dificultar e fragilizar a vigência interna das normas internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais.

Isto porque, ao afirmar o referido parágrafo que têm status de emenda à Constituição apenas e tão somente os instrumentos internacionais aprovados em ambas as Casas do Legislativo Federal, por maioria de 3/5, em dois turnos – mesmos requisitos formais do processo legislativo das Emendas à Constituição -, determina, contrariu sensu, que os tratados internacionais que não forem aprovados mediante tal procedimento, mesmo versando sobre direitos humanos, terão o nível hierárquico de mera lei ordinária.

Tal disposição constitui um inegável retrocesso em matéria de proteção e efetivação dos direitos humanos no Brasil.

Constituições mais antigas possuem disposições bem menos conservadoras acerca do tema, como, e.g., a Constituição da República Francesa, de 1958, cujo art. 55. dispõe, in verbis:

Article 55. Les traités ou accords regulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son aplication par l’autre partie. 6

Uma vez identificadas as conseqüências concretas da referida alteração na Carta Magna, expender-se-ão alguns comentários sobre sua constitucionalidade.


CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA Nº 45/04.

Como visto, ao contrário de privilegiar os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, a Emenda Constitucional 45 colocou a sua vigência na esfera de conveniência e oportunidade políticas do Poder Legislativo Federal, de modo que pode o Congresso Nacional, doravante, disciplinar conforme seu juízo político a convenência de conferir a hierarquia constitucional às disposições constantes dos referidos instrumentos.

Ocorre que tal disposição afigura-se flagrantemente inconstitucional, por duas razões elementares, mas eminentemente sérias, conforme demonstrar-se-á.

A possibilidade de controle da constitucionalidade das emendas à Constituição é pacífica. É mundialmente conhecida a obra Normas Constitucionais Inconstitucionais (Verfassungswidrige Verfassungsnormem), do Alemão OTTO BACHOFF.

Embora, no Brasil, não se tenha chegado ao extremo de admitir a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias7 – haja vista que à Constituição é dado excepcionar-se a si própria -, é reconhecida, tanto pela doutrina majoritária como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de controle de constitucionalidade das emendas à Constituição, por encontrar-se o poder constituinte derivado subordinado ao poder constituinte originário, assim como juridicamente limitado pelas cláusulas pétreas, imodificáveis.

Neste sentido, conferir o r. aresto do Supremo Tribunal Federal, in verbis:

O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária.

(STF – Pleno – Adin nº 1.946/DF – Medida liminar – Rel. Min. Sydney Sanches. Informativo STF, nº 241)

Assim, é perfeitamente possível a declaração de inconstitucionalidade de emendas à Constituição, desde que suas disposições sejam incompatíveis com disposições oriundas do poder constituinte originário, a saber, as cláusulas pétreas, por imodificáveis. 8

Como afirmado, tratam-se de dois vícios a inquinar o novel parágrafo 3º do art. 5º de evidente inconstitucionalidade.

Em primeiro lugar, cuida-se de observar que o teor do novo § 3º é visivelmente colidente com o teor dos já transcritos §§ 1º e 2º. Isto porque, enquanto estes incluem, automaticamente, os direitos e garantias constantes de instrumentos internacionais no rol dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados, o § 3º pretende limitar tal proteção, condicionando-a à deliberação do Congresso Nacional.

É de bom alvitre recordar-se que os §§ 1º e 2º são, indiscutivelmente, cláusulas pétreas, imodificáveis, a teor do § 4º do art. 60. da Constituição Federal.

Assim sendo, não podem ser os referidos parágrafos sequer modificados pelo § 3º, não restando outra alternativa, seguidas as regras da correta hermenêutica constitucional, senão entender-se pela inconstitucionalidade do novo parágrafo, haja vista a incompatibilidade da disposição normativa nele contida com aquelas contidas dos dispositivos engendrados pelo constituinte originário.

Mas há, ainda, outro vício de inconstitucionalidade a inquinar a referida Emenda Constitucional, no particular, de igual gravidade.

É consabida a disposição constante do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, que consagra as denominadas "cláusulas pétreas" da Constituição. In verbis:

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Ora, ao buscar restringir os efeitos de índole constitucional dos tratados e convenções internacionais em matéria de direitos humanos, condicionando-os à deliberação do parlamento, enquadra-se a Emenda, evidentemente, na hipótese consubstanciada no inciso IV do § 4º do art. 60. da Constituição, retro transcrito, por ser emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias fundamentais.

Assim sendo, pretendeu a Emenda Constitucional nº 45 modificar o cerne rijo e imodificável da Carta Magna, usando de um verdadeiro jogo de palavras para abolir direitos e garantias fundamentais, por tentar frustrar a intenção do legislador constitucional originário de assegurar a inclusão automática de tais direitos no rol constitucional.

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De se atentar para o fato de que os parágrafos 1º e 2º da Constituição de 1988 constituem, em si mesmos, garantias fundamentais, quais sejam: a garantia da imediata aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais e a garantia da inclusão automática dos direitos e garantias fundamentais consagrados em instrumentos internacionais no rol constitucionalmente protegido.

É emenda tendente a abolir direitos e garantias fundamentais não somente aquela que vise operar a supressão literal de tais direitos e garantias do texto constitucional, mas também aquela que vise dificultar sua incorporação ou exercício, ainda que por meio de jogo de palavras, como no caso presente.

De rigor, não poderia sequer ter tramitado o processo legislativo correspondente, a teor da vedação constitucional. Não obstante tenha prosseguido a proposta até promulgação e publicação, a despeito de tal vício, impõe-se, doravante, a rejeição, pela doutrina e pelos pretórios, da aplicação de suas disposições, dada a flagrante inconstitucionalidade apontada.

De todo modo, de se destacar que, mesmo em não sendo reconhecidas as inconstitucionalidades ora apontadas, o que não se espera, somente se poderá exigir a observância do procedimento trazido pelo novel dispositivo para reconhecer-se a índole constitucional de novos instrumentos internacionais.

Entende-se que ao menos os instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/04 já adquiriram, por força dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição da República, o status de norma constitucional, encontrando-se incluídos no rol dos direitos constitucionalmente assegurados.

É o caso de importantes instrumentos internacionais como, e.g., o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica -, ambos ratificados pela República Federativa do Brasil em 1992.

Versando tais instrumentos sobre direitos e garantias fundamentais, e tendo sido incluídos no rol constitucional pela cláusula aberta de recepção da Constituição (§§ 1º e 2º do art. 5º), encontram-se protegidos pela disposição do art. 60, § 4º, sendo insuscetíveis de qualquer alteração, mesmo por emenda constitucional.


Notas

1 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Max Limonad, 2000. p. 76/77.

2 PhD em Direitos Humanos pela Universidade de Cambridge e Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

3 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Max Limonad, 2000. p. 74.

4 Alexandre de Moraes. Constituição do Brasil Interpretada. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 459.

5 Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Max Limonad, 2000. p. 76.

6 "Artigo 55. Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados têm, desde sua publicação, uma autoridade superior àquela das leis, sob reserva, por cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte" (tradução livre do autor).

7 Alexandre de Moraes. Constituição do Brasil Interpretada. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 2.333.

8 Idem, ibidem. p. 2.335.

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Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. A Emenda Constitucional nº 45/04 e o novo regime jurídico dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 581, 2 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6272. Acesso em: 12 dez. 2024.

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