A inconstitucionalidade ou não do instituto da usucapião familiar

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04/01/2018 às 17:25

Resumo:


  • O artigo 1.240-A do Código Civil, introduzido pela Lei 12.424/2011, refere-se à usucapião familiar e levantou debates jurídicos acerca da expressão "abandonou o lar".

  • A usucapião familiar não deve ser confundida com o conceito de culpa, que foi eliminado do processo de divórcio pela Emenda Constitucional 66/2010.

  • O instituto da usucapião familiar é considerado constitucional e visa garantir o direito à moradia, sem necessariamente atribuir culpa ao cônjuge que abandonou o lar.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6 O ELEMENTO “CULPA” COMO REQUISITO PARA CONCESSÃO DA USUCAPIÃO FAMILIAR

A polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca da interpretação do conceito jurídico indeterminado “abandono de lar”, requisito para a usucapião familiar, previsto no art. 1.240-A do Código Civil, gira em torno da concepção do elemento “culpa”, abolido pela Emenda Constitucional 66/2010.

Deste modo, deve ser analisado se a culpa confunde-se com a expressão “abandono de lar”.

Primeiramente, devemos entender o elemento culpa como requisito para a separação judicial, prevista no art. 1.572 do Código Civil:

Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.

§ 1º A separação judicial pode também ser pedida se um dos cônjuges provar ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua reconstituição.

§ 2º O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável.

§ 3º No caso do parágrafo 2º, reverterão ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial, os remanescentes dos bens que levou para o casamento, e se o regime dos bens adotado o permitir, a meação dos adquiridos na constância da sociedade conjugal.[26]

Portanto, para que fosse declarada a separação judicial, deveria o cônjuge imputar ao outro grave violação dos deveres do casamento, conforme previsto no art. 1.573 do Código Civil de 2002, a seguir:

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:

I - adultério;

II - tentativa de morte;

III - sevícia ou injúria grave;

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;

V - condenação por crime infamante;

VI - conduta desonrosa.

Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.[27]

Assim, para que houvesse a separação judicial, seria necessário que um dos cônjuges atribuísse ao outro a culpa pelo fim do casamento, com base nos artigos supramencionados, ou seja, “o autor precisa apontar o réu como “culpado”, indicando os motivos de separação (CC 1.573)”[28].

A decretação judicial da separação judicial, decorrido o prazo de um ano do trânsito em julgado da sentença, assim como a separação de fato por mais de dois anos, eram requisitos para a conversão em divórcio, se assim o requeressem um dos cônjuges, conforme previsto no §6º do art. 226 da Constituição da República Federativa do Brasil, antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, que alterou o referido artigo, suprimindo estas exigências, passando a vigorar com a seguinte redação: “§6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.

Deste modo, a Emenda Constitucional nº 66/2010 extinguiu, em tese, a figura da separação judicial do nosso ordenamento jurídico, não devendo mais, a partir de então, se perquirir a culpa pela dissolução do vínculo conjugal, tendo como efeito imediato o fato de que o divórcio passou a ser requerido de forma direta, revogando-se tacitamente os artigos 1.566 e 1.572 do Código Civil. Defensora desta tese, Maria Berenice Dias preleciona.

A verdade é uma só: a única forma de dissolução do casamento é o divórcio, eis que o instituto da separação foi banido - e em boa hora - do sistema jurídico pátrio. Qualquer outra conclusão transformaria a alteração em letra morta.[29]

Em direção oposta, outros autores insistem na tese de que a separação judicial persiste, uma vez que a Emenda Constitucional nº 66/2010 não foi clara ao deixar de mencionar a revogação dos artigos que tratam do assunto no Código Civil, o que pode ser entendido como a vontade consciente e livre dos interessados a escolha de separarem-se e, após decorrido o prazo legal, converter a separação judicial em divórcio, se assim o quiserem, ou, ao contrário, restabelecerem a sociedade conjugal em caso de dissipação das causas da separação, uma vez que, enquanto persistir a separação, os deveres matrimoniais ficam suspensos, não podendo os separados judicialmente contraírem núpcias, por exemplo, e, caso optem pelo divórcio após o prazo legal, só poderão restabelecer o vínculo matrimonial casando-se novamente.

Neste sentido, segue o entendimento do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, Lourival Serejo:

Não há incompatibilidade nem conflito com a Constituição em considerar em vigor a separação judicial. Se o texto constitucional tivesse o mesmo teor do Código Civil e dali fosse suprimida a separação judicial aí, sim, poder-se-ia falar em extinção da separação judicial no nosso ordenamento jurídico.

A separação judicial foi revogada como etapa para pleitear-se o divórcio, como meio, como condição, como fase. Afora essa hipótese, ela continua vigorando.  Agora o divórcio é direto e prescinde da separação judicial  e da contagem do tempo de separação de fato. Se o casal quiser apenas separar-se judicialmente (nem levanto a hipótese de motivo religioso), o Estado não poderá obrigá-lo a divorciar-se. O casal entende que não está amadurecida a ideia de divórcio, mas, por qualquer motivo, não quer mais permanecer junto nem “largado”. Pede a separação judicial enquanto não se decide. É uma situação possível e previsível.[30]

Ultrapassadas estas questões, tratemos agora da expressão “abandono do lar” e se esta se confunde com o elemento “culpa”, levando em conta que este último elemento, como dito anteriormente, foi banido do nosso ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional nº 66/2010, segundo entendimento majoritário.

Uma das principais críticas que se faz a esta nova modalidade de usucapião é exatamente quanto ao possível retorno do elemento “culpa”, ao mencionar o abandono do lar conjugal como requisito, que denotaria um “abandono culposo”, e que, por isso, estaria o art. 1.240-A do Código Civil eivado de inconstitucionalidade.

Alguns autores entendem que basta o abandono puro e simples para que fique configurado o direito de se obter a usucapião na modalidade ora estudada, dentre eles Luciano de Camargo Penteado: “De acordo com nosso entendimento, tal abandono não depende de formalidades, bastando prova de que não se trata mais do domicílio do ex-cônjuge ou ex-companheiro de forma cabal.”[31]

De igual forma, entende Antonio Moura Borges: “A finalidade da lei é privilegiar o cônjuge que permanece na sua dignidade e punir o cônjuge ou companheiro dissidente e que abandona o lar.”[32]

Desta forma, segundo estes dois entendimentos, presume-se a culpa do cônjuge ou companheiro que abandona o lar, chegando o segundo autor acima mencionado a falar em “punição”, reacendendo a norma inserta no art. 1.573 do Código Civil de 2012, que trata dos requisitos geradores do que se configura grave violação dos deveres do casamento, dentre os quais, o abandono voluntário do lar.

Em que pese o notório conhecimento jurídico dos autores mencionados, é certo que fazem parte da corrente minoritária.

A corrente majoritária entende que o abandono do lar mencionado no art. 1.240-A deve se dar de maneira não apenas física, mas concomitantemente com o abandono material.

Para melhor compreensão, segue o teor do Enunciado 499 da V Jornada de Direito Civil:

A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.[33]

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Mas referido enunciado traz em seu bojo, ao mencionar a expressão “descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais”, a possibilidade de novamente se perquirir a culpa como elemento fático para o direito de usucapir.

Entretanto, com o fim de eliminar de vez qualquer possibilidade de se imputar a “culpa” para fins de usucapião familiar, o Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil, sedimentou o entendimento de que não há que se falar neste elemento, uma vez que, segundo as razões adotadas para a proposição do Enunciado, não há que se adotar requisito que diz respeito ao Direito de Família:

O requisito “abandono do lar” deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499.[34]

Assim, pela análise do acima exposto, tem-se que o instituto em estudo é constitucional, e visa dar segurança jurídica ao cônjuge que permaneceu no lar conjugal, geralmente arcando com as despesas inerentes à manutenção da moradia e da prole, sem qualquer tipo de assistência material ou afetiva do cônjuge que abandonou o lar de forma injustificada e voluntária.

Importante salientar que, em face da realidade brasileira, há que se verificar a vontade daquele que abandonou o lar, se o fez com o ânimo de não mais retornar e deixou a família desprovida de qualquer assistência, material ou afetiva, porque, em caso contrário, ou havendo manifestação expressa de que não abre mão do bem imóvel, assim como intentar ação de divórcio, ou até mesmo de separação judicial, não há que se falar em usucapião familiar, uma vez que ausente o requisito principal para a aquisição da propriedade por meio deste instituto.

Ressalte-se, ainda, que aquele que abandonou o lar por conta de violência sofrida, seja física, moral ou psicológica, tão comum nos dias de hoje, não poderá, por óbvio, sofrer as consequências advindas da usucapião familiar, uma vez que poderá se utilizar, em caso da violência sofrida por mulher, e na maioria dos casos o são, da proteção advinda da Lei Maria da Penha.


7  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fica evidenciado que o presente instituto tem o escopo de garantir o direito à moradia, insculpida no art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, e que a inserção da expressão “abandono de lar” criou enorme celeuma no meio jurídico, uma vez que referida expressão poderia ressuscitar o elemento “culpa” como requisito para a aquisição da propriedade imóvel por meio da modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil.

Como vimos, tal discussão foi afastada pelo Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil, devendo ficar aqui consignado parte das razões expostas para o afastamento da perquirição de culpa: “Não há razão para introduzir na usucapião um requisito que diz respeito ao direito de família, sendo certo que a doutrina especializada no direito de família também tem procurado afastar tal análise.”[35]

Desta forma, pela análise das razões expostas, podemos concluir que o requisito “culpa” ainda permeia o Direito de Família, mas que vem sendo mitigado para adequar-se à Emenda Constitucional nº 66/2010.

Outra conclusão a que podemos chegar pela análise das razões expostas pelo Enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil é a de que ainda não está devidamente delimitada a competência para o processamento e julgamento das ações de usucapião familiar, isto porque fica claro que a discussão quanto ao instituto deve se dar no âmbito do Direito de Família, divergente, portanto, do acórdão proferido pela Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, colacionado neste estudo, devendo, com o decorrer do tempo e com o aprofundamento dos debates acerca da competência para o julgamento da usucapião familiar, a jurisprudência estabelecer a interpretação correta do preceito.

No que tange ao objeto do estudo, ou seja, se o instituto analisado neste estudo é constitucional, em que pese a opinião de poucos autores, podemos afirmar que sim, o instituto previsto no art. 1.240-A do Código Civil é constitucional, uma vez que o elemento “culpa”, como visto, não se confunde com a expressão “abandono de lar”, devendo a doutrina e jurisprudência firmar posição neste sentido.

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