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Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis

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07/03/2005 às 00:00
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6. A nova alienação fiduciária de bem móvel face à Constituição Federal

É princípio basilar do Direito, erigido a dogma de calibre constitucional, que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV). Entre muitas coisas, esse princípio, inspirado na Magna Carta inglesa, quer dizer que todos têm direito à uma decisão proferida em processo regular, válido e eficaz, com força de coisa julgada. Trata-se de norma suprema que todas as leis devem se curvar. Não obstante, o novo § 1º, do artigo 3º, do Decreto Lei n. 911/69, ignorou-a por completo ao prever a consolidação da propriedade e da posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor, dentro de cinco dias após a execução da liminar de busca e apreensão.

Eqüivale dizer: o credor promove a ação de busca e apreensão, que não é cautelar nem provisória, alega mora do devedor, obtém liminar, a executa recebendo initio litis o bem e, num qüinqüídio, tem sua pretensão material integralmente satisfeita.

Note que isso se dá antes mesmo do escoamento do prazo do réu para apresentar resposta, porquanto a citação se dará no ato da execução da liminar e, enquanto se confere cinco dias para a consolidação liminar da propriedade, confere-se o prazo de quinze dias para a resposta, de tal sorte que depois de verificado o termo final daquele, restarão ainda dez dias para findar-se o prazo da resposta do réu.

Pior será na hipótese em que logrou-se a busca e apreensão do bem, mas não a citação do réu. Neste caso, antes mesmo de o réu saber formalmente que contra ele tramita ação de busca e apreensão, será privado de seu bem!

Data venia, atinge as raias do absurdo, principalmente se considerado que se está diante de uma decisão interlocutória (que decide incidentes do processo) deferida initio litis e inaudita altera parte que, olvidando sua essência de provisória, termina por produzir efeitos de coisa julgada material, como se de sentença meritória irrecorrida se tratasse.

Finalmente, mister se faz consignar a lição dos tratadistas mais modernos, que timbram em ver no devido processo legal mais do que uma garantia subjetiva do indivíduo, uma tutela do próprio processo.

Com efeito, já se disse alhures que cada vez se consolida mais a idéia de que sobre os interesses unilaterais das partes, respeitáveis sem dúvida, sobrepaira, no entanto, um de maior amplitude, que é o da tutela do próprio processo. Desse modo, as garantias constitucionais do devido processo legal convertem-se de garantias exclusivas das partes em garantias da jurisdição e transformam o procedimento em um processo jurisdicional de estrutura cooperatória, em que a garantia de imparcialidade da jurisdição brota da colaboração entre partes e juiz. A participação dos sujeitos no processo não possibilita apenas a cada qual aumentar as possibilidades de obter uma decisão favorável, mas significa cooperação no exercício da jurisdição para cima e para além das intenções egoísticas das partes, a estrutura dialética do processo existe para reverter em beneficio da boa qualidade da prestação jurisdicional e da perfeita aderência da sentença a situação de direito material subjacente.

Inconstitucional, pois, a consolidação liminar da propriedade nas mãos do credor fiduciário.

Noutro aspecto a eiva da inconstitucionalidade atinge a Lei n. 10.931/04. Desta feita, deslembrou ela também que o inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. É a consagração do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

Esse princípio estrutural não foi inteiramente observado pelo novo § 3º, do artigo 66-B, da Lei n. 4.728/65, i. é., pelo artigo 55, da Lei n. 10.931/04, na medida em que permitiu a venda do bem objeto da propriedade fiduciária e independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial.

A redação pareceria inofensiva e mera repetição da regra proclamada no revogado artigo 2º, do Decreto Lei 911/69, o que bastaria manter o prestígio ao atendimento consolidado a respeito. Só que agora outro é o sistema. Antes, não havia consolidação liminar da propriedade. Outrossim, na regra revogada previa-se que o apelo não impediria a venda extrajudicial do bem e a consolidação da propriedade e posse, o que justificaria aduzir que "a venda prevista no artigo 2º, do Dec-Lei 911/69 só pode ocorrer depois de proferida a sentença que consolida a propriedade e a posse" (JTAERGS77/98).

Nesse passo, a venda do bem feita pelo agente fiduciário, sem possibilidade de defesa pelo devedor, ofende no mínimo o monopólio da jurisdição que detém o Poder Judiciário. A continuar nesta toada, voltaremos a aplaudir decisões que tisnaram de inconstitucional a alienação extrajudicial, pois, "se permitido ao credor fazer essa alienação, estará ele exercendo a atividade jurisdicional de execução, que é privativa do judiciário" (Lex-JTA 153/55).

Não se vislumbra, diante da Constituição Federal, como compatibilizar a alienação extrajudicial do bem, que enseja verdadeira execução extrajudicial e representa entulho do regime autoritário, com a necessidade do devido processo legal, constitucionalmente imposta. Ao que consta, o Pretório Excelso teve a oportunidade de examinar por mais de uma única vez o tema após a promulgação da nova Constituição, pelo que é de todo interessante que sejam levados àquela Colenda Corte novos recursos.

Surge, então, vinculado a esta matéria, o tema sobre a subsistência, ou não, do Decreto-Lei n. 70/66, viabilizador da execução hipotecária à margem da atuação do Estado-Juiz. A jurisdição é ato próprio à soberania do Estado, valendo notar o tipo do artigo 345, do Código Penal, no que veda a autotutela por particulares fora dos casos de defesa imediata, ainda que procedente o pleito. Matéria que se encontra sumulada pelo Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, in verbis: Súmula 39: São inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do Decreto - lei n.º 70 de 21.11.1996. Esses dispositivos, frise-se, permitiam ao banco a alienação extrajudicial do imóvel hipotecado, vinculado a contrato de financiamento imobiliário.

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Cumpre ter presente que a glosa ocorrida diz respeito à circunstância de o § 3º, do artigo 66-B, da Lei n. 4.728/65 (por força do artigo 55, da Lei n. 10.931/04) não contemplar o contraditório, viabilizando, assim, a execução unilateral. A Constituição Federal de 1988, democrática sob todos os ângulos, deu ênfase ao princípio do contraditório, colando-o aos processos em geral.

Não é crível que uma Lei Federal, sancionada em pleno Estado Democrático e de Direito, tem em seu âmago um ranço pior que o de um Decreto-Lei instituído no auge do regime militar, espelhando toda sorte de opressão que marcou o período, felizmente superado. Contudo, verifica-se que os desavisados fragmentos desse regime ainda perduram, apesar da cristalina inconstitucionalidade.

A nova ordem comete violência contra o direito constitucional à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal (Constituição Federal art. 5°, LIV e LV). A ampla defesa importa, antes de mais nada, na prévia audiência, direito maior que não se coaduna sequer com os efeitos da preclusão da notificação extrajudicial, de iniciativa do agente fiduciário, bem assim com a anulação de defesa do devedor.

E o devido processo legal, sem sombra de dúvidas, seria aquele instaurado através da via judicial, ou, no dizer do emérito Celso Ribeiro Bastos, o direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente um direito, por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária. [4] No caso vertente, é óbvio que se viola, de forma repulsiva, princípios fundamentais de nossa Carta Magna.

Colima-se, portanto, com o devido processo legal, a aplicação da lei. O princípio em tela se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado e dos particulares.

E mais. A nova ordem legal atribui ao agente fiduciário a presidência do processo de execução, subtraindo do Poder Judiciário função indelegável e inerente ao Juiz Natural, provida e investida de garantias constitucionalmente dispostas. É evidente que somente o Poder Judiciário é capaz de assegurar a imparcialidade no tratamento das partes. Entendimento contrário consagra a autotutela, o que se afirma na exata medida em que, mediante simples notificação, sem qualquer possibilidade de defesa, o credor priva o devedor do uso dos direitos e ações sobre o bem, ou seja, vende o bem alienado passando por cima dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da inafastabilidade da tutela jurisdicional.

A única conclusão possível é que a alienação privada do bem do devedor fiduciário atenta contra diversos princípios constitucionais retro apontados. Essas são razões mais do que suficientes para se afirmar que a pretendida alienação extrajudicial até mesmo independentemente de leilão e antes de processo ou sentença é juridicamente impossível ante a evidência dos parâmetros da Carta Magna.


Notas

1 Marcus Vinicius Rios Gonçalves. Novo curso de direito processual civil, p. 9.

2 Pontes de Miranda. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 4

3 Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal, p.54.

4 Celso Ribeiro Bastos. Comentários a Constituição do Brasil, 2º volume. Saraiva. 1989. p.261.

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Sobre o autor
Alex Sandro Ribeiro

advogado, escritor e consultor, pós-graduado em Direito Civil pelo UniFMU, membro do 4º Tribunal de Ética da OAB/SP, consultor especializado em microempresas e empresas de pequeno porte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Alex Sandro. Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 607, 7 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6406. Acesso em: 27 abr. 2024.

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