1.2 O campo da responsabilidade penal: objetiva e subjetiva
Aqui se nota, definitivamente, o principal diferencial existente entre o sistema romano-germânico e o sistema do common law, que é o campo da responsabilidade penal: objetiva e subjetiva. Àquele levanta a espada do garantismo penal sem realizar a mínima distinção entre criminalidade clássica, ou convencional e a criminalidade moderna de significado totalmente diferente, sustentando a todo custo uma vigência da responsabilidade subjetiva no direito pátrio. Este sem nenhum apreço pela responsabilidade subjetiva, também não realiza uma identificação diferencial para ambos os fenômenos criminógenos, apregoando por uma responsabilidade objetiva.
Para o sistema romano-germânico, o positivismo do século XIX exterioriza sua preocupação no âmbito do direito processual, com o controle e manutenção dos princípios constitucionais de garantia. Tal preocupação se realiza, fundamentalmente, logo a partir do procedimento acusatório, assim como no seu desenvolvimento. O que quer significar a existência de uma vedação constitucional de um procedimento acusatório nitidamente genérico. Numa interpretação à luz do artigo 41 do Código de Processo Penal, LUIZ FLÁVIO GOMES vai dizer que "se considerarmos que o acusado se defende do crime imputado na peça acusatória, não do artigo de lei invocado (...), desde logo se vislumbra a necessidade imperiosa de a acusação narrar os fatos constitutivos do fato punível" (15) No mesmo sentido a lição de HUGO DE BRITO MACHADO "nos termos do art. 41, do Código de Processo Penal, a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifica-lo. É evidente que se mais de uma pessoa participa da prática ilícita, a participação de cada um é circunstância do fato criminoso e como tal deve constar da denúncia. Assim, em se tratando de fato ocorrido no âmbito de uma empresa, entendemos ser necessária a indicação específica da conduta individual de quem tenha participado da prática delituosa". (16)
Por um lado, assiste razão a ambos os pensadores pátrio, por motivos tanto de ordem processual quanto material. A narração detalhada do fato acontecido é uma exigência não apenas processual, mas, principalmente, de caráter constitucional, de efetivação do princípio do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), por outro lado, uma exigência de cunho material pautada no princípio da culpabilidade normativa, caracterizada por uma apuração de culpa do fato. Extinguindo-se, assim, a culpabilidade de autor. Por outro, note-se que se está a falar em todo o trabalho dissertativo da mudança de paradigma pela qual passa o direito, seja como ciência ou como sistema de normas. Uma aplicação garantista ao extremo como a que é praticada no direito pátrio tem ratificado uma rede de impunidade sem precedentes na história do direito. A criminalidade moderna (seus agentes) tem perfeita ciência de que se encontra amparada por um patrimônio dogmático jurídico-penal que lhe proporcionará um verdadeiro anteparo na efetivação de suas condutas. Ao mesmo tempo que conta com uma ineficiência total por parte das agências governamentais, sem recursos, com uma atuação pautada em instrumentos metodológicos jurássicos e uma seara de corrupção que não se faz idéia da dimensão. Mas é bom lembrar, que essa espécie de criminalidade nunca foi objeto de preocupação do Estado nacional, e também até pouco tempo atrás não representava parte da clientela do sistema de justiça criminal. (17)
Daí LUIZ FLÁVIO GOMES lecionar no sentido de que, "o dever ser normativo estabelece um veto quanto às acusações genéricas, tanto no plano do direito interno (art. 41, do CPP), quanto do direito internacional (Pacto Internacional de Direitos Civis, 1966 – Dec 592/92; e, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969 – Dec. 678/92), e do direito constitucional pátrio (art. 5º, incis. LIV e LV, da CF), não importando como se deu a prática delituosa, seja em co-autoria ou crime coletivo. A prática delituosa pode ser coletiva, o que não implica – por parte do acusado – na perda de suas garantias constitucionais, cabendo ao acusador um oferecimento acusatório detalhado, com a prerrogativa imperial de cumprimento dos motivos da acusação. Deve este, pois, informa ao acusado os motivos que ensejaram a acusação". (18) O entendimento esboçado pelo autor, reside na afirmação de que existe o ser efetivo que em sua prática rotineira não presta atenção ao dever ser, pelo menos como deveria. A mais triste constatação é feita à luz da produção jurisprudencial. O próprio Poder Judiciário (em diversos julgados RTJ 100/116), manifesta a sua desobediência seja ao direito interno, direito internacional, ou, mais ofensivamente, às determinações constitucionais.
Nota-se, portanto, que existe uma parte da doutrina que continua entendendo que as relações humanas e sócio-econômicas continuam sendo desenvolvidas aos moldes do final do século XIX e início do século XX, o que se deixa transparecer é que o garantismo penal gostaria de determinar o fim da história, senão possivelmente realizar uma determinação de paralisação do tempo. Realizar uma viagem de volta ao passado, não conseguindo distinguir, ou pelo menos identificar a existências de criminalidades distintas, que exigem do poder estatal tratamento jurídico-penal diverso. Tal espécie de criminalidade requer uma nova estrutura de operação jurídica de combate aos delitos econômicos, o que quer significar – para utilizar palavras de TIEDEMANN –, uma especialização das agências governamentais, o Poder Judiciário precisa acordar para o século XXI.
Fala-se, portanto, de uma vedação da responsabilidade objetiva. No entanto, é bom notar que vige no sistema penal pátrio um Código Penal FRANKSTEINS, com origem em 1940, com reformulação de sua Parte Geral em 1984, e com uma (até os dias atuais, apesar dos esforços de JOÃO MARCELO DE ARAÚJO JÚNIOR) Parte Especial, que parece ser intocável, com os inúmeros tipos penais de qualificação pelo resultado, sustenta o direito pátrio uma vedação da responsabilidade objetiva. O significado se encontra na reforma de 1984, que irrefutavelmente optou pelo princípio da culpabilidade. A premissa vigente no direito pátrio – em face da opção pelo princípio da culpabilidade –, é a de que sem a constatação da culpabilidade não há que se falar em pena (nulla poena sine culpa). Por outro lado, a responsabilização penal só pode ser imputada ao agente quando diante de uma conduta que enseja a verificação do dolo ou culpa. "Há dolo quando o agente quer ou assume o risco de produzir o resultado (CP, art. 18, I). Há culpa quando o agente produz o resultado por negligência, imprudência ou imperícia (CP, art. 18, II)" (19). Portanto, diante dos requisitos exigidos pelo princípio da culpabilidade, para a existência de um fato punível, que estão representados no dolo e na culpa, é que se tem a vedação da responsabilidade objetiva. Mas quando é que se tem a responsabilidade objetiva? Diz LUIZ FLÁVIO GOMES "quando alguém é punido sem ter atuado com dolo ou pelo menos com culpa, ou quando alguém é punido sem culpabilidade, sem ter podido, nas circunstâncias concretas do fato, ter atuado de modo diferente (dito de outra forma: quando era-lhe inexigível concretamente conduta diversa). Não basta, assim, para a existência da responsabilidade penal, a simples ocorrência de um ‘fato’ ou de um ‘resultado’ perturbador ou lesivo a bens jurídicos" (20). Mais uma vez é semelhante a lição de HUGO DE BRITO MACHADO, "considera-se responsabilidade penal objetiva o estado de sujeição a uma sanção criminal independentemente de restar demonstrado o dolo ou a culpa, bastando o nexo de causalidade material. É a responsabilidade por um acontecimento, atribuída a alguém em virtude apenas de um nexo de causalidade material, entre a conduta e o resultado, com exclusão de qualquer contributo do elemento subjetivo, seja de conhecimento ou de vontade". (21)
Para CHAVES CAMARGO, (22) que enxerga na realidade cotidiana diversos fatores que não podem ser deixados de lado pelo Direito Penal (que na idéia defendida no trabalho dissertativo, no campo do direito penal moderno, envolvendo os delitos tributários, financeiros, econômicos e ambientas, surge a figura do chamado "laranja", sem falar da ilimitada série de instrumentos tecnológicos utilizados pela criminalidade moderna, torna-se de difícil identificação o agente), ao mesmo tempo que a simples responsabilidade por resultado fora do campo de atuação do agente, provocaria uma involução ao versari in re illicita. A encruzilhada surge exatamente em função da anomalia apresentada pelo diploma penal, nesta relação entre o principio da culpabilidade e o resultado provocado pela ação. Daí "aparecem várias questões que necessitam de respostas pela dogmática jurídico-penal, e há de buscar-se uma saída para a reprovação penal, principalmente, daquelas ações que determinaram um resultado de maior significação social (23). O Código Penal brasileiro admite em vários artigos a responsabilidade pelo resultado, podendo-se dizer, com ASSIS TOLEDO (24), que esta forma é uma transição ao direito da culpabilidade" (25)
Portanto, é diante dessa complexidade de figuras que continua a discussão envolvendo a responsabilidade objetiva, que provoca uma situação de risco – em alguns casos –, da negação do princípio da culpabilidade. "No sentido de salvar o princípio da culpabilidade, buscou-se uma solução normativa, que foi a restrição imposta pelo artigo 19, do Código Penal, além da justificativa indicada por ASSIS TOLEDO, com base em acontecimentos empíricos, da responsabilidade daquele que, conhecendo os fatos, não se deteve, e responde ‘pelo menos por culpa’" (26)
1.2.1 Da dicotomia: Direito Penal Administrativo e Direito Administrativo Penal
É no campo do Direito Penal Econômico que a concepção normativa da culpabilidade encontra seus maiores problemas, para não dizer deficiências. Neste campo percorre seu calvário a procura tanto de alcance como de um sentido para no próximo passo não advir seu falecimento. Suas deficiências se apresentam quando da analise da responsabilidade e da responsabilidade das pessoas jurídicas, pois, o próximo passo está representado na aplicação das sanções, sejam penais ou administrativas.
O surgimento e desenvolvimento do Direito Penal Administrativo acontecem na Alemanha, que nas palavras de ANDREUCCI "as primeiras pesquisas foram realizadas a partir da separação entre crimes e delitos de polícia, por LORENZ von ESTEIN, OTTO MAYER, von LISZT, GNEIT e, notadamente, por JAMES GOLDSCHMIDT, isso, sem esquecer dos estudos feitos anteriormente por FEUERBACH" (27). E. todos esses pensadores trouxeram para a ciência do Direito Penal suas conclusões, no entanto, o seu grande expoente está representado em GOLDSCHMIDT, que fora quem efetuou a diferenciação – no direito penal administrativo –, entre crime e infração. O primeiro como sendo a conduta ilícita assim considerada pela lei; e, a segunda uma contravenção, desobediência a uma obrigação determinada que cada um tem para com a administração, como membro integrante da sociedade. (28)
Quem forneceu contribuição inestimável para o Direito Penal Administrativo, também, foi ENRIQUE AFTÁLION, quando escreveu "a distinção entre as duas categorias é ontológica, tendo os seus pontos fundamentais assim resumidos: a) o delito ampara a justiça; a administração, o bem-estar público; b) o delito dirige-se contra bens juridicamente tutelados; a contravenção é desobediência a normas administrativas e, portanto, atinge os interesses da Administração; c) a pena é marcada pelo seu sentido ético; a contravenção acarreta uma ‘pena de ordem’, um ‘momento’ em relação aos deveres para com a Administração, em função de critérios de oportunidade" (29). O que se faz concluir por uma autonomia entre Direito Penal Administrativo e Direito Penal.
Atribui-se a MAURACH a inserção (na esfera doutrinária) do direito penal administrativo no direito penal, por ter entendido sua necessidade em função do acelerado desenvolvimento das atividades estatais a partir do final da segunda década do século XX. No entanto, foi com a Lei Penal Econômica alemã de 1949, que se efetuou a distinção definitiva entre ambos os campos, quando determinou que haveria pena para os delitos e multa para as infrações administrativas. ANDREUCCI ensina que com a distinção efetuada pela lei alemã o que aconteceu foi que "deixou-se margem, entre eles, para um tipo intermediário de direito penal ou de direito penal administrativo, dependendo do caso concreto, feita a distinção com bases na gravidade da ação e na personalidade do autor" (30).
Para alguns a sua inserção, com os existentes recursos correlatos de coação, provocou inúmeros problemas por chegar a incriminar condutas que não faziam parte do seu campo de atuação. No entanto, assiste razão a MAURACH, que enxergou quanto aos crimes um bem jurídico tutelado que contra o qual fora praticada uma conduta punível, já quanto às infrações administrativas o que ocorre é uma desobediência, uma insubordinação, em descumprimento às atividades administrativas.
Quem de maneira direta forneceu contribuição riquíssima para elucidação da dicotomia fora JIMÉNEZ DE ASÚA, que em sua obra clássica – Tratado de Derecho Penal –, escrevendo sobre a delimitação do conceito de direito penal, elaborou toda uma teria:
- Direito Penal Disciplinário – é um conjunto de normas que associa as infrações de natureza administrativa em que intervém o poder hierárquico, com uma sanção que reveste o caráter de pena. Porém, com a afirmação de que esse ordenamento disciplinário deve separa-se claramente do direito penal propriamente dito (Direito Penal);
- Direito Penal Administrativo – seria o conjunto de disposições que associam ao não-cumprimento de um concreto dever dos particulares com a Administração Pública, uma pena determinada;
- Direito Penal Fiscal – em seu sentido próprio, seria, pois, o conjunto de disposições que associa a lesão dos interesses financeiros do Estado, uma sanção penal determinada. Que fora designado na Espanha com o título de Direito Penal Financeiro, um conjunto de problemas de índole bem distinta;
- Direito Penal Financeiro – como sendo o conjunto de infrações que se refere as sociedades, e que podem seus sócios e representantes realizar (alterações de balanço, simulações, operações fraudulentas de empresa e bolsa, etc.), a intenção foi de construir um corpo próprio de doutrina, a qual se dado a nome de Direito Penal Financeiro. Também de muito maior profundidade em seu conteúdo;
- Direito Penal Econômico – nos países de regime autoritário, e, inclusive, naqueles de economia "dirigida" ou "enquadrada" pelo Estado, surgiu a idéia de reunir todos os preceitos penais que a esse objeto se referem, sob o título de Direito Penal Econômico, formado, em parte, por princípios especiais e em parte por disposições de Direito Penal comum. (31)
No entanto, muito antes do surgimento da construção teórica de JIMÉNEZ DE ASÚA, relata ANDREUCCI que, em 1952 o italiano FILIPPO GRISPIGNI veio sanar a divergência ao "demonstrar que se assemelham o direito penal administrativo e o direito administrativo penal, o primeiro de natureza sancionadora, porque põe normas penais à serviço da administração (disciplinares, financeiras e de polícia) e o segundo que, dos fatos lesivos dos interesses da Administração, faz decorrer uma sanção aplicada sem qualquer interferência jurisdicional" (32) O ensinamento de GRISPIGNI vem provar que até o final da primeira metade do século XX, a discussão travada era de enorme confusão acerca dos conceitos.