A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica no Ordenamento Jurídico Brasileiro

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20/02/2018 às 18:40
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3. O papel das empresas na prevenção de crimes decorrentes do exercício da atividade econômica

“Fraude”, “corrupção”, “crimes ambientais” e “crimes econômicos”têm sido termos recorrentes quando se falana realidade político-financeira do Brasil atual. A idoneidade de grandes empresas brasileiras tem sido posta em xeque em meio a tantos escândalos – fato que, por óbvio, tem afastado investidores e gerado uma crise sem precedentes no país.Além disso, o protecionismo econômico, o estágio inicial dos mercados de capitais brasileiros, os conglomerados de empresas, a complexa carga tributária e a extensa burocracia impõem ainda mais desafios para possíveis investidores. Tantos bloqueios majoram a sensação de insegurança e incerteza no mercado brasileiro, o que vem agravando a crise brasileira.

Diante desse cenário, boas práticas de governança corporativa têm sido intrinsecamente consideradaspor empresas estrangeiras ao realizarem negócios com empresas brasileiras, e mesmo nas relações estabelecidas entre empresas nacionais.O sistema organizacional das corporações, que inclui o bom relacionamento entre os sócios, órgãos de fiscalização efetivos e boas práticas de complianceé essencial para que seja estabelecida confiança recíproca, necessária para efetivação de um eventual negócio entre as partes.

Além disso, conforme discutiu-seno Capítulo anterior, a cultura organizacional ética das empresas vem sendo muitoconsiderada ao se aferir a culpabilidade corporativa e efetivar a responsabilização delas frente às ilegalidades. São analisadas a eficácia da logística empresarial ao fiscalizar e coibir infrações, além da sua própria filosofia, para determinar o grau de culpabilidade ou a exculpação da entidade.

Busca-se, portanto, por meio da governança corporativa e das estruturas de compliance, o planejamento e a prevenção de riscos, com a finalidade de resguardar as empresas de eventuais sanções não só penais, mas também administrativas e/ou regulatórias.

3.1 Governança corporativa

No início dos anos 1980, uma fraude sem precedentes chocou o mercado financeiro. Guinness, a famosa fabricante de cerveja, encontrava-se em uma grande disputa para adquirir a Distillers, empresa fabricante de uísque, com o intuito de inflar o preço de suas ações e concretizar a aquisição bilionária. A fabricante Guinnesssimulou uma série de compras ilegais de suas próprias ações. O Departamento de Comércio e Indústria investigou o caso e, em 1990, condenou o diretor administrativo da empresa e outros três réus por roubo, conspiração e falsificação contábil (ROBERTS, 2012, p. 221-222). Também neste cenário, em 1993, a International Business Machines (IBM), gigante da informática, beirou a falência em razão de sua má administração, com um prejuízo no montante de 16 bilhões de dólares.

Frente a esses episódios, o público perdeu a confiança no sistema de autorregulaçãodo mercado e trouxe à tona o debate envolvendo a governança corporativa e a necessidade de um sistema mais efetivo de garantia ao respeito das regras de mercado, das normas imperativas e de uma íntegra administração da pessoa jurídica.

Com isso surgiu, no Reino Unido, oRelatório Cadbury, primeiro “código” de boas práticas de governança corporativa, reflexo dos grandes escândalos corporativos acontecidos nadécada de 1990. No mesmo ano, a General Motors (GM) publicou o seu próprio “código” de governança corporativa nos Estados Unidos. Desde então, essa tendência continua crescente e, nos dias atuais, todas as grandes corporações possuem seus manuais de recomendações de governança corporativa.

Inicialmente, a governança corporativasurgiu para dirimir o chamado “conflito de agência”, situação na qual um acionista proprietário de uma empresa transfere o poder decisório a um administrador e, no caso de divergências de opiniões, tais práticas auxiliam na solução do debate. Garante-se, dessa maneira, o melhor interesse da empresa, observando sua cultura organizacional, suas diretrizes e seus objetivos.

No Brasil, apesar da predominante propriedade concentrada, tal situação também se aplica quando novos sócios, herdeiros, entre outros atores sociais visam ao sucesso da empresa. Esse conceito, no entanto, se estendeu e se aprofundou durante os anos e,atualmente, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) define o termo como

o sistema pelo qual as empresas e organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum (IBGC, 2017).

É cediço, ainda, que boas práticas de governança corporativa fundamentam-se em quatro colunas: transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa, as quais são descritas a seguir.

  • Em relação à transparência (ou disclosure), esta se resume na confiabilidade das informações corporativas. As decisões tomadas devem ser claras para todos, desde os próprios funcionários, a sociedade e até mesmo o governo.
  • A equidade (ou fairness) tem como base a igualdade no tratamento de todas as partes que estão envolvidas na atividade empresarial – acionistas (majoritários ou minoritários), funcionários e gestores. Esses agentes deverão ser tratados de maneira justa e igualitariamente.
  • O dever de prestação de contas (ou accountability) significa que as empresas devem prestar contas de todas as atividades realizadas aos seus sócios e às demais partes interessadas e, além disso, que esta prestação seja clara, responsável e confiável.
  • Por último, a responsabilidade corporativa (também conhecida como compliance) aduz que há necessidade de uma espécie de “estrutura verificadora” da atividade empresarial, mas também pode vir a exercer uma função corretiva quando houver alguma infração identificada, sempre zelando pela viabilidade econômico-financeira da atividade e de todo o seu processo.

Verificamos que o termo compliance é o mais lembrado quando se trata de governança corporativa e responsabilidade corporativa. Isso porque é o compliance que mitiga os riscos da atividade e constrói a sua cultura organizacional ética.

O termo é de origem inglesa,“tocomply”, e significa “cumprir”, “executar”, “obedecer”, “estar em conformidade com”, “satisfazer”. No mundo corporativo, a estrutura de compliance é o que impõe o cumprimento de regulamentos internos e externos pelos quais a empresa é submetida. É por meio dela que há projeção e mitigação de riscos, instauração de regras de base moral na corporação e atendimento às exigências normativas necessárias.

É de vital importância, para a adequação dos manuais de compliance, que estes sejam sempre atualizados a qualquer mudança corporativa, de acordo com os objetivos e estratégias das empresas, para que o seu poder diretivo esteja caminhando sempre em paralelo com as suas metas, em direção ao seu sucesso.

Além disso, todos os envolvidos na vida ativa empresarial devem se conscientizar a respeito de suas responsabilidades enquanto partes ativas do organismo corporativo, estando cientes de sua função de prevenir riscos e, nesse sentido,de vigilar os demais integrantes.

Há de se comentar, ainda,o criminal compliance, quando os riscos adentram a esfera penal. A atmosfera de autorregulação regulada que veio com os manuais de compliance demanda uma expansão do Direito Penalsob a óticada crescente aceitação e adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica. As próprias estruturas empresariais acabam por aferirresponsabilidade, nos casos concretos, por eventual infração.

Como discutido anteriormente, é papel da empresa evitar que ocorram ilegalidades no decorrer de sua atividade empresarial.Uma falha nesse procedimento pode vir a incorrer na responsabilidade da empresa pelo ato lesivo, mesmo que tal ato tenha sido praticado por uma pessoa física integrante do todo.

Com efeito, a fim de mitigar a responsabilidade corporativa e transferir a responsabilidade pelos ilícitos diretamente às pessoas físicas “responsáveis”, as empresas criaram cargos decorrentes do compliance: sãoos vigilantes (ou gatekeepers), cujo dever, segundo Sacerdo (2016), é o de

“[...] notificar e cooperar com o Estado em casos de possíveis ilícitos, sob ameaça de lhes ser atribuída responsabilidade penal por omissão, na forma dolosa ou culposa, quando descumprem tais obrigações. Essa é uma situação que aflige mais direta e sensivelmente os indivíduos que exercem a função de responsável pelo departamento de compliancedas empresas (chiefcomplianceofficer, em inglês, encarregado de cumplimiento, em espanhol). Vendo uma companhia dentro de sua multiplicidade de atividades, é certo que se criam uma multiplicidade de gatekeepers, para cada uma das funções em que há risco específico e especial de cometimento de delitos. Atuaria, portanto, o chiefcomplianceofficercomo gatekeeperdos gatekeepers, ou seja, como aquela pessoa que tem função de coordenar as atividades de controle e detecção de todas as áreas de uma corporação, numa tarefa que poderia ser, além de humanamente impossível, também bastante arriscada do ponto de vista da responsabilização penal (SACERDO, 2016, p. 257).

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O posicionamento empresarial mencionado vem sendo amplamente criticado, pois não há que se transferir todo o risco penal da atividade econômica praticada a um único indivíduo. Ao se aferir responsabilidade a alguma pessoa ou entidade, são verificadosos seus reais poderes em agir, omissiva ou comissivamente, em relação à infração.

Essa prática configura o total desvirtuamento do compliance. Por isso, o Poder Judiciário, ao ser apresentado com o caso concreto, deve analisar o que, de fato, é falha em fiscalização e o que é falha no comprometimento corporativo em desempenhar suas obrigações normativas. As estruturas de compliancepodem variar de uma empresa para a outra, levando-se em conta seu segmento de mercado, a complexidade de sua atividade e o ordenamento jurídico em que a entidade está inserida.

3.2      Considerações parciais

No Brasil, apesar da Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/1998 (BRASIL, 1998) já prever sanções às pessoas jurídicas por crimes cometidos na esfera ambiental, foi a Lei Anticorrupção– Lei 12.846/2013 (BRASIL, 2013) que elevou as políticas de complianceà prioridade nas empresas brasileiras. Com a promulgação da referida Lei, todas as empresas brasileiras – e não só as empresas que estão à mercê do cometimento deinfrações na esfera ambiental – estão sujeitas a sanções civis e administrativas ao praticarem atos ilegais frente à Administração Pública (nacional ou estrangeira).

Critica-se, desde então, a denominação de tais sanções aplicadas como “administrativas” e “civis”, haja vista o caráter essencialmente penal das sanções elencadas pela Lei 12.846/2013, as quais serão esmiuçadas em Capítulo próprio para tal. A própria Lei explica, em seu artigo 7o, o fenômeno de atual priorização do compliance e aduz, em seu inciso VIII, “[...] a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidade e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (BRASIL, 2013).

Ou seja, protege-se os gestores da empresa por culpa por omissão, além de se reduzir ou exculpar completamente as sanções aplicáveis às empresas. Tanto que, em 2014, logo após a promulgação da referida Lei, foi criado o Instituto Compliance Brasil, que tem como objetivo promover a cultura de compliance e auxiliar na disseminação das boas práticas de governança corporativa às empresas brasileiras.[3]

Gouvêa (2017) aposta que o ano atual foi o ano do complianceno Brasil. Em meio a tantos escândalos no aprofundamento das investigações da Operação LavaJato e a recente promulgação do Decreto 8.842/2016[4] – que adota a Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária para troca de informações entre países que são signatários, com o objetivo de se combater a evasão e a elisão fiscal – em conjunto com a Lei 12.846/2013, denota-se o caminho que o Brasil vem tomando em relação às práticas empresariais.

A maneira com que o país vem se portando, com o “aprimoramento dos sistemas de detecção, investigação e punição de infrações diversas”consolida “novos paradigmas empresariais na regulação e na forma de se fazer negócios no Brasil e no mundo” (REF). Em meio à crise político-econômica vivenciada, boas estruturas de controle interno têm feito toda a diferença ao transmitir confiabilidade aos investidores, e isso é considerado fator determinante para a sobrevivência da maioria dos negócios.

Ademais, essa tendência demonstra-se crescente não só com relação a medidas anticorrupção, mas tem ganhado proporção inclusive nas searas dos Direitos do Consumidor, Direitos Humanos, na área tributária, no Direito à privacidade no uso da internet e em relação, também, à prevenção à lavagem de dinheiro.

Frente a isso, a adoção de políticas de governança corporativa nas empresas brasileiras se mostra imensamente positiva. Em um momento de incertezas na política e na economia, tanto para os próprios brasileiros quanto para os possíveis investidores no mercado do Brasil, a adoção de medidas de boas práticas negociais, além da prevenção e mitigação de riscos, é vital para a sobrevivência do mercado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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