Aequitas romana, equity no common law e equidade no direito positivo brasileiro: crítica ao sentido “negativo” da equidade

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08/01/2018 às 15:15

Resumo:


  • A equidade é tratada de forma "negativa" nos ordenamentos jurídicos, atuando como uma correção da lei nos casos em que esta é omissa ou não é suficiente para solucionar um problema concreto.

  • Nas abordagens da equidade romana, common law e direito positivo brasileiro, observa-se a importância da equidade como um princípio complementar ao sistema legal.

  • A equidade no direito contemporâneo deve ser entendida não apenas como uma correção da lei, mas como um princípio a priori da aplicação do direito, incorporando-se de forma mais abrangente ao processo decisório do julgador.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: Introdução 1. Aequitas romana 2. A equity no common law 3. A equidade no direito positivo brasileiro Considerações finais

Resumo: O presente ensaio é um complemento de texto anterior onde analisadas visões da equidade nas abordagens de Immanuel Kant, John Rawls, Ronald Dworkin e Amartya Sen. Enquanto naquele contexto buscava-se a demonstração da falta de um tratamento sistemático à equidade, aqui se busca chamar atenção para outro ponto para o que chamaremos de sentido “negativo” da equidade, isso é, sua função coadjuvante em relação à lei no momento em que se a entende como “corretora da lei”. Isso será realizado com a demonstração, sintética, de três abordagens da equidade: a aequitas romana, a equity no common law e a equidade no direito positivo brasileiro. Ao final, busca-se responder se a equidade, em seu sentido jurídico, deve ser entendida como um a priori ou um a posteriori no processo interpretativo de aplicação do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Aequitas. Equity (common law). Equidade. Sentido negativo. Interpretação.

Summary: Introduction 1. The roman aequitas 2. Equity in common law 3. Equity in Brazilian’s law Conclusion

Abstract: The present essay is a sequence from a previous text where we analyzed views of equity in the approaches of Immanuel Kant, John Rawls, Ronald Dworkin, and Amartya Sen. While in that context we sought to demonstrate the lack of a systematic treatment of equity, here we look to what we will call a “negative” sense of equity, that is, its secondary function in relation with the law, specially when one understands it as a “correction of the law”. This will be accomplished by synthesizing three equity approaches: the Roman aequitas, the equity in common law, and the equity in Brazilian’s law. At the end, we seek to answer whether equity, in its legal sense, should be understood as an a priori or an a posteriori in the interpretative process of jurisdiction.

Keywords: Aequitas. Equity (common law). Negative sense. Interpretation.


Introdução

O presente ensaio é um complemento de texto anterior[1], onde analisadas visões da equidade nas seguintes abordagens: o conceito de justiça em Aristóteles; a doutrina do direito de Immanuel Kant;  a “justice as fairness” de John Rawls; a igualdade como virtude em Ronald Dworkin; e a noção de capacidades e liberdades substantivas de Amartya Sen. Ao final daquele texto, realizou-se uma categorização da equidade em dois sentidos, propondo-se sua conexão para, ao fim, demonstrar um argumento: ainda que a equidade jurídica seja uma medida da justiça que coloca em acordo desigualdades postas em litígio, ela tem seu modus operandi designado pela equidade política.

Ainda naquele contexto, e em sede de conclusão, lembramos o Prefácio do seu livro Equity: in theory and practice, de Hobart Peyton Young, na passagem em que o autor refere três argumentos segundo os quais se poderia dizer que a equidade não existe:

Quando ensino este material para estudantes, advirto-os de que o tema não existe. Dentre outros temas não existentes, na verdade, a equidade ocupa uma posição de destaque porque ela falha em existir em vários aspectos diferentes. Os argumentos contra a sua existência tomam três diferentes formas. O primeiro é que a equidade é apenas uma palavra que pessoas hipócritas utilizam para esconder interesses pessoais. Ela não tem significado intrínseco e, portanto, falha em existir. O segundo argumento é que, mesmo que a equidade exista em uma certa noção, ela é tão subjetiva que não pode ser analisada cientificamente. Assim, ela falha em existir em sentido objetivo. O terceiro argumento é que, mesmo concedendo que a equidade pode não ser inteiramente subjetiva, não há teoria cogente sobre ela e, certamente, nenhuma que seja compatível com a moderna economia de bem-estar social. Em síntese, ela falha em existir em sentido acadêmico. (YOUNG, 1994, p. xi, tradução livre)

Sustentamos que, ainda que pareça um exagero dizer que a equidade não existe segundo qualquer dos argumentos apresentados, a passagem serve como um importante alarme, pois revela a verdade inelutável de que não há um tratamento sistemático da equidade, o que é válido tanto para o campo filosófico-político quanto para o campo jurídico. As três objeções revelam um modus operandi de trabalho com o tema da equidade: a necessidade da obtenção de seu conteúdo material, a consideração subjetiva justificada, a contextualização dos escritos antigos.

Neste texto, o objetivo é chamar atenção para outro ponto: aquilo que chamaremos de um sentido “negativo” da equidade, isso é, sua função coadjuvante em relação à lei no momento em que se a entende como “corretora da lei”. Isso será realizado com a demonstração, sintética, de três abordagens da equidade: a aequitas romana, a equity no common law e a equidade no direito positivo brasileiro. Ao final, busca-se responder se a equidade, em seu sentido jurídico, deve ser entendida como um a priori ou um a posteriori no processo interpretativo de aplicação do ordenamento jurídico.


1. Aequitas romana

Na mitologia romana, Aequitas, ou também Aecetia, era a deusa das trocas justas e dos comerciantes honestos e, em tal representação, da mesma forma que a Justitia, carregava uma balança na mão como sinal de equidade e fairness.

Tomás de Aquino (2001, p. 337), após referir os termos gregos epiikia para equidade e epiike para equitativo, ensina a etimologia da palavra: “En griego, se dice epiikes, como lo que es conveniente o adecuado, de epi (sobre) e icos (obediente) por que por la epiikia se obedece de modo más excelente, en cuanto se respeta la intención del legislador donde las palabras de la ley concuerdam.” Ou seja, para Tomás de Aquino, a própria etimologia da palavra equidade estaria de alguma forma ligada, de um modo geral, a uma situação de obediência e, de um modo particular, à obediência ao legislador e sua intenção.

Esta construção, contudo, não parece conferir com a série de significados que se costuma atribuir à palavra equidade na sua raiz etimológica. A começar, pelo fato de que o termo equidade, segundo consta, é originário de epieikéia (no grego, ἐπιείκεια), tendo por significados, por exemplo, razoabilidade (BOWMAN, p. 19), fairness (SMITH), mitezza (WILSON)[2], compreensão (LONG)[3]. Assim, tais significados não possuem sequer compatibilidade com a ideia de “obediência” a que se refere Tomás de Aquino e, em verdade, parecem o oposto de tal significado.

Ainda que aequitas não seja sinônimo de epieikeia, tratam-se de termos correlatos. Ambos designam um mesmo comportamento do juiz em relação à causa, um mandamento de correção e integração do direito, que deve atentar para o fato de que summum jus, summa injuria, e, portanto, exigem uma mitigação da aplicação mecânica da lei quando ela se revelar demasiado rígida e, por conseguinte, injusta. No campo jurídico, a aequitas teve, inclusive, aplicação anterior a epieikeia.

O romanista José Carlos Moreira Alves (2002, p. 78) refere a aequitas no direito romano como um ideal ético que existe, em estado amorfo, na consciência social e, quando necessário, tende a transforma-se em Direito Positivo.

Francisco dos Santos Amaral Neto (2004, p. 19) melhor aclara os primórdios do termo:

Com Cícero, o primeiro a usar o termo, aequitas tem o sentido de igual tratamento dos sujeitos, configurando-se a equidade e a justiça como conceitos similares. A justiça como orientação do juiz, do legislador, dando a cada um o que é seu, a aequitas, como regra moral do Direito romano. O Direito era a equidade estabelecida ius est aequitas constituta.

Na fase pós-clássica, tende-se a identificar a aequitas com o ius naturale, e este com os preceitos fundamentais do Cristianismo, pelo menos no plano teórico. No campo prático, passa a ter uma certa elasticidade e imprecisão, manifestadas na pluralidade de significados que se lhe atribui, como benignitas, humanistas, pietas, caritas, isto é, valores cristãos altamente admiráveis do ponto de vista religioso, mas reprováveis do ponto de vista jurídico. E são esses valores que ainda hoje rodeiam o conceito de equidade, dando-lhe uma certa indefinição conceitual e terminológica que dificulta a sua utilização no Direito. Com base nela, os imperadores romanos chegavam a derrogar princípios jurídicos.

Maria Helena Diniz, por seu turno, refere a correspondência entre equidade e justiça em Roma referindo que a equidade dividia-se em aequitas naturalis e aequitas civilis, sendo a primeira uma espécie de justiça absoluta ou ideal, objeto primeiro do direito, e a segunda o direito vigente, aquele que era aplicado pelos pretores (aequitas praetoris). É nesta segunda acepção que se pode dizer que a equidade projetava-se no Corpus Juris.[4]

Faz-se interessante observar que o direito romano, ao contrário do desenvolvimento contemporâneo do direito, não possuía uma separação entre uma Ciência do Direito e a prática jurídica, sendo que toda a atividade no direito era voltada para a aplicação justa da lei. Já existia em Roma, assim, a ideia de que a norma geral e abstrata poderia não servir para todos os casos de aplicação da lei (AMARAL NETO, 2004, p. 19-20), de modo que o direito fazia-se menos uma metodologia do que uma ars inveniendi serviente para a aplicação do bom e do equitativo.

Igualmente digno de nota que os romanos possuíam duas palavras diferentes para designar o que designamos em conjunto. Em Roma, falava-se em uma aequitas e em uma aequalitas. Em um e outro sentido é costumeiro encontrar referências aos desenvolvimentos que lhes deram Grócio. Em relação a esta (aequalitas), por exemplo, Franz Wieacker (1993, p. 334), historiando o direito privado, lembra que “a definição da aequalitas pressupõe uma teoria do valor, ponto em que Grócio se encosta simultaneamente à contínua tradição da ética econômica da antiguidade e à teologia moral [...]”. Assim, para um parâmetro de justiça nos contratos por exemplo, quando se queira identificar uma troca justa e igual (equitativa), seria necessária a construção de uma teoria dos valores, de modo a possibilitar uma referência a um preço justo pela “natureza das coisas”. Já no que toca àquela (aequitas), Grócio (apud MAXIMILIANO, 2005, p. 140) referia-se à equidade como “uma virtude corretiva do silêncio da lei por causa da generalidade das suas palavras”.

Carlos Maximiliano (2005, p. 141) refere que a equidade operou-se como um abrandamento do Direito Romano excessivamente rígido sem ela. Após, citando Miraglia, fornece um elenco bastante abrangente e esclarecedor de significações do direito sem e com equidade:

A frase – summum jus, summa injuria – encerra o conceito de Equidade. A admissão desta, que é o justo melhor, diverso do justo legal e corretivo do mesmo, parecia aos gregos meio hábil para abrandar e polir a idéia até então áspera do Direito; nesse sentido também ela abriu brecha no granito do antigo romanismo, humanizando-o cada vez mais. ‘Fora do oequum há somente o rigor juris, o jus durum, summum, callidum, a angustissima formula e a summa crux. A oequitas é jus benignum, temperatum, naturalis justitia, ratio humanitatis [...]’.”[5]

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Tal elenco de significações, embora parta da compreensão do Direito Romano, pode já nos servir para demonstração de como a compreensão da equidade espraiou-se do epicentro histórico do Direito Romano e veio a fornecer um mecanismo de utilização para os ordenamentos jurídicos em geral, especialmente os contemporâneos.


2. A equity no common law

 A equidade no common law, em parte, guarda o mesmo sentido de integração do direito que foi referida no tópico anterior e tem, igualmente, raiz romana. Todavia, desenvolveu-se nos países de common law não apenas a ideia segundo a qual, na lacuna da lei ou na abstração da lei, o juiz poderia lançar mão da equidade. Nesses países, criou-se um sistema jurisdicional próprio referente a um procedimento específico de utilização da equidade, separando-se a jurisdição de direito (cortes de common law) e a jurisdição de equidade (cortes de equity).

Smith, Bailey e Gunn (2002, p. 41-43) bem explicam, dentro do processo histórico, a formação destas divisões entre as Cortes e suas respectivas funções. Referem estes autores que, embora atualmente a grande maioria das Cortes serve para a resolução de disputas, a origem das Cortes pode ser apontada em instituições, regionais e centrais, sem distinção entre função de administração, legislação e adjudicação. Na Idade Média, no âmbito regional, havia assembleias da comunidade que resolviam disputas de acordo com o costume local. Estas assembleias passaram a ser baseadas em unidades administrativas estabelecidas pela Coroa. No âmbito central, havia a Curia Regis (Corte do Rei). Três momentos podem ser discernidos no início do desenvolvimento do sistema legal: 1. a administração da justiça era mais um poder adjunto do senhor feudal do que uma questão da comunidade como um todo; 2. mudança pela qual a administração da justiça passou a ser uma prerrogativa da Coroa; 3. a administração da justiça foi diferenciada das outras funções de governo. O fortalecimento da justiça real foi um processo gradual, que envolveu o estabelecimento de cortes reais distintas, a alocação de autoridades reais nas diversas localidades, temporários e permanentes, e o desenvolvimento de uma jurisdição de supervisão das cortes locais pelas cortes reais. Ao centro, três cortes do common law desenvolveram-se em diferentes épocas fora da Curia Regis: o Tesouro Nacional (Exchequer), a Súplica dos Comuns (Common Pleas) e o Corpo dos Magistrados do Rei (ou da Rainha) (King’s - or Queen’s - Bench). Elas ficavam no Westminster Hall. As linhas jurisdicionais entre essas cortes eram complexas. Paralelo ao desenvolvimento dessas cortes houve o desenvolvimento da Corte de Chancelaria e, particularmente, sua função de lidar com petições. Nos séculos XVI e XVII, um número de cortes conciliares (conciliar courts) também cresceu em importância, as quais assumiram a prerrogativa de lidar com questões anteriores ao Conselho Privado (Privy Council), mas que não eram atendidas pelo Chanceler. Aí se incluíam a Corte da Câmara Estrelada (Court of Star Chamber), a Corte de Petições (Court of Requests) e diversos desdobramentos regionais. Estas cortes eram vistas com suspeita pelas cortes da common law e foram abolidas em 1640.

Enquanto a jurisdição de common law era a justiça da Coroa, a jurisdição de equity era emanada pelo Chanceler da Coroa, normalmente um eclesiástico cuja função era a de guardar a consciência do rei.

O desenvolvimento da equity é ligado a uma falta de habilidade das cortes de common law, em razão de sua aderência estrita a formas predeterminadas de ação, a resolver todas as disputas legais. Assim, a Corte da Chancelaria, comandada pelo Chanceler, foi criada pelo rei com a função de administrar a justiça de acordo com princípios de fairness nos casos que o common law não teria como dar respostas ou daria respostas inadequadas. Apesar de a equidade e o direito não serem mais separados, estas noções ainda são utilizadas no direito do common law, seja na jurisprudência, seja em desenvolvimentos doutrinários (GIFFS, 1984).

Sobre o autor
Mártin Haeberlin

Doutor em Direito (PUCRS/Universidade de Heidelberg, 2014). Mestre em Direito do Estado (PUCRS, 2007). Pós-Doutorado em andamento em Economia (UFRGS, desde 2016), com bolsa da CAPES (Processo n. 23038.004864/2015-63). Pesquisador Visitante do Max-Planck-Institut fur auslandisches offentliches Recht und Volkerrecht (2013). Professor de Teoria Geral do Direito e de Direito Administrativo (Laureate/UniRitter). Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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