CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A primeira questão que devemos nos fazer ao estudar inversão do ônus da prova talvez seja “o que é ônus da prova?”. E já adiantamos que ônus da prova não é obrigação do sujeito que se encontra no processo de produzir determinada prova sob pena de ter sua pretensão negada. Isso porque a alegação da parte que tem o onus probandi pode ser comprovada por outros meios, até mesmo por prova que a parte contrária tenha trazido ao processo em razão do princípio da comunhão da prova.
Contudo, permanecendo o fato controverso, o ônus da prova, enquanto regra de julgamento, indicará ao juiz qual das partes deveria ter produzido prova hábil a elucidar a questão e, consequentemente, que essa parte não se desincumbiu desse ônus, pendendo, assim, o julgamento dessa questão contra esse sujeito que falhou em se livrar desse ônus.
Ou seja, apesar de o ônus não representar uma obrigação da parte em proceder de determinada forma, ele deixa claro, enquanto regra de conduta, que, se ao final do processo a questão permanecer controvertida, é em desfavor da parte que tinha o ônus que penderá a decisão; a parte não é obrigada a provar nada, mas se ela não se livra desse ônus, ela é a potencial prejudicada.
Importante, ainda, ter em mente que o ônus pode ser visto sob os prismas subjetivo e objetivo. O ônus subjetivo é a indicação sobre a qual dos sujeitos do processo compete provar cada fato. O ônus objetivo, esse sim regra de julgamento a ser aplicada ao fim do processo, indica qual parte será prejudicada se a questão permanecer nebulosa. São, em verdade, duas faces da mesma moeda, subjetivamente o ônus indica quem deveria produzir a prova, objetivamente indica qual das partes será desfavorecida pelo juiz permanecendo a questão mal explicada.
Antes de tratar da inversão do ônus da prova, é importante se definir a quem, via de regra, caberia tal ônus. Tal regra nos traz o NCPC em seu artigo 373, I e II, que trouxe regra idêntica ao CPC/73: o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Se pararmos por aqui, como fazia o CPC/73 em seu artigo 333, a inversão do ônus probandi prevista na lei 8.078/90 é uma grande vantagem que o legislador conferiu ao consumidor que, preenchidos os requisitos legais, transfere o ônus da produção da prova ao fornecedor. Contudo, o NCPC inovou com o §1º do mesmo artigo 373, que possibilita ao juiz a distribuição dinâmica do ônus da prova, prevendo expressamente que deverá fazê-lo por decisão fundamentada, devendo dar à parte oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. Essa parte final do §1º do artigo 373 veio nitidamente para coibir uma jurisprudência deveras questionável que entendia ser a inversão regra de julgamento, esquecendo-se do aspecto subjetivo do ônus da prova, ou seja, o fornecedor era surpreendido no momento da sentença com a inversão do onus probandi, que em momento algum do processo a ele tinha sido atribuído. A nosso ver, muito salutar foi essa mudança a fim de se evitar cerceamento ao direito de defesa
FINALIDADE DA INVERSÃO DO ONUS PROBANDI
A inversão do ônus da prova não tem por finalidade determinar vencedores e perdedores do processo. Ela visa tão somente que se distribua o ônus da prova à parte que tem melhor condições técnicas ou facilidade na sua produção.
Tomamos o exemplo do REsp 915.599-SP do consumidor bancário que alega ter sido vítima de saques fraudulentos; ora, o consumidor médio desconhece os procedimentos de segurança do banco para a realização de saques, dessa forma, caberia ao banco explicar em juízo seu método de trabalho, bem como provar que a alegação do consumidor não merece acolhimento.
Tanto a finalidade da inversão é atribuir à parte com melhores condições de produzir a prova o ônus pela sua produção, que o NCPC em seu artigo 373, §2º, vedou a inversão desse ônus quando a produção da prova também for difícil ou impossível ao novo sujeito a quem se o atribuiu.
Reforçando: a inversão tem por finalidade a produção da prova em si por quem tem melhores condições em fazê-lo, visando contribuir para que o juiz decida com mais certeza. A parte que recebeu a incumbência não é obrigada a produzir a prova se entender que ela lhe é muito danosa, mas estará ciente de que, caso persista controvérsia sobre a questão à qual tal prova se destinava, ela, parte que não se desincumbiu do ônus, poderá ser penalizada no momento da sentença.
ESPÉCIES DE INVERSÃO
O professor Daniel Neves nota que a inversão do ônus comporta três espécies, a saber: convencional, legal e judicial. Colocaremos as três, mas já ressalvamos entender que a inversão legal seria em verdade caso de exceção legal à regra do artigo 373, I e II, e não inversão propriamente dita.
A inversão convencional está prevista no §3º do artigo 333 do NCPC, dispondo sobre suas limitações – não pode versar sobre direito indisponível ou tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito – e momento – ela pode ser convencionada antes ou durante o processo.
Já a inversão legal, ou ope legis, é aquela em que a própria lei estipula de forma diversa da regra geral do artigo 333, I e II, do NCPC. Importante se notar que, aqui, por se tratar de determinação legal, não haveria, em nosso ver, necessidade de informar à parte que a ela incumbe determinado ônus por não tratar-se de inversão discricionária do juiz. Interessante é a leitura do §1º, do artigo 373, nesse caso:
Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Numa primeira leitura tem-se a impressão de que o legislador determinou que, quando houver inversão, seja judicial ou legal, deverá o juiz dar oportunidade à parte de se desincumbir do ônus. Não entendemos dessa maneira: a nosso ver, quando o artigo 373, §1º, traz a expressão casos previstos em lei, refere-se à inversão judicial, da qual é exemplo o artigo 6º, VIII, do CDC. Já no caso de inversão legal, a lei é expressa e taxativa: “em tal hipótese o ônus é de tal pessoa”. Não há de se falar em cerceamento de direito de defesa ou surpresa da parte porque a lei foi clara.
Entendemos ainda que, pela previsão do artigo 373 §1º do NCPC, existe a possibilidade da desinversão do ônus da prova: ora, tendo a inversão do ônus probandi a finalidade de atribuir o ônus de provar à parte que tenha melhores condições para fazê-lo, em respeito aos princípios dispostos nos artigos 5º, 6º e 7º do NCPC (boa-fé, cooperação, paridade), pelo mesmo motivo que autoriza o juiz a inverter o ônus da prova da regra geral – atribuir à parte com melhores condições para produção da prova o ônus da sua produção – está ele autorizado a desinverter a inversão legal. Nesse caso, em que o juiz está invertendo a regra legal de inversão, é que estaria ele obrigado a dar prazo para que a parte se desincumba desse ônus.
O CDC traz algumas hipóteses de inversão ope legis nos artigos 12, §3º (hipóteses em que o fabricante não será responsabilizado), artigo 14, §3º (hipóteses em que o fornecedor de serviços não será responsabilizado), e no artigo 38 (ônus da prova da veracidade e correção de informação ou comunicação publicitária). Nestes casos, como já pontuamos, o correto talvez nem fosse denominá-los inversão; seriam talvez exceções à regra geral do artigo 373, I e II, do NCPC. Talvez essa ideia de exceção – não inversão – à regra seja a mais adequada, especialmente quando nos deparamos com a observação do professor Kazuo Watanabe, que alerta para o fato de que, quando for o patrocinador da publicidade quem ingressa com a ação, o ônus recairá sobre ele, autor da demanda, por força do artigo 38 do CDC, mas também de acordo com a regra geral do artigo 373, I e II, do NCPC, ou seja, não tivemos inversão: o ônus tão somente foi distribuído da forma como a lei determinou.
Por fim, temos a chamada inversão judicial do artigo 373, §1º, do NCPC e também do artigo 6º, VIII, do CDC. No caso do CDC, cabe ao juiz, enquadrando-se a parte nas hipóteses do artigo – hipossuficiência ou verossimilhanças das alegações –, inverter o ônus para a parte com melhores condições de produzi-la. Note-se que, diferentemente das hipóteses dos artigos 12, 14 e 38 do CDC, em que a lei traz expressamente as situações em que teremos a exceção à regra geral do ônus probatório, aqui o legislador abriu a possibilidade de se inverter o ônus, desde que verificado pelo juiz algum dos requisitos que autorizam tal inversão. Trata-se de um poder-dever do juiz de realizar tal inversão, mas ao mesmo tempo é uma regra genérica que depende da análise pelo juiz, por isso não aceitamos a posição de Nelson Nery Júnior segundo a qual estaríamos diante de uma regra de julgamento, e que o fornecedor sabia, desde o início da demanda que pairava sobre ele, a possibilidade de que fosse determinada essa inversão, portanto deveria o fornecedor trazer ao processo tudo quanto fosse possível, nas palavras dele: “já sabe, de antemão que tem de provar tudo o que estiver a seu alcance e for de seu interesse nas lides de consumo. Não é pego de surpresa com a inversão na sentença”.
Essa visão de que o fornecedor deve trazer ao processo tudo e mais um pouco pela mera possibilidade de ser invertido o ônus probandi nos parece um tanto extrema. O fornecedor dentro de uma demanda de consumo já tem algumas garantias processuais relativizadas para se alcançar a isonomia material, contudo, defender a ideia de que deve o fornecedor trazer tudo e mais um pouco para o processo é o mesmo que cercear a sua defesa pela quebra da dialética própria em que se configura o processo. O fornecedor trará ao processo as provas que lhe sejam úteis e aquelas cujo ônus pela sua não produção lhe seja demais custoso. E é justamente aqui que a distinção inicial entre ônus subjetivo e objetivo ganha relevância: é imprescindível para que o processo seja justo e efetivo que cada parte tenha conhecimento sobre o que ela deve provar, em outras palavras, a qual parte cabe o ônus subjetivo de cada questão controversa: ora, se eu não tenho determinado ônus subjetivo, o não deslinde de determinada situação fática depõe a meu favor, a parte que tem o ônus subjetivo é aquela que deve suportar o peso da caneta (ônus objetivo) em permanecendo a questão obscura. Logo, respeitamos a posição, mas a ideia do professor Nery de que a parte deve produzir todas as provas possíveis, pois – pode ser que sim, mas pode ser que não – é possível haver a inversão do ônus da prova, assemelha-se à situação do personagem de Franz Kafka que precisa se defender da acusação de um crime que desconhece; o ônus pela produção de determinada prova deve ficar claro para que a parte tenha chance de se desincumbir dele, não pode ser por uma mera expectativa de canetada. Foram justamente posições doutrinárias e jurisprudenciais como esta que fizeram incluir no NCPC a parte final do artigo 373, §1º: “desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
REQUISITOS PARA INVERSÃO DO CDC
Antes de adentrarmos nos requisitos para inversão do onus probandi do CDC, é importante fazermos algumas considerações.
A primeira delas diz respeito sobre serem os requisitos cumulativos ou alternativos, e a esse respeito a doutrina parece ser uníssona no sentido de serem eles alternativos, especialmente porque o legislador optou pela conjunção alternativa ou. Algumas críticas se fazem a essa alternatividade, especialmente em relação ao requisito da hipossuficiência, sobre o qual o professor Daniel Amorim traz o exemplo do consumidor que alega ter sofrido danos materiais e morais pois foi abduzido enquanto realizava compras. Para o professor, a inversão do ônus com base na hipossuficiência, sem considerar a verossimilhança teria o condão de causar danos ao shopping center caso houvesse alguma falha no sistema de câmeras do shopping, ou caso o shopping não conseguisse provar que o consumidor não esteve lá no momento alegado. Não conseguimos concordar com a crítica do professor Amorim, pois a prova que é produzida ou deixa de ser produzida no processo será valorada pelo juiz no momento da sentença, o fato de o shopping center não ter conseguido se desincumbir do ônus que recaia sobre si não torna a causa perdida: o juiz vai levar em consideração que o shopping não teve acesso às imagens, mas o juiz vai levar em consideração também que a alegação do consumidor é deveras fantasiosa. O fato do shopping não ter conseguido se desincumbir do ônus de provar que o cliente entrou e saiu em segurança ou que o cliente nunca esteve lá, não pode ter o condão de obrigar o juiz a sentenciar que extraterrestres existem; o juiz analisará o conjunto do processo para chegar a uma conclusão.
A segunda observação importante seria sobre como se integram o CDC e o NCPC, uma vez que o novo diploma processual traz regras correlatas ao artigo 6º, VIII, do CDC. Somos da opinião de que as normas antes de se excluírem, devem se integrar na busca de um processo justo e que traga pacificação social. Entendemos inclusive que a regra do artigo 373 §2º – a decisão prevista no §1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil – deve ser aplicada às relações consumeristas, pois muitas vezes imaginamos o fornecedor como um grande conglomerado, um banco, mas ela se aplica a pequenos empresários, de forma que se deve buscar dar a incumbência do ônus da prova a quem tem melhores condições, ou as deveria ter.
HIPOSSUFICIÊNCIA
A hipossuficiência deve ser entendida como as condições ou deficiências do consumidor que tornariam difícil ou até impossível que ele deduzisse sua pretensão em juízo. Importante notar que essa hipossuficiência é ampla, podendo se consubstanciar por uma carência de informação, educação, econômica e especialmente técnica. Muitas vezes o consumidor não tem como comprovar determinado fato pois só o fornecedor tem conhecimento detalhado dos processos e procedimentos sob sua gestão, de forma que é muito mais simples para este realizar tal prova.
VEROSSIMILHANÇA
A verossimilhança é a aparência de verdade no tanto quanto afirma o réu. Não se trata de um pré-julgamento por parte do juiz, mas de uma probabilidade apurada nos autos "segundo as regras ordinárias de experiência". Por isso é importante que a inicial tenha forte conteúdo persuasivo. Conforme nota Antonio Gidi, o antigo processo cautelar estava para o fumus boni juris, como a verossimilhança está para o fumus boni facti.
Havendo qualquer das duas hipóteses, teria o juiz o poder-dever de inverter o onus probandi, mas sempre deixando claro que o está fazendo e dando prazo para que a parte se desincumba de seu novo ônus, na forma do artigo 373, §1º, do NCPC.
MOMENTO DA INVERSÃO
A lei não traz uma regra específica sobre o momento em que essa inversão pode ser realizada. Com relação ao procedimento comum, ela deve ser realizada no despacho saneador, mas para causas do Juizado Especial não há regra; porém, seria de boa prática que o fizesse antes da AIJ.
De qualquer forma o ideal seria que o juiz realizasse tal inversão após a contestação, pois só a partir dela saberemos quais são os fatos controvertidos, e antes da fase de instrução, de forma que permita às partes saber quais provas lhe incumbem produzir.
Há entendimento na doutrina de que a inversão pode ser realizada durante a sentença, mas esse entendimento é defendido pelos que veem a inversão do artigo 6º, VIII, como ope legis, que não é nosso entendimento, de forma que a inversão realizada na sentença é inversão tardia, que surpreende a parte, não dá chance de ela produzir a prova e ofende textualmente o artigo 373, §1º, do NCPC.
Teoricamente, pode o juiz inverter o onus probandi até mesmo antes da sentença, o problema é que ele precisaria reabrir prazo para as partes produzirem prova, contraditarem, causando atraso no processo.
ADIANTAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
O último ponto que é interessante se analisar sobre a inversão do ônus probatório é o referente ao adiantamento das despesas para a produção da prova.
E embora se tenha invertido o onus probandi, isso não se estende à obrigação de recolher as custas para a produção dessa prova, em outras palavras, ainda que haja inversão do ônus da prova, permanece com o consumidor a obrigação de recolher o adiantamento das custas.
E se o consumidor não tem condições de arcar com tais custas? Ora, a prova não é realizada. E quem deve suportar o ônus objetivo pela não produção dessa prova? Ora, quem tinha o ônus subjetivo da sua produção: o fornecedor. Dessa forma fica clara uma situação aparentemente antagônica: embora a obrigação de recolher as custas pela produção da prova seja do consumidor, o ônus pela sua não produção era do fornecedor, razão que leva o fornecedor a arcar com tais custas, pois ele é quem suportará o ônus pela sua não produção.
Uma situação que demonstra absoluta falta de técnica por parte de advogados de consumidores é trazida pelo professor Daniel Amorim: muitas vezes, diante da determinação do juiz de que é o consumidor quem deve arcar com os custos da produção de determinada prova, o advogado, ignorando o fato de que o ônus pela sua não produção recairia para o fornecedor, orienta o cliente a realizar tal recolhimento, que é feito a duras custas pelo consumidor, pois acredita que, caso não o faça, será penalizado no processo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FINKELSTEIN, Maria Eugênia Reis. Manual de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro/RJ: Elsevier, 2010.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 5. ed. São Paulo/SP: Método, 2016.