Colaboração premiada, em síntese, pode ser definida como “o acordo firmado entre o membro de organização criminosa e o Estado, por meio do qual é possível o perdão judicial, a redução da pena ou a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos do colaborador voluntário, desde que alcançado ao menos um dos resultados descritos nos incisos do artigo 4º da Lei 12.850/13”[1]. Tal avença se traduz em meio de obtenção de prova (previsto no artigo 3º, I, da Lei 12.850/13).
A possibilidade de negociação entre autor de crime e o Estado não é novidade (colaboração em troca de benesse), senão vejamos: a) artigo 8º da Lei 8.072/90 (crimes hediondos); b) § 4º, do artigo 159, do Código Penal (extorsão mediante sequestro); c) § 5º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro); d) artigo 41 da Lei 11.343/06 (drogas); e e) artigo 87 da lei 12.529/11 (cartéis).
O instituto desperta, em primeira análise, discussão acerca do respeito a premissas éticas pelo Estado. Seria ético e moral estimular legalmente acordos que redundam em eventual traição (entre membros de organização criminosa)? Transcrevo passagem de obra de minha autoria para sintetizar meu sentimento a respeito do assunto:
Penso que não há o menor problema em ofertar benesses ao membro de agremiação criminosa que tenciona delatar seus comparsas e/ou desnudar as práticas delitógenas dos seus convivas. Cumpre lembrar que estamos tratando de indivíduos que diuturnamente se ocupam de atacar o Estado, de maneira sorrateira e por meio de práticas extremamente danosas ao tecido social. O desbaratamento de organizações criminosas e o bem que isso traz ao restante da população justifica (e muito) a utilização da técnica[2].
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, depois de enumerarem outros argumentos dos que atacam a colaboração premiada, concluem que discordam de todos eles, porque: a) o instituto só é admitido quando o agente aquiesce voluntariamente (requisito explícito aposto no caput do artigo 4º da Lei 12.850/13); b) há outras possibilidades legalmente previstas de acordo que não, tão só, a delação de comparsas; c) a legislação tupiniquim prevê diversos outros prêmios ao agente que se arrepende (como, por exemplo, os artigos 15 e 16 do Código Penal); e d) a colaboração não significa, em nenhuma medida, o esmorecimento do trabalho investigativo da polícia (que, segundo críticos, ficaria acomodada com a eventual facilidade resultante da colaboração)[3]. Sem reparo à lição dos doutos.
É preciso que se diga (com base na análise do que de fato acontece) que a colaboração não se dá por altruísmo. O acordo só é cogitado pelo membro da organização criminosa quando ele verifica, por meio do seu advogado, que o aparelho policial já dispõe de largo cabedal probante em seu desfavor e que haverá mais vantagens (substituição de pena, diminuição de pena ou perdão judicial) que desvantagens (eventual represália por parte dos outros membros da organização criminosa, por exemplo) no fechamento do acordo.
Outro ponto: analisando os incisos do artigo 4º da Lei 12.850/13, apenas dois incisos (I e II) se traduzem em efetiva deleção de outros comparsas. Os demais incisos (III a V) permitem o fechamento do acordo (já que os incisos são alternativos) e a obtenção da benesse (caso a obrigação assumida pelo colaborador seja materializada):
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Segundo nos informa a Lei 12.850/13, o acordo de colaboração deve ser confeccionado por escrito pelo delegado de polícia (no curso do inquérito policial) ou pelo Ministério Público (durante o inquérito ou no bojo do processo), com participação do investigado/acusado e seu defensor. O juiz não deve participar das negociações, na forma do § 6º, do artigo 4º, da Lei 12.850/13.
É no parágrafo anterior que surge a polêmica criada pela procuradoria-geral da República, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5508. O cerne de tal ADIN é discutir a legitimidade do delegado de polícia para materializar acordo de colaboração premiada com o investigado membro de organização criminosa, no curso do inquérito policial. A premissa da ação intentada pela PGR é o fato de que os benefícios só poderiam ser oferecidos pelo Ministério Público, parte acusadora no futuro processo (trato apenas do acordo firmado antes do início da ação penal, por ser o cerne da ADIN).
Uma vez mais, verifica-se movimentação do Ministério Público no sentido de tentar limitar a atuação do Estado-investigação, sob pretenso argumento de só ao parquet cabeira dirigir-se ao juízo criminal.
É preciso fazer três constatações que, apesar de óbvias, por vezes são esquecidas: a) não há como mensurar a importância/proeminência das funções estatais de investigar e acusar; b) o trabalho investigativo da polícia é voltado à elucidação de fato supostamente criminoso e não, tão somente, à acusação; c) a natureza jurídica do cargo de delegado de polícia e a formatação do nosso sistema de persecução penal dão legitimidade à autoridade policial para subscrever, pela força do seu cargo e da instituição que preside, pleitos cautelares diretamente ao juízo competente.
Primeira constatação: é um equívoco estrondoso mensurar a importância das funções estatais no curso da persecução penal. O sistema de persecução imaginado pelo legislador constituinte originário se funda na atuação de pelo menos três órgãos estatais, cada um com sua função definida: a) a polícia investigativa (Polícias Civis ou Polícia Federal) – responsável pela elaboração de inquérito policial ou qualquer outro procedimento investigativo que venha a ser criado por lei (como o termo circunstanciado) e que tem por tarefa esmiuçar fato supostamente criminoso (caso se detecte que o fato é crime, deve-se colher prova da materialidade delitiva e demonstrar, por meio de indícios ou provas, quem foi seu autor); b) o órgão acusador oficial (Ministério Público) – a opção do legislador constituinte pelo sistema acusatório reclama separação entre as funções estatais de acusar e julgar e o MP é o órgão encarregado de processar quem cometer infração penal; c) órgão julgador (Poder Judiciário) – responsável por julgar os casos criminais, condenando ou absolvendo réus (na fase pré-processual, o Poder Judiciário analisa pleitos da polícia e/ou do MP no curso de procedimentos investigatórios). Caso o réu seja pobre na forma da lei, entra em ação mais um órgão estatal – a Defensoria Pública.
A já antiga ideia de “quem pode o mais, pode o menos”, que é usada como uma das fundamentações para permitir, por exemplo, a investigação direta de crimes pelo Ministério Público me parece falsa. Se investigar é menos que acusar, seria lícito dizer que julgar é mais que acusar (para que se permita a figura do juiz investigador em nossa realidade constitucional)? Se quem é parte exerce função maior e mais digna que quem investiga, seria lícito à Defensoria Pública criar procedimento formal de investigação pré-processual na defesa dos seus assistidos (a provocação aqui desenhada seria interessante – estaria aberto o caminho para existência de três investigações estatais idênticas em relação a um mesmo caso criminal – uma da polícia, uma do MP e outra da Defensoria Pública)?
O que há, de fato, é a especialização das funções estatais de investigar, acusar, defender e julgar, cada uma cometida a um órgão distinto, de forma equilibrada, nos termos do querer do legislador constituinte de 1988. É o meu sentir.
Segunda constatação: a polícia não é órgão subordinado ao Ministério Público e o fruto do seu trabalho não pode ser aproveitado apenas pelo parquet. É tranquilamente possível que o delegado de polícia colha provas que demonstrem que o investigado cometeu fato típico, mas que estava amparado por causa excludente de ilicitude (ele não será indicado e o trabalho será enviado para o juízo). Como não há vinculação entre os pensamentos dos órgãos que compõem carreiras típicas de Estado na persecução penal, caso o Ministério Público discorde das conclusões da autoridade policial, oferecerá denúncia. Por óbvio, em um caso como esse, as provas e elementos informativos colhidos pelo delegado de polícia (e mesmo suas conclusões técnico-jurídicas sobre o fato apurado) poderão servir à defesa técnica no curso do processo e ao magistrado quando do julgamento.
Terceira constatação: a opção do legislador constituinte de 1988 (de atribuir às polícias investigativas a atribuição de apurar casos criminais) e a conformação do arcabouço processual penal brasileiro (Código de Processo Penal, Lei 9.296/96, Lei 12.830/13, Lei 12.850/13, dentre outras) demonstram, sem que paire uma só sombra de dúvida, que a presidência da investigação criminal feita por meio de inquérito policial e os rumos das investigações materializadas no bojo deste procedimento cabem ao delegado de polícia. É a autoridade policial quem determina a ordem das diligências a serem materializadas com o fito de aclarar o fato supostamente criminoso a ele apresentado, podendo, inclusive, representar diretamente ao juízo competente pela decretação de medidas cautelares (busca domiciliar, prisão cautelar, interceptação telefônica, dentre outras). Impende salientar que tais medidas servem para acautelar o inquérito e não o futuro processo (que não se sabe, a princípio, se será manejado). A relação principal-acessório se desenvolve entre o inquérito policial e a medida cautelar pleiteada pelo delegado de polícia.
Nesta senda (e voltando a tratar do acordo de colaboração premiada), parece-me que o presidente da investigação é, sem que paire uma só sombra de dúvida, a autoridade que melhor pode avaliar a conveniência de ofertar ou não acordo de colaboração ao investigado, no curso da fase pré-processual (já que ele tem exata noção acerca do que foi produzido até então, do grau de participação do pretenso colaborador nas atividades da organização criminosa e até onde chegariam as investigações sem o auxílio deste).
Assistindo aos debates travados no Supremo Tribunal Federal por conta da ADIN 5508, nota-se preocupação de alguns Ministros com o papel do Judiciário em relação aos termos do acordo de colaboração premiada. Esclareço: o acordo de colaboração premiada, depois de firmado pelo delegado de polícia e o colaborador (com participação obrigatória de advogado), deve ser submetido à chancela judicial, depois de ofertado parecer pelo Ministério Público. O juízo deve analisar, em síntese, a legalidade e a voluntariedade da avença, decidindo por sua homologação ou não. Caso homologue, a benesse prevista no acordo só será efetivamente implementada no bojo da sentença (e caso o colaborador tenha efetivamente cumprido sua parte, já que a colaboração premiada não é prova em si, mas meio de obtenção de prova – e não é possível condenar réu com base, tão somente, nas palavras do colaborador). As possibilidades de benesse, como dito supra, são: a) substituição de pena; b) diminuição de pena; c) perdão judicial.
Não entendo o porquê de tanta celeuma em relação à possibilidade legal de oferta de tais benesses pelo delegado de polícia. Imaginemos a seguinte situação hipotética: no curso da investigação de um furto rumoroso a uma instituição bancária (em virtude da vultosa subtração de numerário), um dos investigados pela prática do delito resolve (porque sua participação na trama foi efetivamente demonstrada pela polícia), antes do recebimento da denúncia e depois de ter sido advertido de tal possibilidade legal pela autoridade policial, restituir os valores surrupiados, voluntariamente. A apreensão pela polícia do valor da subtração ensejará futuro reconhecimento, em sede de sentença condenatória, da causa de diminuição de pena obrigatória e objetiva do artigo 16 do Código Penal (arrependimento posterior). Veja que o julgador está compelido a diminuir a pena deste autor do crime, porque presentes todas as condições reclamadas pelo dispositivo legal. A situação é idêntica no caso de colaboração premiada: há condições (o acordo se aplica a crimes cometidos por organizações criminosas, a colaboração deve ser voluntária, o colaborador precisa ser assistido por advogado, o acordo deve se limitar a um ou mais dos incisos do artigo 4º da Lei 12.850/13 e a proposta estatal deve ser limitada a uma das benesses previstas no mandamento legal em comento) que, se cumpridas fielmente pelo colaborador (se não forem é possível manejo de retratação da avença), ensejarão obtenção de benefício acordado.
Assim como na representação pela quebra de sigilo das comunicações telefônicas, busca e apreensão domiciliar, prisão cautelar, dentre outras, o que o arcabouço legislativo brasileiro reclama, quando o pleito é manejado por delegado de polícia, é parecer (não vinculante, por óbvio) do Ministério Público. Caso exista eventual divergência do parquet com o acordo feito pelo delegado com o colaborador, ela deve se cingir a dois pontos: ilegalidade ou falta de voluntariedade. A discricionariedade na oferta da benesse deve caber também ao delegado quando o acordo for formalizado no curso das investigações (justamente porque a autoridade policial é quem preside o feito investigativo e quem tem, neste momento, mais condições de saber a proposta que trará mais frutos ao apuratório).
Entender pela ilegitimidade do delegado de polícia para propor acordos de colaboração premiada ou limitar a legitimidade da autoridade policial à concordância do Ministério Público significa construir barreira inexistente em nosso sistema de persecução penal, fazendo com que a polícia investigativa seja reduzida a apêndice do órgão estatal acusador. É subverter a separação e a especialização de funções estatais criada pela Constituição Federal de 1988, golpeando fortemente o combate à corrupção desenvolvido pela Polícia Federal e pelas Polícias Civis, que têm se utilizado da técnica investigativa de colaboração premiada em vários casos criminais.
Fica aqui uma última indagação (teratológica, como me parecem as duas possibilidades desenhadas no parágrafo anterior): caso prospere a proposta de vinculação do acordo feito pelo delegado de polícia ao entendimento do Ministério Público (como se o parecer favorável do MP fosse condição para conhecimento da avença pelo juízo competente), o que deve acontecer se o acordo de colaboração premiada for produzido no bojo de um PIC presidido por membro do parquet (Resolução 181/CNMP)? Parece-me que nessa situação, como o presidente do PIC atua em função análoga a do delegado de polícia, ele estaria “reduzido” à função investigativa (como querem os que dizem que acusar é mais que investigar) e o acordo deverá ser submetido a outro membro do Ministério Público (responsável pelo exercício da futura função acusadora, mais “nobre” que a do seu colega que firmou a avença) para oferta de parecer vinculante e, só com a concordância deste, é que poderia seguir ao juízo competente para homologação ou não. Como disse, teratológico.
Aguardemos o fim da discussão no STF, para saber se o instituto da colaboração premiada sofrerá golpe importante ou se será mantido tal qual desenhado na Lei 12.850/13 (em total sintonia com nosso sistema constitucional de persecução penal).
Notas
[1] SILVA, Márcio Alberto Gomes. Organizações Criminosas – Uma análise jurídica e pragmática da Lei 12.850/13, Lumen Juris, 2017, páginas 20/21.
[2] SILVA, Márcio Alberto Gomes. Op. cit., página 22.
[3] SANCHES CUNHA, Rogério e PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado, editora JusPodivm, 2013, páginas 37/39.