Capa da publicação Normas, princípios e regras no ordenamento jurídico brasileiro
Capa: Sora

Normas, princípios e regras no ordenamento jurídico brasileiro

14/02/2018 às 20:51

Resumo:


  • As normas jurídicas são regras que compõem o ordenamento jurídico e têm a função de regular a conduta das pessoas, podendo ser gerais ou abstratas, e se apresentam de forma imperativa e coercitiva, garantindo a ordem e a paz social.

  • Princípios e regras são espécies de normas jurídicas que possuem características distintas: princípios são fundamentos norteadores universais do sistema jurídico, enquanto regras são normas que estabelecem obrigações específicas, resolvendo-se conflitos entre elas por meio de técnicas de interpretação.

  • O Garantismo Penal é um movimento que surge com influência do Iluminismo, caracterizado pela racionalidade e pela ciência, visando transformar a sociedade e limitar o poder estatal, garantindo os direitos dos cidadãos e se manifestando como um modelo normativo de Direito, uma teoria crítica do Direito e uma filosofia política.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

As normas jurídicas impõem condutas, mas os princípios orientam e limitam o poder estatal. O que distingue normas e princípios no garantismo penal?

1. Normas jurídicas

As normas jurídicas podem ser definidas como o conjunto de preceitos que integram o ordenamento jurídico, cuja função é regulamentar a conduta social. Representam uma imposição normativa expressa em fórmula jurídica, podendo apresentar a estrutura de preceito (comando) e sanção (consequência pelo descumprimento). Seu objetivo principal é resguardar a ordem e a paz social, embora não se confundam diretamente com os conceitos abstratos de segurança ou justiça, aos quais visam servir. Norma constitucional, nesse contexto, é toda aquela que integra a Constituição, possuindo valor jurídico supremo e hierarquia superior às demais normas do ordenamento.

As normas gerais aplicam-se a uma multiplicidade de relações jurídicas, destinando-se, em regra, a todos os cidadãos sem distinção específica, possuindo amplo alcance. Contrapõem-se às normas especiais, que se aplicam a situações ou grupos particulares.

A norma apresenta-se frequentemente em formato imperativo, contendo um comando que impõe determinado tipo de conduta a ser observado; sua imperatividade traduz um dever-ser, uma obrigação de conduta. Também pode apresentar caráter coercitivo, prevendo ou permitindo o uso da força (coerção) para garantir seu cumprimento. Essa coercibilidade é uma prerrogativa do Estado para fazer valer sua função de administrar e gerir o bem comum.


2. Princípios, regras e o garantismo penal

A distinção entre princípios e regras, bem como sua função, transcende o Garantismo Penal, embora seja relevante para sua compreensão. Este tópico explora essa diferenciação sem a pretensão de esgotar o tema.

2.1. Princípios e regras

A norma jurídica é o gênero do qual princípios e regras são espécies. Embora compartilhem características normativas, possuem distinções qualitativas importantes.

No campo do direito, como em outros, princípios são tidos como fundamentos, instrumentos norteadores que dão sentido ao sistema. Nesse sentido, a definição de Silveira Bueno (2000, p. 624) é elucidativa, ao definir princípio em diversas acepções como “momento em que alguma coisa tem origem; origem; começo; teoria, conceito; estreia; razão, base; preceito”.

Dessa forma, os princípios colocam-se como normas essenciais às estruturas basilares de um sistema, constituindo seu fundamento necessário e proporcionando a interpretação e aplicação sistemática do direito positivo. Apresentam-se como normas fundamentais do sistema, à medida que são usados como parâmetros de natureza interpretativa, atuando também como instrumentos de integração para suprir lacunas jurídicas.

Nesse sentido, Miguel Reale esclarece com brilhantismo que:

(...) o legislador, por conseguinte, é o primeiro a reconhecer que o sistema das leis não é suscetível de cobrir todo o campo da experiência humana, restando sempre grande número de situações imprevistas, algo que era impossível ser vislumbrado sequer pelo legislador no momento da feitura da lei. Para essas lacunas há a possibilidade do recurso aos princípios gerais do direito, mas é necessário advertir que a estes não cabe apenas essa tarefa de preencher ou suprir as lacunas da legislação. (REALE, 2002, p. 304).

Os princípios estruturam todo um complexo de convicções, ideias ou normas, fundados em uma ideia central da qual outras noções ou normas derivam ou se subordinam. Ainda segundo Reale (2002, p. 305):

“são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua integração e compreensão quer para a elaboração de novas normas”.

É possível argumentar que mesmo as regras escritas derivam de princípios fundamentais subjacentes. Contudo, muitos princípios não são positivados expressamente, e sua aplicação pode não ser tão direta quanto a das regras.

Por serem referências fundamentais, os princípios imprimem sentido lógico e harmônico ao sistema, permitindo a compreensão de sua organização, pois permeiam o sistema em seus fundamentos. Dada sua importância, alguns princípios foram positivados pelo legislador, deixando de ser apenas standards para incorporar de forma expressa o ordenamento. Outros inspiram a redação das leis, como os princípios da isonomia e da irretroatividade da lei (esta última protegendo o direito adquirido).

Os princípios são construídos por meio de enunciados, possuindo conteúdo finalístico ou axiológico (valorativo), cuja aplicação envolve ponderação de valores. Possuem elevado grau de abstração, permitindo aplicação em diversas situações. Para solucionar colisões (antinomias aparentes), os princípios se valem da técnica da ponderação: quando confrontados, um deles pode ter peso maior no caso concreto, mas o outro permanece válido no ordenamento, sem que um anule o outro.

Ressalta-se que os princípios não são meros preceitos morais ou sociais, mas possuem natureza normativa apta a integrar a experiência jurídica e o próprio Direito.

Por outro lado, as regras são normas que estabelecem, de forma mais precisa, obrigações, permissões ou proibições. Possuem caráter mais impositivo e descritivo de condutas específicas. Conforme Ronald Dworkin (1999, p. 64):

(...) as regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicáveis. Trata-se se um tudo ou nada. Desde que os pressupostos de fato aos quais a regra se refira (...) se verifiquem, em uma situação concreta, e sendo ela válida, em qualquer caso há de ser aplicada. (DWORKIN, 1999, p. 64).

Outra característica das regras é que são normas descritivas de condutas ou hipóteses de fato, aplicadas por meio de subsunção (enquadramento do fato à norma).

Pode-se afirmar, portanto, que regras e princípios coexistem em todo ordenamento jurídico, garantindo segurança jurídica e viabilizando os valores do sistema. Para Alberto do Amaral Júnior (1993, p. 27), “princípios são comandos genéricos que estabelecem um planejamento para o legislador como para o intérprete”. À luz dessa explicação, nota-se que o princípio comporta uma quantidade indeterminada de aplicações, enquanto a regra é elaborada para um número mais determinado de situações.

Partindo dessa premissa, Luiz Flávio Gomes (2005, s.p.) aduz que:

o Direito se expressa por meio de normas. As normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação; quando ocorre essa situação, a norma tem incidência; quando não ocorre, não tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo ou nada (Dworkin). Quando duas regras colidem, fala-se em “conflito”, ao caso concreto uma só será aplicável, pois uma afasta a aplicação da outra. O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a anterior etc... Princípios são as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico, ou parte dele. Seu espectro de incidência é muito mais amplo que o das regras. Entre eles podem haver “colisão”, não conflito. Quando colidem, não se excluem. Como “mandados de otimização” (Alexy), sempre podem ter incidência em casos concretos, às vezes concomitantemente dois ou mais deles. (GOMES, 2005, s.p.).

Finalmente, ressalta-se que, apesar das distinções, não se deve conceber uma separação absoluta entre princípios e regras. Ambos são essenciais e complementares para a completude e funcionamento do sistema jurídico.


3. Garantismo penal

No ordenamento jurídico brasileiro, as ideias associadas ao Garantismo Penal moderno têm raízes que remontam ao final do século XVIII, fortemente influenciadas pelo Iluminismo. Esse movimento irradiava inspiração em diversos segmentos, fornecendo bases para transformações profundas nas ideias jurídicas, cujos fundamentos permeiam o pensamento jurídico atual.

O Garantismo, nesse contexto, pode ser associado a um movimento que alocou a ciência e a racionalidade no centro do pensamento filosófico, com o ideal de transformar a sociedade até então marcada pela tradição medieval e pelo poder absoluto do Estado e da Igreja.

Nas palavras de Luigi Ferrajoli (2002, p. 29), considerado um dos principais teóricos do Garantismo moderno:

os princípios sobre os quais se funda seu modelo garantista clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes, a presunção de inocência – são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo. (FERRAJOLI, 2002, p. 29).

O Garantismo pode ser compreendido em três acepções interligadas: “como um modelo normativo de Direito, como uma teoria crítica do Direito, e como uma filosofia política” (FERRAJOLI, 2002, p. 684).

  • Como modelo normativo de Direito, o Garantismo se mostra como um sistema que impõe limites e deveres ao poder estatal (especialmente o punitivo) para a efetivação e conservação dos direitos dos cidadãos, visando consagrar a aplicação das normas constitucionais nas práticas jurídicas do Estado. Conforme leciona Ferrajoli:

    precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade”, próprio do Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É, consequentemente, “garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente. (FERRAJOLI, 2002, p. 684).

  • Como teoria jurídica, o Garantismo designa uma análise da "validade" e da "efetividade" como categorias distintas entre si e também distintas da mera "existência" ou "vigor" das normas. Nesse sentido, Ferrajoli aponta que:

    a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separado o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tremendamente garantistas) e práticas [...] que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividades (e invalidade) das segundas. (FERRAJOLI, 2002, p. 694).

  • Como filosofia política, o Garantismo exige a justificação ético-política do Estado e do Direito, implicando o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais como finalidade última (externa) do próprio Direito e do Estado.


4. A transformação do Estado Liberal para o Estado Democrático de Direito

Ao longo do tempo, transformações no Direito Constitucional e na Teoria da Constituição deram origem a novas concepções. Essas mudanças promoveram uma maior vinculação entre o indivíduo e o Estado, focada na conservação e propagação de valores jurídicos fundamentais.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Como bem enfatiza Luís Roberto Barroso (2009, p. 45):

a Constituição é um instrumento do processo civilizatório. Ela tem por finalidade conservar as conquistas incorporadas ao patrimônio da humanidade e avançar na direção de valores e bens jurídicos socialmente desejáveis e ainda não alcançados. (BARROSO, 2009, p. 45).

Essas transformações foram precedidas por intensos debates teóricos e filosóficos, inspirados pelo pensamento iluminista, que desafiou as estruturas de poder anteriores. Ainda segundo Barroso (2009, p. 9):

o Estado moderno surge no início do século XVI, ao final da Idade Média, sobre as ruínas do feudalismo. Nasce absolutista, por circunstância e necessidade, com seus monarcas ungidos por direito divino. O poder secular liberta-se progressivamente do poder religioso, mas sem lhe desprezar o potencial de legitimação. (BARROSO, 2009, p. 9).

Os ideais defendidos pela Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – tiveram impacto avassalador. Romperam com a ideia de Estado vinculado ao poder divino, predominante no Absolutismo, substituindo-a pela noção de Contratualismo e soberania popular. Como observa Cinthia Robert (2006, p. 25):

com a Revolução Francesa, chegou ao seu auge a chamada Crise do Antigo Regime (...). A Revolução, iniciada na França em 1789, representou um golpe mortal no Absolutismo, no poder da Igreja e da Nobreza, notas características do Antigo Regime. (ROBERT, 2006, p. 25).

A partir de então, um modelo liberal de Estado de Direito foi concebido e difundido. A concepção de Constituição como norma hierarquicamente superior foi tomando forma, visando consagrar a segurança jurídica e limitar o poder estatal. Nesse pensamento, Maurizio Fioravanti (1999, p. 103) destaca o papel do poder constituinte exercido nas revoluções americana e francesa:

Las revoluciones del fin del siglo XVIII, primero la americana y después la francesa, prepresentan em este sentido um momento decisive em la historia del constitucionalismo, porque sitúan em primer plano um nuevo concepto y uma nueva práctica que están destinados a poner em discusión la oposición entre la tradición constitucionalista y lá soberania popular. Se trata, em poucas palabras, del poder constituyente que los colonos americanos ejercieron primero em 1776, com la finalidade de declarar su independencia de la madre pátria inglesa y, después, em los años siguientes, com la finalidade de poner em vigor las constituciones de los distintos Estados y la Constitución federal de 1787. Poder constituyente que los mismos revolucionários franceses ejercitaron a partir de 1789, com la finalidade destruir las instituciones del Antiguo Régimen y de generar una nueva forma política. (FIORAVANTI, 1999, p. 103).

Nota-se o surgimento de:

“embrionários direitos do homem, colocados a uma compreensão liberal que se alargou a posteriori no instante da inclusão de direitos sociais em diversas Constituições” (ROBERT, 2006, p. 25).

Essa base jusnaturalista e contratualista levou à perspectiva de que o poder estatal deveria ser limitado e controlado pelo Direito (rule of law), significando que toda manifestação de poder pressupõe a existência de normas jurídicas pré-estabelecidas.

Seguindo a linha ascendente iniciada com a Revolução Francesa, os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade proporcionaram o surgimento de um rol de direitos conhecidos como gerações ou dimensões de direitos fundamentais. Para Paulo Bonavides (2011, p. 563):

“os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e quantitativo”.

A primeira geração (ou dimensão) de direitos trata daqueles ligados ao valor liberdade, abrangendo direitos civis e políticos. Impõem, primordialmente, uma abstenção estatal (atuação negativa), sendo direitos individuais oponíveis ao poder público. Conforme os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 46-47):

os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são produto peculiar do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do poder estatal. São, por este motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, direitos de resistência ou de oposição. (SARLET, 2012, p. 46-47).

Essa exposição destaca que, nessa primeira geração, assumem particular relevância os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Conforme Bonavides (2011), pode-se afirmar que os direitos de primeira geração “são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos”. Possuem, predominantemente, caráter negativo por imporem, de maneira direta, uma obrigação de não fazer (uma abstenção) ao Estado, seu principal destinatário.

O garantismo penal busca fazer com que a intervenção estatal respeite os direitos fundamentais, começando pelas liberdades individuais de primeira geração. A distinção entre regras e princípios constitui ferramenta crucial para a efetivação dessas garantias.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos