A inconstitucionalidade ou não do instituto da usucapião familiar

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04/01/2018 às 17:25
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Reflete-se sobre a suposta inconstitucionalidade do instituto da usucapião familiar, sob o prisma da chamada "culpa" daquele que abandona o lar, observando-se a eliminação deste elemento do nosso ordenamento jurídico.

1 INTRODUÇÃO

O tema abordado gerou muitas discussões entre juristas renomados, uma vez que o artigo 1.240-A no Código Civil, inserido pela Lei 12.424/2011[1], menciona a expressão “abandonou o lar”, que gerou controvérsias acerca da real intenção do legislador, pois a Emenda Constitucional 66/2010[2] aboliu o elemento “culpa” para fins de divórcio.

Assim, este artigo visa a analisar se o abandono do lar mencionado no art. 1.240-A do Código Civil confunde-se com o elemento “culpa”, este último, requisito para a dissolução do casamento no Código Civil de 2002 até a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010. Ressalte-se que o presente estudo teve como ponto de partida a análise de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, embora escassos, tendo em vista se tratar de instituto relativamente novo, além de artigos publicados na internet.


2  AS PRINCIPAIS MODALIDADES DE USUCAPIÃO

Neste tópico será realizado um breve estudo das principais modalidades de usucapião com o propósito de estabelecer os parâmetros utilizados pelo legislador quando inseriu no Código Civil de 2002 o art. 1.240-A, que trata da usucapião familiar.

Ao abordar as modalidades de usucapião, por se tratar de estudo relativo à usucapião familiar, cumpre salientar que trataremos aqui apenas no que tange à aquisição de bens imóveis, visto que o objeto da usucapião também poderá recair sobre bens móveis, o que não nos interessa no presente estudo.

2.1  USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA

A usucapião extraordinária está previsto no art. 1.238 do Código Civil, com a seguinte redação:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.[3]

É a modalidade de usucapião que requer prazo de 15 (quinze) anos, o maior de todas as modalidades, para que o possuidor possa adquirir o domínio sobre o bem imóvel, estando presentes os demais requisitos, ou seja, sem interrupção, nem oposição.

Note-se que, nesta modalidade de usucapião, o usucapiente não necessita de justo título nem de boa fé, que, segundo Carlos Roberto Gonçalves, “sequer são presumidos: simplesmente não são requisitos exigidos. O título, se existir, será apenas reforço de prova, nada mais”[4].

Ainda, o prazo poderá ser reduzido para 10 (dez) anos se o possuidor comprovar que utiliza o bem imóvel como sua moradia habitual, tendo nele realizado obras para este fim.

2.2  USUCAPIÃO ORDINÁRIA

Nesta modalidade de usucapião, se faz presente a necessidade da comprovação, pelo possuidor, do justo título e boa-fé, bem como de que detém a posse do bem por pelo menos 10 (dez) anos, para que adquira o domínio do bem imóvel, segundo dicção do art. 1.242 do Código Civil:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.[5]

Essa modalidade de usucapião é mais complexa que a anterior (usucapião extraordinária), tendo em vista que se exige a comprovação pelo possuidor do justo título e de boa-fé.

Justo título é o documento no qual o possuidor acredita ser válido para fins de transmitir-lhe a propriedade, mas que padece de algum vício que o torne anulável. Na lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, entende-se por justo título:

[...] é o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se, por acreditar que lhe outorga a condição de proprietário. Trata-se de um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça sua aquisição. Em outras palavras, é o ato translativo inapto a transferir a propriedade por padecer de um vício de natureza formal ou substancial.[6]

Entretanto, decorrido o prazo previsto no art. 1.242, caput, ou parágrafo único do Código Civil de 2002, os vícios do título serão sanados para o fim de usucapir.

A boa-fé deduz-se quando aquele que detém a posse acredita ser dono do bem imóvel, desconhecendo quaisquer vícios que venham obstar a transferência do domínio. Ressalte-se que, havendo dúvidas quanto à existência de vícios, não haverá, por óbvio, a presunção de boa-fé. Nesse sentido, preleciona Francisco de Paula Lacerda de Almeida:

[...] A ignorância ou erro indesculpável, as dúvidas e apreensões sobre a legitimidade do título de aquisição ou sobre o bom direito do alienante são impróprias para levar à aquisição, pois excluem a boa-fé.[7]

Observe-se que o prazo para a usucapião ordinária é de 10 (dez) anos e será reduzido à metade, na forma prevista no parágrafo único do artigo acima transcrito, se comprovado o cancelamento do registro após a aquisição onerosa do imóvel, como, por exemplo, quando tiver sido feito de forma equivocada e, mesmo assim, se o possuidor (usucapiente) residir no imóvel ou ali exercer atividade social e econômica.

2.3  USUCAPIÃO ESPECIAL

Além das modalidades de usucapião supramencionadas, podemos destacar, ainda, a usucapião especial, também chamada de usucapião constitucional, uma vez que prevista na Constituição Federal, e que se subdivide em usucapião especial rural e usucapião especial urbana.

2.3.1  Usucapião especial rural

Essa modalidade de aquisição por usucapião veio consagrada no art. 191 da Constituição Federal de 1988, conforme abaixo transcrito:

Art. 191- Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.[8] 

Assim, pela leitura do artigo em comento, verifica-se que não se exige apenas a posse do imóvel, mas também que aquele que ali se estabelece o torne produtivo, bem como ali resida com sua família, sendo o seu objetivo, segundo Carlos Roberto Gonçalves, “a fixação do homem no campo, exigindo ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar o usucapiente”[9].

2.3.2  Usucapião especial urbana

A usucapião urbana está prevista no art. 183 da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.[10]

Tal modalidade de usucapião é reproduzida integralmente pelo art. 1.240 do Código Civil, inclusive os parágrafos, sendo certo que aqui não se menciona o §3º da Constituição Federal, que veda a aquisição por usucapião dos imóveis públicos, assim como todas as outras modalidades de usucapião.


3  A USUCAPIÃO PREVISTA NO ESTATUTO DA CIDADE

Não se pode deixar de mencionar as modalidades de usucapião previstas no  Estatuto da Cidade, lei especial que regula dispositivo constitucional, e que entrou em vigor antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, quais sejam: a usucapião urbana individual e a usucapião urbana coletiva.

3.1  USUCAPIÃO URBANA INDIVIDUAL

O art. 9º da Lei 10.257/2001[11] (Estatuto da Cidade) vem com quase a mesma redação do art. 1.240 do Código Civil de 2002, com a diferença de que este último menciona “possuir, como sua área urbana”, enquanto aquele fala em “área ou edificação urbana”, uma vez que, por se tratar de lei destinada  à aquisição de moradia, não se pode falar apenas em área, sendo certo que se pode usucapir a área onde também esteja erigida construção para fins de moradia, não podendo ser ultrapassado o limite de 250 m², tanto para um como para o outro.

3.2  USUCAPIÃO URBANA COLETIVA

Trata-se de instituto de cunho social, que visa à regularização de moradias de grande concentração populacional e dirigido às pessoas de baixa renda, como se verifica da transcrição do art. 10 do Estatuto da Cidade:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.[12]

Os requisitos para a aquisição do bem imóvel por usucapião são praticamente os mesmos daqueles previstos na usucapião urbana, prevista no art. 183 da Constituição Federal, sendo que, aqui, se fala em área de mais de 250 m² e que os terrenos ocupados por cada possuidor não seja possível identificar.

Fica claro que tal modalidade de usucapião tem o objetivo de regularizar áreas de favela ou de grandes aglomerados habitacionais, onde não se possa haver a condição para a legalização do domínio do imóvel, situação esta cada dia mais frequente em nossa sociedade.

Ainda, mencione-se o fato de que a ação a ser proposta terá caráter coletivo, ou seja, todos aqueles que residam na área terão que compor o polo ativo da demanda, conforme prelecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

A lide é de caráter coletivo, envolvendo a regularização fundiária de áreas amplas, para que possa haver inserção do imóvel no plano de urbanismo municipal, prestigiando o princípio da função social da propriedade.[13]


4  USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL

 Pela sua importância, e considerando a inovação trazida pela Lei 13.105/2015 (Novo Código Civil), merece destaque a usucapião extrajudicial, previsto no art. 1.071 do referido Diploma Legal, que acrescentou à Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73)[14] o artigo 216-A, que por sua vez regula os procedimentos da usucapião a ser requerido perante o oficial de registro de imóveis.

O procedimento em tela visa a conferir celeridade aos procedimentos de usucapião, inviável na via judicial, devido ao grande volume de processos, que acarreta demora na prática dos atos processuais.

Os documentos e requisitos necessários estão elencados no art. 216-A da Lei 6.015/73, tendo sido, recentemente, regulamentada a usucapião extrajudicial pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Provimento CGJ nº 23/2016, publicado em 12 de maio do corrente ano no Diário de Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro[15]. Ressalte-se que, na usucapião extrajudicial, a parte interessada deverá estar acompanhada de advogado, conforme previsto no caput do art. 216-A da Lei 6.015/73.

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Outrossim, em havendo resistência ao direito de usucapir extrajudicialmente, por qualquer interessado, o oficial de registro de imóveis deverá remeter os autos ao juízo competente para o processamento e julgamento, devendo o requerente emendar a inicial a fim de adequá-la ao rito ordinário, conforme previsto no §10º do art. 216-A da Lei 6.015/73.


5  USUCAPIÃO FAMILIAR

A usucapião familiar, chamada também de usucapião por abandono do lar, usucapião conjugal, usucapião pró-família, entre outros, foi criado a partir do advento do Programa “Minha Casa, Minha Vida” pelo Governo Federal, cuja finalidade é permitir que famílias de baixa renda possam adquirir sua casa própria. O programa facilita o financiamento daqueles que comprovarem determinados requisitos, como a faixa de renda salarial, que será determinante para os subsídios a serem disponibilizados para a aquisição do imóvel.

A Lei 12.424/2011, a partir da criação do Programa “Minha Casa, Minha Vida", adicionou ao Código Civil o art. 1.240-A, o trata da proteção do cônjuge que permanece no imóvel após o abandono do lar pelo outro cônjuge, in verbis:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)

§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.[16]

Da norma em comento, extrai-se que o cônjuge que permanece no lar conjugal terá direito a usucapir o bem, desde que cumpridos os requisitos ali previstos, cumulativamente, quais sejam: exercer por 2 (dois) anos a posse direta do bem com exclusividade; estar o imóvel localizado em área urbana não excedendo o limite de 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados); ser o imóvel também de propriedade daquele que abandona o lar; e, finalmente, não possuir o cônjuge abandonado outro bem imóvel.

Quanto ao parágrafo primeiro acima transcrito, deduz-se que quem pretende usucapir o bem imóvel não poderá ter manejado ação de usucapião previsto no art. 1.240-A anteriormente.

Visa o presente instituto proteger o domínio sobre o bem imóvel do cônjuge que permanecer no lar conjugal, caso não seja possível conhecer o paradeiro do outro, tema que será esmiuçado adiante.

A usucapião familiar se aplica tanto em relação ao casamento, quanto em relação à união estável, podendo ser aplicado, ainda, nos casos de união homoafetiva, após recente decisão do Supremo Tribunal Federal em relação às uniões de pessoas do mesmo sexo, bem como previsto no enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil, in verbis:

A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas.[17]

É de se notar que a usucapião familiar tem prazo inferior às demais modalidades de usucapião, o que gerou a aprovação de parte da doutrina, como é o caso de Flávio Tartuce, que afirma que “deve ficar claro que a tendência pós-moderna é justamente a de redução dos prazos legais, eis que o mundo contemporâneo exige e possibilita a tomada de decisões com maior rapidez”[18].

Ressalte-se, por oportuno, que o prazo de 2 (dois) anos mencionado no referido artigo, tem que se dar de maneira ininterrupta, como também em outras modalidades de usucapião. Se, por exemplo, por algum motivo, o cônjuge que permanece no bem imóvel tiver que transferir sua moradia para outro lugar temporariamente, não fará jus ao benefício, pois descontinuada sua posse.

Portanto, ao retornar o cônjuge para o lar conjugal, o lapso temporal para que se possa adquirir o bem pela usucapião familiar, assim como em outras modalidades de usucapião, repise-se, deverá ter como termo inicial o dia em que retornou ao imóvel.

O art. 1240-A do Código Civil também menciona, como um dos requisitos para a concessão da usucapião familiar, que o usucapiente divida a propriedade do bem com seu ex cônjuge ou ex companheiro, ou seja, que sejam coproprietários do imóvel, portanto, a usucapião familiar alcança apenas o bem comum aos cônjuges ou companheiros, não havendo que se falar em usucapião de bem particular de apenas um deles.

Outra discussão acerca do instituto ora estudado se dá quanto ao modo de aquisição, se originária ou derivada. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

Os modos de adquirir a propriedade classificam-se segundo critérios diversos. Quanto à procedência ou causa da aquisição, esta pode ser originária e derivada. É da primeira espécie quando não há transmissão de um sujeito para outro, como ocorre na acessão natural e na usucapião. O indivíduo, em dado momento, torna-se dono de uma coisa por fazê-la sua, sem que lhe tenha sido transmitida por alguém, ou porque jamais esteve sob o domínio de outrem. Não há relação causal entre a propriedade adquirida e o estado jurídico anterior da própria coisa.

A aquisição é derivada quando resulta de uma relação negocial entre o anterior proprietário e o adquirente, havendo, pois, uma transmissão do domínio em razão da manifestação da vontade, como no registro do título translativo e na tradição.[19]

Conclui-se que o modo de aquisição originária da posse é comum a todas as modalidades de usucapião, uma vez que se presume a ausência de consentimento do proprietário anterior, ou seja, não existe vínculo entre eles, ao contrário do modo de aquisição derivada, quando há o mútuo acordo entre o proprietário e aquele que adquire o imóvel, como, por exemplo, na tradição.

Entretanto, quanto à usucapião familiar, há os que defendem ser a aquisição de modo derivado neste caso, como Luciano de Camargo Penteado:

[...] nos modos de aquisição derivados, existe uma vinculação causal, no ato da transferência, que faz com que a situação jurídica suceda-se sem alteração qualquer que não seja a subjetiva. Deste modo, de um lado ocorre uma espécie de alienação, na que o titular anterior transfere a posição jurídica para o novo titular, fazendo com que no ato de transferência sejam preservadas suas características e que também se possa falar de uma autêntica transferência, ou seja, de um ato causal segundo o qual se orienta o egresso e o ingresso da situação jurídica no patrimônio dos envolvidos.”[20]

Em outras palavras, entende o renomado autor que, apesar da ausência de vínculo familiar, aquele que abandona o imóvel é conhecido e coproprietário do bem e ao ser transferido o bem a quem nele permaneceu, este adquiriu o quinhão pertencente ao outro, embora não tenha havido a demonstração do ato da vontade ou tradição, ocorrendo a transferência dos direitos sobre o imóvel de forma tácita.

Outro aspecto que se destaca no art. 1240-A do Código Civil é a menção de que somente será cabível a usucapião familiar sobre imóvel urbano, não contemplando o legislador os imóveis localizados em área rural. Esta norma, por seu caráter restritivo, não comporta interpretação extensiva, apesar de escapar à razoabilidade a preferência legislativa de preterir situação jurídica idêntica. 

Ao se observar as dimensões do país, com muitas áreas rurais, não se mostra razoável que, mesmo nos casos de abandono de lar, fenômeno também recorrente nessas áreas, seja necessário obedecer aos requisitos do art. 1.239 do Código Civil, notadamente quanto ao prazo mais elevado para a aquisição.

Quanto à competência para o julgamento da usucapião familiar, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro não firmou posição em relação ao instituto, tendo em vista se tratar de matéria recente, cabendo destacar um único acórdão, que se posicionou no sentido de que, em se tratando de discussão quanto a direitos reais e não de avaliação de qualquer situação referente ao direito de família, o juízo competente para julgamento da ação é o juízo cível, conforme abaixo transcrito:

0011721-85.2016.8.19.0000 - CONFLITO DE COMPETENCIA 1ª Ementa

DES. MILTON FERNANDES DE SOUZA - Julgamento: 05/04/2016 - QUINTA CAMARA CIVEL 

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. USUCAPIÃO FAMILIAR. 1- Demanda visando aquisição originária da propriedade, matéria a natureza cível, como que se depreende de sua posição topográfica no codex. 2- Art. 1.240-A, inserido no ordenamento jurídico pela Lei nº 12.424, de 2011, que está albergado no Código Civil no capítulo "Da Aquisição da Propriedade Imóvel, na seção I "Da usucapião". 3 - Não obstante a situação fática permeie a análise da posse com exclusividade oriunda de abandono do lar, trata-se apenas da verificação dos requisitos necessários à configuração da usucapião, não da avaliação de qualquer questão atinente ao direito de família.[21]

Podemos acrescentar que o recente entendimento proferido na decisão do Acórdão da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro se deu por conta da alteração do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro, que dispunha em seu art. 85, inciso I, alínea a, e §1º:

Art. 85 - Compete aos juízes de direito, especialmente em matéria de família:

I – Processar e julgar:

a) as causas de nulidade e anulação de casamento, desquite e as demais relativas ao estado civil, bem como outras ações fundadas em direitos e deveres dos cônjuges, um para com o outro, e dos pais para com os filhos ou destes para com aqueles;

[...]

§ 1º - A acumulação com pedido de caráter patrimonial não altera a competência estabelecida neste artigo.[22]

A Lei Estadual 6.956/2015[23] alterou o art. 85 do CODJERJ, suprimindo o primeiro parágrafo, o qual estabelecia que o pedido de caráter patrimonial não alterava a competência das Varas de Família, o que pressupõe, agora, serem as Varas Cíveis competentes para o julgamento da ação de usucapião familiar, pelo menos no Estado do Rio de Janeiro.

Cumpre registrar que há outros poucos acórdãos da mesma Corte, todos no mesmo sentido do acima transcrito, que embora não destacados, para otimização do trabalho, foram também objeto de análise.

Em sentido contrário, Roberto Paulino de Albuquerque Júnior e Roberto Pinheiro Campos Gouveia Filho asseveram acerca da competência para o julgamento da ação de usucapião familiar:

[...] não será possível aplicá-lo sem reconhecer a relação familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro lado, é preciso igualmente fazer prova da separação de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para conhecer da dissolução do casamento ou união estável e da partilha de bens, evitando a remessa à vara cível de questões que lhe são estranhas.[24]

 Outros autores, bem como entendimentos jurisprudenciais proferidos por outros Tribunais, entendem que a usucapião familiar não trata da aquisição de nova moradia ou propriedade, não versa o instituto sobre direitos reais, mas discute-se tão somente a comprovação de que se houve o abandono do lar pelo cônjuge ou companheiro, concluindo-se, então, que a competência seria atraída para as Varas de Família.

Neste sentido, segue o entendimento jurisprudencial proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Piauí:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA POR ABANDONO DE LAR. RELAÇÃO FAMILIAR PRÉ-EXISTENTE. TUTELA DO DIREITO DE PROPRIEDADE. PROTEÇÃO DO LAR. JUÍZO DE FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA. 1. A usucapião especial urbana por abandono de lar, como todas as espécies de usucapião, visa à declaração de titularidade de um direito real, qual seja, o direito de propriedade sobre determinado imóvel. Todavia, esse direito real decorre de uma relação familiar pré-existente, de modo que a nova modalidade de usucapião visa não apenas à tutela do direito de propriedade, mas, principalmente, a proteção do lar familiar e daqueles que lá residem. 2. O art. 1.240-A, do CC, destina-se à proteção do direito real de habitação do cônjuge ou companheiro supérstite, já presente em nosso ordenamento jurídico, bem como à proteção do lar e da unidade familiar erguida pelo ex-casal durante o período da vida em comum. Daí porque o referido dispositivo elenca requisitos que se inserem no âmbito do direito familiar, o que impõe a análise, por parte do magistrado, das seguintes questões: (i) a existência de uma relação familiar (casamento ou união estável); (ii) o regime de bens que vigorava durante a existência da relação familiar; (iii) a ocorrência de separação de fato; (iv) o abandono do lar por parte de ex-cônjuge ou ex-companheiro; (iv) a co-propriedade do imóvel por ambos os ex-cônjuges ou ex-companheiros. 3. Diante de todo o exposto, entendo que o juízo competente para conhecer da ação de usucapião especial urbana por abandono de lar é o que responde pelos feitos da família, dispensando-se, em princípio, a utilização do rito especial. 4. E, tendo em vista que a Lei nº 3.716/79 (Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí), em seu art. 43, inc. II, determina que a 3ª Vara Cível da Comarca de Parnaíba – PI possui competência exclusiva para processar e julgar os feitos da família, resta claro que a ela deverá ser redistribuída a presente Ação de Usucapião Especial Urbana por Abandono de Lar. 5. Isto posto, julgo procedente o presente Conflito de Competência, no sentido de que a Ação de Usucapião Especial Urbana por Abandono do Lar (Proc. nº 0003328-81.2011.8.18.0031) seja processada e julgada pela 3ª Vara Cível da Comarca de Parnaíba – PI, que possui competência exclusiva para os feitos da família, nos termos do inc. II, do art. 43, da Lei nº 3.716/79.

(TJ-PI - CC: 00001421220128180000 PI 201200010001420, Relator: Des. José Ribamar Oliveira, Data de Julgamento: 18/04/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 03/05/2013)[25]

Assim, forçoso concluir que se afigura controversa a fixação da competência para o julgamento da ação de usucapião familiar, tendendo, entretanto, a doutrina e a jurisprudência consagrar como competente o juízo de família pelas razões expostas.

Por fim, impende salientar que a usucapião familiar não é direito somente daqueles que adquiriram bens imóveis por meio do programa “Minha Casa, Minha Vida”, uma vez que sua previsão encontra-se no art. 1.240-A do Código Civil, que gera efeito erga omnes, desde que preenchidos os requisitos previstos na norma.

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