Outorga onerosa do direito de construir

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16/12/2017 às 16:24
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5. NATUREZA JURÍDICA

A natureza jurídica do instituto da outorga onerosa do direito de construir vem determinada na redação do próprio Estatuto da Cidade, em seu artigo 4º.

Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

[...]

V - institutos jurídicos e políticos:

[...]

n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;

Pela simples leitura do artigo de Lei, é possível determinar que a outorga onerosa do direito de construir é um instrumento jurídico e não tributário. Ou seja, a função primordial da outorga onerosa do direito de construir é proporcionar melhor urbanização da localidade, e não arrecadar receita para o Município. Neste sentido mesmo, Ricardo Pereira Lira entende inclusive que a contraprestação pelo particular deva ser primordialmente a devolução de áreas para a coletividade, e não a indenização pecuniária[23].

Eros Grau posiciona-se no sentido de que a prestação pecuniária do solo criado não pode ser taxada como tributo uma vez que não se trata efetivamente de contraprestação por serviço do poder público. Segundo Eros Grau, a Administração Pública só pode transacionar com o solo criado – ou a outorga onerosa do direito de construir – se possuir antecipadamente solo para “alienar”, ou seja, se a Administração municipal não possui direito de construir em áreas não construídas para aliená-los a particulares, não poderia então alienar o que não tem[24].

Neste mesmo diapasão, vem o entendimento de Adriano Daleffe[25], para quem

afasta-se de antemão a configuração do solo criado como mecanismo de transferência de riqueza da iniciativa privada para os cofres públicos. Tende-se a enxergar no solo criado veículo novo de arrecadação do Poder Público Municipal. Isso pressuporia cisão definitiva entre a titularidade da propriedade urbana e a prerrogativa de edificar sobre ela.

Este entendimento também passa pelos Tribunais nacionais. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em decisão de 02 de maio de 2005[26] (Vide anexo “B”, p. 29) corroborou com o entendimento de que o solo criado não possui natureza tributária. Entendeu o relator da Apelação Cível, Desembargador Vanderlei Romer, que fora movida a fim de declarar inconstitucional o instituto do solo criado na cidade de Florianópolis que

não se trata de uma relação tributária, como defende a apelante, mas um relação jurídica de natureza obrigacional administrativa, pois se o empreendedor resolver construir acima do coeficiente máximo fixado em lei, a Administração Municipal deverá disponibilizar maiores recursos para aquele local. [...] ninguém está obrigado a comprar um bem, no entanto, a partir do momento que decide adquiri-lo, terá que pagar o preço fixado pelo vendedor. Contudo, não será por essa razão que o valor pago pela mercadoria se tornará um tributo. Assim também é o solo criado. É um negócio jurídico realizado entre o proprietário do terreno e a Administração Municipal, em que o administrado compra do Município o direito de construir acima do índice fixado em lei.

Continua o relator, citando o procurador de justiça José Eduardo da Luz Fontes[27], afirmando que

No caso em exame, se está diante de um ato de aquisição de um direito, não compulsório. A aquisição desse direito junto à municipalidade, trata-se, na verdade, de ato voluntário, no qual prepondera o requisito da vontade das partes (setor público e privado), substituindo o requisito da imposição legal. Sendo assim, a remuneração correspondente é de natureza contratual e não legal.

No entanto, doutrinadores de renome nacional divergem deste entedimento. Geraldo Ataliba[28] entende que a contraprestação pelo solo criado é pecuniária e tem natureza tributária de competência da União, sendo que os valores deverão ser repassados à municipalidade posteriormente.

Miguel Seabra Fagundes[29] também se posiciona no sentido de que, havendo contraprestação pecuniária pelo solo criado, a natureza desta contraprestação seria indiscutivelmente tributária.

Luiz Henrique Antunes Alochio também visualiza o a contraprestação pelo solo criado com natureza tributária. Porém ele cuidadosamente separa a criação de solo da simples “transferência de potenciais construtivos”. Analisaremos, então, sua posição a respeito da contraprestação quando ocorre, efetivamente, criação de solo.

Para este autor, a teoria de que a contraprestação seria um ônus, a partir do momento em que o proprietário do solo não é obrigado a construir nele, não seria procedente. Isso porque o ônus significaria que, caso o proprietário do solo construísse além do limite fixado sem autorização e conseqüente contraprestação à Administração Pública, não incorreria em um ilícito, o que não é verdadeiro[30].

Coloca ainda que

o solo criado, quando estritamente estivermos nos referindo à noção de criação de solos (e não à transferência de potenciais construtivos), uma taxa, em decorrência do exercício do poder de polícia do Município, para ordenar o equilíbrio entre espaços públicos e espaços privados numa determinada zona do Plano Diretor Urbano[31].

E finaliza seu entendimento afirmando que entender a contraprestação pelo solo criado com natureza tributária não usurpa a autonomia do Direito Urbanístico, sendo “a fórmula mais hábil e cristalina contra os abusos típicos perpetrados pelas Administrações Municipais”[32].

Verdadeiramente, a prestação pecuniária pelo solo criado apresenta-se como um tributo. Assiste razão a Luiz Henrique Antunes Alochio quando afasta a teoria do ônus do solo criado[33]. Razão também assiste ao afirmar que a criação de solo não é uma transação comercial, uma vez que o Poder Público não “vende” solo ao particular: o Poder Público só poderia vender solo caso o possuísse, e a teoria do solo criado vai além desta restrição[34].

No caso da outorga onerosa do direito de construir, a dificuldade em se fixar a natureza jurídica da contraprestação é o fato de sua dualidade. Se financeira, é tributo. E se não é financeira? Também seria tributo a entrega de áreas à Municipalidade para a construção de parques naturais?

A doutrina pouco se ocupa desta dualidade. Aparentemente, seria de pouca importância. Ocorre que não se pode determinar a natureza jurídica de um tipo de contraprestação pelo solo criado e ignorar a outra, pois ambas possuem mesma origem, objeto e motivação.

A solução aparece também dua: pode-se admitir que exista tributo criado cuja forma de pagamento não seja monetária ou pode-se admitir que a contraprestação pelo solo criado não é tributo de nenhuma espécie, mesmo não possuindo natureza contratual.

Parece mais adequado afastar a natureza tributária da contraprestação pelo solo criado, uma vez que o próprio Estatuto da Cidade afasta a outorga onerosa do direito de construir dos instrumentos de tributação[35]. A contraprestação pelo solo criado seria uma espécie de obrigação administrativa, que genericamente é alternativa – podendo ser real ou financeira – e cada municipalidade viria a regulamentar sua modalidade da forma que melhor aprouver aos seus interesses coletivos.  


6. CONCLUSÃO

Através das poucas análises realizadas, pode-se observar que o instituto da outorga onerosa do direito de construir, instituído na legislação nacional através da Lei Federal Nº. 10.257/2001, é mais antigo e seus contornos traçados quando a tecnologia começou a permitir ao homem sobrepor seus espaços e adensar-se cada vez mais nos espaços urbanos.

Faz-se, então, necessário e fundamental a adequação dos espaços urbanos à demanda crescente e desordenada da população, que os ocupa inadequadamente na grande maioria das vezes, causando excesso populacional em algumas áreas e vazios demográficos em outras.

A outorga onerosa do direito de construir reflete-se no conceito do solo criado, e subsiste no interesse da Administração Pública em frear o adensamento das cidades e a especulação imobiliária.

Independente da natureza jurídica exata da contraprestação pelo solo criado, o fator mais importante a ser observado – e resguardado – é a utilização dos recursos abarganhados pela Municipalidade com a criação extra de solo artificial. A visão do instituto como mais uma forma de abuso do Poder Público, como mais uma forma de “renda” para a Municipalidade, como mais uma forma de tributar e onerar empresas e particulares, vai de encontro com o objetivo esboçado no Estatuto da Cidade.

É necessário que os recursos obtidos sejam bem utilizados e, preferencialmente, utilizados na reposição de áreas, na melhoria da infra-estrutura e da qualidade de vida da cidade.


REFERÊNCIAS

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Do solo criado – outorga onerosa do direito de construir: instrumento de tributação para a ordenação do ambiente urbano. Rio de Janeiro : Lumen Juris. 2005. 301 p.

BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O solo criado no direito brasileiro. In Revista da Procuradoria Geral do INSS, vol. 7, n. 2, jul-set 2000.

BRASIL. Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Brasília : Congresso Nacional

DALEFFE, Adriano. Solo criado e a disciplina urbanística da propriedade. Revista de Informação Legislativa, a 34 n. 134 abr./jun. 1997. Brasília : Senado Federal. Disponível em http://www.senado.gov.br/web/ cegraf/ril/Pdf/pdf_135/r135-33.pdf. Acesso em 02 jan 2006.

DORNELAS, Henrique Lopes. Aspectos jurídicos da outorga onerosa do direito de construir. Solo criado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4483. Acesso em: 20 nov. 2005.

GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. Regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo : RT, 1983.

LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro : Renovar, 1997. 391p.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. 9 ed. São Paulo : Malheiros. 2005. 480 p.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 3 ed. São Paulo : Malheiros, 2000. 455p.


Notas

[1] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Do solo criado – outorga onerosa do direito de construir: instrumento de tributação para a ordenação do ambiente urbano. Rio de Janeiro : Lumen Juris. 2005. pp. 31/32.

[2] DORNELAS, Henrique Lopes. Aspectos jurídicos da outorga onerosa do direito de construir. Solo criado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4483. Acesso em: 20 nov. 2005.

[3] DORNELAS, Henrique Lopes. op. cit. pp. 7/8.

[4] BRASIL. Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Brasília : Congresso Nacional. Art. 4º. - Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: [...] V - institutos jurídicos e políticos: [...] n)    n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso.

[5] DALEFFE, Adriano. Solo criado e a disciplina urbanística da propriedade. Revista de Informação Legislativa, a 34 n. 134 abr./jun. 1997. Brasília : Senado Federal. Disponível em http://www.senado.gov.br/web/ cegraf/ril/Pdf/pdf_135/r135-33.pdf. Acesso em 02 jan 2006. p. 303.

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[6] LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro : Renovar, 1997, p. 165.

[7] Apud SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 3 ed. São Paulo : Malheiros, 2000. p. 250.

[8] Apud ALOCHIO, op. cit. p. 63.

[9] BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O solo criado no direito brasileiro. In Revista da Procuradoria Geral do INSS, vol. 7, n. 2, jul-set 2000. p. 49

[10] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. p. 178.

[11] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. p. 179.

[12] BRANCO, Gerson Luiz Carlos. op. cit. p. 56

[13] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. 9 ed. São Paulo : Malheiros. 2005. p. 168.

[14] BRANCO, Gerson Luiz Carlos. op cit. p. 56

[15] SILVA, José Afonso. op. cit. p. 251.

[16] DORNELAS, Henrique Lopes. op. cit. p. 05.

[17] SILVA, José Afonso. op. cit. pp. 253/254

[18] MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit. p. 111

[19] DALEFFE, Adriano. op. cit. p. 306.

[20] LIRA, Ricardo Pereira. op. cit. p. 166

[21] BRANCO, Gerson Luiz Carlos. op. cit. p. 58.

[22] BRASIL. Santa Catarina. Prefeitura Municipal de Florianópolis. Lei Municipal nº. 3.338 de 1989.

[23] LIRA, Ricardo Pereira. op. cit. p. 166.

[24] GRAU, Eros Roberto. Direito urbano. Regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo : RT, 1983. pp. 80/81.

[25] DALEFFE, Adriano. op. cit. p. 307.

[26] Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação cível n. 2004.000018-9, da Capital. Relator Des. Vanderlei Romer, julgado em 02 maio 2005.

[27] Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação cível no mandado de segurança nº. 5.732.

[28] apud ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. pp. 176/177.

[29] apud ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. p. 177.

[30] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. pp. 119/121.

[31] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. p. 181.

[32] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. p. 181.

[33] ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. pp. 119/121.

[34] Segundo Eros Roberto Grau, o solo criado só seria admissível inicialmente se a Administração Pública possuísse solo para vender, ou seja, se a Municipalidade transacionasse com o direito de construir que ela mesma possuísse. Com esta concepção, parece de fácil compreensão que a contraprestação pecuniária pelo solo criado não seria um tributo, mas o preço da transação comercial. Ocorre que tal situação não corresponde à prática: a Administração Pública, autorizada pelos Planos Diretores, e mesmo pelo Estatuto da Cidade, autoriza construção através de solo criado a qualquer particular, desde que comungando com os interesses públicos, percebendo a contraprestação. Desta forma, a pecúnia percebida pela Municipalidade não pode ser entendia como preço, uma vez não ter havido nenhuma transação comercial. Apud ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. op. cit. pp. 101/103

[35] BRASIL. Lei Federal Nº. 10.257 de 10 jul 2001. Brasilia : Congresso Nacional. Art. 4º., V, n.

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Sobre a autora
Tatiana Mareto Silva

Doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC/UNIFLU, Pós-graduada em Processo Civil pela FDV, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário São Camilo-ES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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