A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica no Ordenamento Jurídico Brasileiro

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20/02/2018 às 18:40
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Resumo: Diante do atual cenário de globalização da atividade econômica e de codependência da economia de diversos países e tendo em vista as eminentes crises financeiras geradas pelo atual neoliberalismo, são várias as consequências para o mercado nacional, as quais se tornam cada vez maiores e afetam a economia mundial como um todo. Pautando-se na situação descrita, surge a necessidade de discutir a abrangência da culpabilidade corporativa bem como o papel do Estado e das próprias pessoas jurídicas na prevenção e responsabilização de crimes decorrentes do exercício da atividade econômica. Busca-se analisar o panorama brasileiro em relação à questão, principalmente no que diz respeito à adoção da responsabilidade penal de pessoas jurídicas como forma de responsabilização por suas condutas ilegais.

Palavras-chave: Responsabilidade penal da pessoa jurídica; compliance; culpabilidade corporativa.

Abstract: Given the current scenario of globalization of the economic activities and the co-dependency of the economies of several countries, the eminent financial crises generated by the current neoliberalism are affecting the world economy as a whole. In view of this situation, there is a need to discuss the scope of corporate liability, as well as the role of the State and of the corporations themselves in the prevention and accountability of crimes arising from the exercise of economic activity. The present study’s purpose it to analyze the Brazilian panorama in relation to the issue, especially regarding the adoption of criminal liability of legal entities as a form of responsibility for their illegal conduct.

Keywords: Criminal liability of legal entities; compliance; corporative liability.


1.Introdução

Diante do atual cenário de globalização da atividade econômico-financeira do Brasil, é possível observar que as operações empresariais encontram-se cada vez mais internacionalizadas, o que interliga a economia dos países.

Assim, em situações de crise financeira – como por exemplo a crise imobiliária estadunidense enfrentada em 2008, tendo em vista os grandes contratos e as grandes operações internacionais entre as empresas – são muitos os reflexos, e os efeitos se alastram por todo o globo, gerando repercussões catastróficas na economia mundial.

É uma espécie de “efeito dominó”, haja vista a codependência da economia de um país a outro e a ausência de regulamentação decorrente do neoliberalismo econômico que surgiu na década de 70, cujos preceitos residem na total liberdade de comércio e na mínima (ou nenhuma) intervenção estatal nos rumos da economia do país.

Este modelo vem sendo bastante criticado desde então, o que fez com que ressurgisse a discussão sobre a intervenção doEstado na esfera econômica– ao invés de atuar apenas de maneira repressiva, discute-se que o Estado também teria o dever de vigilar a prevenção de crimes, fraudes e condutas antiéticas de pessoas jurídicas.

Mas não só isso. Desde 2008, ganha força a ideia da implementação das estruturas de governança corporativa nas empresas, conhecidas pelo papel do compliance, que objetiva o cumprimento de normais legais e regulamentares, além de também executar o papel preventivo de detectar desvios e inconformidades dentro das próprias empresas.

Assim, o atual panorama traz à tona, de modo geral, a questão da culpabilidade corporativa como um todo. Além das sanções nas esferas civis, regulatórias e administrativas, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas torna-se uma realidade no ordenamento jurídico de diversos países, inclusive no Brasil.

O presente trabalho tem como objetivo, portanto, analisar qual é o papel do Estado na prevenção e responsabilização de crimes decorrentes do exercício da atividade econômica, além de discutir o papel das próprias empresas na prevenção destas condutas. Busca-se entender também a abrangência e os limites da culpabilidade corporativa no ordenamento jurídico brasileiro, baseando-se em quadros comparativos a partir de experiências legislativas de ordenamentos jurídicos alienígenas, como os casos inglês, francês e espanhol.

Para tanto, foram analisadas pesquisas bibliográficas e legislações nacional e internacional a respeito da temática, de modo que o trabalho pudesse ser estruturado em quatro capítulos.

No primeiro, define-seculpabilidadecorporativae a aplicação do instituto em específico às pessoas jurídicas, além da sua abrangência no ordenamento jurídico brasileiro.

A questão da governança corporativa é adentrada no segundo capítulo, tratando do papel das empresas na prevenção de crimes decorrentes do exercício da atividade econômica e do compliance.

O terceiro capítulo preocupa-se com a discussão do papel do Estado na prevenção e responsabilização das pessoas jurídicas por crimes econômicos, tratando de modo prático a abrangência da culpabilidade corporativa que incide,de fato, no ordenamento jurídico brasileiro nas esferas civis, administrativas e penais.

Por fim, apresenta-se, à guisa de conclusão, no quarto capítulo, um paralelo do ordenamento brasileiro com ordenamentos jurídicos alienígenas em relação à culpabilidade corporativa e, em especial, à responsabilidade penal da pessoa jurídica, a fim de se levantar um quadro comparativa entre o ordenamento jurídico brasileiro e os ordenamentos dossistemas inglês,francês e espanhol.

Espera-se que, por meio de tal estruturação, possa ser oferecida uma melhor compreensão deste controverso tema.


2. A problemática da culpabilidade

2.1      Por uma definição

Para compreender a problemática que envolve a aferição da culpabilidade corporativa se faz necessária uma breve introdução sobre o panorama geral da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro.

Atualmente, define-se pessoa jurídica um entereconhecido pelo Estado, dotado de direitos e deveres, ao qual se atribui personalidade jurídica com determinado fim. Por serem imateriais, estes entes necessitam de representantes, ou seja, pessoas físicas. Poresse motivo diversos autores da área definem a pessoa jurídica, também, como um simples conjunto de pessoas físicas.[1]

Entretanto, a natureza jurídica tem duas correntes doutrinárias diversas: a primeira, negativista, que nega a pessoa jurídica como sujeito de direito autônomo; e a segunda,afirmativista, que reconhece a autonomia da pessoa jurídica enquanto sujeito de direito. Adota-se, no ordenamento jurídico brasileiro, a segunda corrente, que se subdivide em dois grupos: o das teorias da ficção e o das teorias da realidade.

O grupo das teorias da ficçãose apresentam em duas categorias. A primeira, desenvolvida por Savigny, intitula-se “teoria da ficção legal”, na qual se instrui que a pessoa jurídica é uma espécie de criação artificial da lei, ou seja, somente pessoas físicas seriam capazes de ser sujeitos de uma relação jurídica, e apenas na ficção tal capacidade seria estendida às pessoas jurídicas, com fins estritamente patrimoniais. À luz desse raciocínio, a pessoa jurídica é mero conceito que justifica a atribuição de certos direitos a um grupo de pessoas físicas.

Já na categoria de “teoria da ficção doutrinária”, defendida por Vareilles-Sommières (1902), afirma-se que a pessoa jurídica é apenas uma criação intelectual, ou seja, admite-se sua existência por ser afirmativista, contudo, não no plano material.

As teorias da ficção são amplamente rejeitadas por serem análogas às teorias negativistas: admitir que a pessoa jurídica exista apenas no plano abstrato é negar a existência do próprio Estado, o que torna o poder emanado por elemeramenteficcional-legal.

Em contrapartida, as teorias da realidade admitem a existência da pessoa jurídica no plano material como ente autônomo, originando assim três concepções diferentes acerca da afirmativa: as teorias “orgânica”, “jurídica” e “técnica”, as quais serão analisadas,respectivamente, a seguir.

Otto Gierkee Ernst Zitelmannderam origem à “teoria da realidade orgânica”, a qual proclama que a vontade (pública ou privada) tem capacidade de tornar a pessoa jurídica uma realidade sociológica, com vida própria e distinta da de seus integrantes. Ainda assim, não se explica, por ela, de que forma os grupos sociais que não possuem vida própria e personalidade se tornariam sujeitos de direitos e obrigações.

Com efeito, a “teoria da realidade jurídica”, defendida por Maurice Hariou, faz jus à mesma crítica.Apesar de defender que a pessoa jurídica surge das relações sociais com a finalidade de concretizar um objetivo comum, a teoria não é clara sobre as sociedades que não atestam um ofício ou serviço, e não discorre sobre o poder autonormativo da entidade.

Por fim, Raymond Saleilles propõe a “teoria da realidade técnica”, na qual se sustenta que o Estado outorga personalidade aos grupos de indivíduos que se unem com objetivos próprios para que estes possam participar da vida jurídica sob a mesma realidade das pessoas físicas, como ente autônomo em todas as relações jurídicas, conforme adotado pelo artigo 45 do Código Civil Brasileiro:

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.(BRASIL, 2002).

            Aduz-se, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro afirma que a pessoa jurídica tem personalidade equiparada à pessoa física, sendo detentora única, específica e exclusiva de seus direitos e obrigações.

Inicialmente, vale explicar que existem duas teorias essenciais à responsabilização penal corporativa: a heterorresponsabilidade e a autorresponsabilidade. A primeira delas é baseada na tese de dupla imputação penal, na qual a denúncia seria ofertada conjuntamente à pessoa física e à jurídica; no entanto, a responsabilização corporativa acaba sendo deixada de lado, tendo em vista a grande dificuldade e oposição de se estabelecer o nexo causal entre a lesão e alguma eventual conduta direta da estrutura empresarial, por não existirem critérios específicos normativos em relação à culpabilidade corporativa. Já a autorresponsabilidade trata da responsabilização direta da pessoa jurídica, de forma autônoma e independente de pessoas físicas que a componham.

Opositores da responsabilidade penal da pessoa jurídica afirmam que, quando a denúncia recai em relação à pessoa física, seria impossível a continuidade da ação em relação apenas à pessoa jurídica, pelo motivo explicitado há pouco. Não obstante, partindo-se da premissa de que, para ser imputada criminalmente, a pessoa transgressora deve gozar de inteligência, vontade e liberdade. Franco (2000) afirma que não há como negar que tais características sejam inerentes às pessoas jurídicas, sob a ótica de que as vontades individuais dos integrantes que as compõem fundem-se e originam ações independentes do ente social.

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Constata-se, portanto, que a punição de apenas um indivíduo que participa do coletivo que compõe a pessoa jurídica não é eficaz; é necessário que todos os integrantes sintam-se parcialmente penalizados para que haja,de fato, justiça nos delitos corporativos.

Assim sendo, não podemos levar em consideração que a atividade empresarial é apenas derivativa das ações das pessoas físicas e que sua responsabilidade seja um mero reflexo para essas pessoas, pois é preciso ter em conta que a pessoa jurídica pode cometer um delito sem que esse possa ser atribuível a um indivíduo que a compõe.A intencionalidade corporativa nem sempre pode ser rastreada a alguém individualmente.

Nesse sentido, Salvador Netto e Souza (2009) comentam que

a verificação da culpabilidade neste aspecto far-se-á como juízo de reprovação lastreado em considerações normativas, recaindo sobre o ente coletivo, sem prejuízo da responsabilidade individual das pessoas físicas identificáveis e culpáveis (SALVADOR NETTO; SOUZA, 2009, p. 93).

Necessário frisar, em vista disso, que a responsabilidade corporativa não deverá excluir, pela lógica, a responsabilidade a individual,pois não se pode deixar de lado a concorrência do indivíduo para a concorrência do crime no caso concreto. A pessoa física muitas vezes atua como coautora ou partícipe nessas situações, e deverá ser responsabilizada no limite de suas ações.

Neste contexto, com a tese da dupla imputação penal tornando-se cada vez mais ineficaz, o Supremo Tribunal Federal (STF) manifestou sua preocupação com o tema, principalmente em relação à necessidade de definir critérios normativos para a culpabilidade de pessoas jurídicas:

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA COACUSADA. CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA. I - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus. [...](HABEAS CORPUS 92.921/BA, grifo nosso).[2]

É necessário, para isso, utilizar os critérios já estabelecidos em relação ao Direito Civil e Administrativo em conjunto com critérios penais específicos, como o risco assumido pela empresa, a extensão da vantagem obtida pela prática criminosa etc. Para melhor compreensão desta questão, tomemos o exemplo dado porSacerdo(2016):

Quando uma empresa, para maximizar seus lucros, omite-se das medidas preventivas que deve tomar em suas instalações industriais, decorrendo disso o derramamento de poluentes num rio, do ponto de vista da sociedade que testemunha o fato, não há dúvida sobre a reprovação da empresa e, portanto, de sua culpabilidade, sendo, inclusive, possível realizar claro juízo moral a respeito da prática ocorrida. É possível então, afirmar que a culpabilidade da empresa encontra-se plenamente reconhecida na realidade social, merecendo, portanto, ser reconhecida normativamente (SACERDO, 2016, p. 105).

A principal problemática da aferição da culpabilidade corporativa está diretamente relacionada com sua própria conceituação. Define-se culpabilidade como elemento subjetivo que liga o(a) autor(a) da infração ao ato lesivo ocasionado, infração esta manifestada através do dolo ou da culpa – o que é extremamente complexo de se configurar em um ente coletivo como uma empresa. Ademais, a responsabilidade penal objetiva, que independe de dolo ou culpa, é expressamente vedada pelo artigo 13 do Código Penal Brasileiro:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (BRASIL, 1940).

Assim sendo, surgiram diversas teorias relacionadas à culpabilidade da pessoa jurídica, na tentativa de enquadrá-la no elemento subjetivo essencial do instituto, o qual é indispensável para caracterização fática da responsabilização penal tanto da pessoa física quanto da jurídica. Serão apresentadas, a seguir, algumas das teorias mais conhecidas.

2.2      Culpabilidade corporativa por defeito de organização

.Tiedemann(1995) aduz que a culpabilidade empresarial seria por “defeito de organização”, ou seja, o que legitimaria a responsabilização corporativa seria a comprovação de seu procedimento falho, o que resultaria nolesivo ocasionado.Na prática, significa quea política empresarial de compliance, que deveria garantir o cumprimento das normas, acaba ocasionando, por lapso estrutural, a abertura para a prática de ações ilícitas pelas pessoas físicas que compõe o ente social.

Entretanto, essa proposição é passível de crítica, pois não prevê a exculpação da pessoa jurídica, que seria a execução da infração pela pessoa física mesmo quando a estrutura de compliance, em tese, seria suficiente para evitá-la.

2.3      Culpabilidade pela cultura empresarial de não cumprimento da legalidade

A partir de uma concepção construtivista, Gómez-JaraDíez(2010) propõe a teoria da culpabilidade pela cultura empresarial de não cumprimento da legalidade, na qual leciona-se que, haja vista a autonomia conferida à pessoa jurídica, esta tem o dever equiparado ao do cidadão de lealdade e obediência ao Estado.Ou seja, ao adquirir os direitos de personalidade autônomos, também lhe faz jus cumprir os seus deveres, arcando com as responsabilidades de suas ações em todas as esferas do Direito, inclusive a penal. Assim, sua própria estrutura deverá ser construída de modo a se precaver e antecipar eventuais cenários de descumprimento de imperativos legais. Apesar desta tese levar em consideração a exclusão da culpabilidade no caso de todas as precauções de governança corporativa serem, de fato, tomadas, ela em muito se assemelha à teoria comentada anteriormente.

Com efeito, além da postura empresarial e sua respectiva política interna, é necessário ir além para aferir a culpabilidade, como se apresenta a seguir.

2.4      Culpabilidade pela condução da atividade empresarial e culpabilidade pela reprovabilidade ético-social da empresa

Ao aprofundar o conceito de culpabilidade corporativa de Heine(1998) – o qual reforça a ideia de que a responsabilização das empresas por suas condutas falhas é imprescindível – e considerando que a sua ausência gera uma espécie de “cultura de impunidade” no meio empresarial, tal como preceitua Dannecker(2001), que afirma que a culpabilidade de uma empresa se dá pela reprovabilidade ético-social dos danos causados por sua conduta ilícita, temos que a culpabilidade individual da pessoa física responsável não se confunde com a culpabilidade corporativa, sob a ótica de que as empresas têm uma responsabilidade junto à sociedade e ao Estado.As empresas devem agir em conformidade com os parâmetros de desenvolvimento sustentável e crescimento responsável estabelecidos por lei.

Assim, a culpabilidade seria aferida no momento em que o ato ilícito ocorre, haja vista que a empresa falhou no seu dever de atuação perante a sociedade. Ainda assim há de se falar em exculpação se a empresa tomou as atitudes cabíveis para prevenir a infração, cumprindo assim com o seu papel.

2.5      Culpabilidade pela “teoria da vontade”

Esta teoria se difere das anteriores por estabelecer que as pessoas jurídicas possuem filosofia própria, capaz de distinguir a sua vontade da vontade das pessoas físicas que a compõem.

Todo procedimento de formação de vontade da própria empresa gera uma espécie de “vontade especial”, a qual se diferencia das ações específicas individuais de seus proprietários e funcionários. Assim, a aferição de suas culpabilidades não se confundiria. A vontade da pessoa jurídica não pode ser considerada mera junção das vontades que a compõe, pois o resultado do todo é considerado muito superior e complexo se comparado à simples soma das vontades.

Em vista disso, Hirschafirma que a culpabilidade corporativa seria a soma do dever de evitabilidade de infrações com essa “vontade especial” da corporação, em suas tendências e filosofia, a evitar o resultado lesivo à sociedade. Frisa-se que as duas não se confundem, mas sim que uma decorre da outra, respectivamente colocadas.

Não obstante, isso não quer dizer que uma infração cometida por uma pessoa física integrante da empresa incorra na responsabilização do todo. Assim, voltamos no princípio constitucional da individualização da pena– as responsabilidades, apesar de diferentes, podem ser paralelas. A empresa pode vir a responder, como no caso em tela, no limite de sua contribuição ou omissão para a concretização do ilícito.

2.6      Considerações parciais

Diante das teorias discutidas no presente Capítulo, verifica-se que os atuais conceitos de culpabilidademais intricadosainda são insuficientes, principalmente em relação à dissociação existente entre a vontade da pessoa jurídica e as vontades das pessoas físicas que a compõem.

Entretanto, a culpabilidade corporativa vem se tornando uma realidade cada vez mais presente, tanto no ordenamento jurídico brasileiro como nos ordenamentos alienígenas, sob a ótica de que, por ser sujeito autônomo, dotado de direitos e deveres, a pessoa jurídica deve ser submetida a todos os aspectos imperativos do ordenamento ao qual pertence. Com efeito, a responsabilização da pessoa física é extremamente labiríntica, pois há de se aferir a responsabilidade de cada indivíduo no limite de sua atuação, a qual é quase impossível de se lastrear com asserção sem critérios já definidos.

Sacerdo (2016, p. 108) aduz que as dificuldades do modelo de heterorresponsabilidade atual são as seguintes:

[...] porque (1) não se conhece a forma de funcionamento do meio criminoso (o nexo causal), (2) ou não se conhece o causador do dano (delimitação de autoria), (3) ou, finalmente, não se identificam as vítimas (vitimização). Isso sem contar as oportunidades em que duas ou mesmo as três concausas aparecem no mesmo fato, momento em que tem um resultado evidentemente criminoso, mas não há qualquer possibilidade de imputá-lo a uma pessoa física (SACERDO, 2016, p. 108).

Já no modelo de autorresponsabilidade, ou ainda por defeito na organização, o foco da culpabilidade é no comportamento da empresa e, posteriormente,na infração. Estes aspectos serão avaliados a fim de que sejam aferidas sua responsabilidade e a política interna de compliance da empresa – ou seja, as medidas que são tomadas para evitar, localizar e coibir eventuais comportamentos ilegais.

Nieto Martín (2008) aduz que os modelos mistos têm se mostrado mais eficazes.Junta-sea segurança do modelo de heterorresponsabilidade, no qual é possível transferir à empresa os custos do dano causado, com o incentivo do modelo de autorresponsabilidadepara que empresas adiram a um programa de compliancerestritivo e eficaz.

Os modelos mistos também não excluem a possibilidade da responsabilização da pessoa física e, assim, abrangem todas as opções político-criminais de ação para o Estado, criando uma espécie de modelo de cooperação no qual a responsabilidade será distribuída, no caso concreto, de maneira justa às partes envolvidas, no tanto que lhe cabem.

Veremos adiante que alguns ordenamentos alienígenas já aderiram a tal perspectiva,e essa adesão tem se mostrado uma resposta possível para as dificuldades do atual modelo brasileiro.

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