4. O papel do Estado na prevenção e responsabilização de crimes decorrentes do exercício da atividade econômica
Apesar da atual tendência de autorregulação regulada do mundo corporativo, esta não pode ser ilimitada. Mesmo com a crescente aceitação das boas práticas de governança corporativa, da idoneidade das empresas e sua crescente responsabilidade social, não se pode deixar à mercê da boa vontade do mercado o não cometimento de ilegalidades.
O Estado tem seu papel definido pela Constituição Federal: agir como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como expõe o artigo 174 da Carta Magna:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (BRASIL, 1988).
Isso porque, de modo reiterado pela História, temos confirmações de que oextremo liberalismo econômico é ineficiente, em qualquer uma de suas formas, considerando o caso em questão uma analogia à autorregulação das empresas.
O caráter essencialmente predatório do capitalismo enquanto presente em uma sociedade que se rege pelo liberalismoocasiona crises como a de 1929 e aprofunda ainda mais as já extremas desigualdades sociais. Tais efeitos demonstram a necessidade de regulação da economia, especialmente no que tange aos direitos coletivos.
No plano infraconstitucional, o Estado possui Agências Reguladoras, que têm natureza jurídica de autarquia e se encarregam de regular e fiscalizar determinados setores da economia do país. Exemplos desta natureza são aaAnvisa e a Anatel.Outro órgão de substancial importância à intervenção do Estado como agente normativo e regulador é o Cade, uma autarquia federal em regime especial que tem por missão
[...] zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência (CADE, 2017).
Com efeito, atualmente, vivemos o chamado Estado do Bem-estar Social, que determina a intervenção na economia para garantir os direitos assegurados pela Constituição Federal. O Estado deve respeitar, portanto, a livre iniciativa e a livre concorrência, de modo a garantir o desenvolvimento do âmbito privado. Assim, o intervencionismo estatal não pode ser absoluto, pois tal situação geraria o estabelecimento de um regime totalitário, o que é incompatível com o nosso atual Estado Democrático de Direito.
Neste raciocínio, o atual momento político-econômico do país trouxe à tona a necessidade de rediscussão do papel do Estado na responsabilização dos crimes decorrentes do exercício da atividade econômica. Eventos como os inúmeros escândalos de corrupção tanto no setor público quanto no setor privado e o rompimento da barragem de Fundão, localizada a 35km de Mariana-MG – tragédia que ocasionou o maior desastre ambiental do país –, por exemplo,nos levam aquestionar quais puniçõessão geradaspara as empresaspor eles responsáveis.
Empresas que obtêm ganhos ilícitos advindos de infrações que geram prejuízos a toda sociedade se mantêm impunes frente à responsabilização, mesmo que rara, de seus sócios e funcionários. As multas administrativas, civis e regulatórias não cumprem o seu papel diante desta situação, pois acabam não impondo restrição alguma a estas companhias;a situação estabelece certa “cultura da impunidade” no Brasil pelos crimes cometidos por pessoas jurídicas.
Frente ao antigo sistema de heterorresponsabilidade brasileiro –no qual, ao ser impossível lastrear a qual indivíduo deve se atribuir a culpa pela infração, tendo em vista que a vontade empresarial seria a soma da vontade de diversas pessoas –, a denúncia em relação à pessoa jurídica também cai por terra, o que, por óbvio, não pode prosperar.
Ademais, a promulgação de leis como a de Crimes Ambientais, a Lei Anticorrupção (mencionadas no Capítulo anterior) e a nova Lei Antitruste brasileira – Lei 12.529/2011 (BRASIL, 2011) fazem com que passem a ser adotadassanções de cunho penal em relação à responsabilidade da pessoa jurídica no cometimento de crimes decorrentes do exercício de sua atividade econômica.Todo esse conjunto vem mudando o ordenamento jurídico brasileiro atual, principalmente no tocante a sua jurisprudência, considerando-se amplamente aceita a responsabilidade penal objetiva da pessoa jurídica por determinadas infrações.
Será apresentado, a seguir, o atual panorama brasileiro em relação àsresponsabilidades da pessoa jurídica frente a eventuais infrações tanto nas áreas civil e administrativa quanto na área penal.Será possível traçar, de forma geral, qual o rumo que o país vem tomando em relação a estas matérias.
4.1 Responsabilidade civil da pessoa jurídica
A pessoa jurídica é responsável no âmbito civil contratual e extracontratual. Entretanto, os atuais conceitos de responsabilidade civil das empresas equiparam a responsabilidade contratual à extracontratual, pois, segundo Venosa (2013, p. 245), “ontologicamente não há diferença. O conceito gravita em torno da reparação de um prejuízo, que pode derivar de um contrato ou não. A ideia de reparação é sempre a mesma”.
Ademais, aduz-se que a responsabilidade civil decorre de um dano patrimonial – direto ou indireto – causado a terceiro, seja por dolo ou por culpa. Ela pode também ser objetiva, no caso de responsabilização do próprio agente causador do dano, ou subjetiva, quando incide a alguém que a lei define como responsável, por ato de outrem. Essencialmente, todo dano causado deverá ser reparado.
Frisa-se que a responsabilidade civil não exclui a responsabilidade criminal e vice-versa. É possível que as duas caminhem paralelamente, tanto às pessoas físicas quanto às jurídicas. O ilícito penal se difere do ilícito civil, mas ambos podem incidir em uma única situação. Além disso, o mesmo conceito aqui explorado é aplicado também nas esferas trabalhistas, do consumidor, ambiental, entre outras nas quais a pessoa jurídica ativamente atua.
4. 2 Responsabilidade penal da pessoa jurídica
O tema surgiu inicialmente no Brasil, em decorrência da Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/1998 (BRASIL, 1998). Apesar de muito se discutir sobre o permissivo constitucional em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica, foi com o advento desta Lei que tal possibilidade veio à tona.
Não obstante, grande parte da doutrina e da jurisprudência ainda não compactuava com a ideia de uma pessoa jurídica – considerada por muitos mera ficção legal ou uma entidade sem vontade, sem consciência própria – cometer um crime e, consequentemente, lhe atribuir culpabilidade para impor sanção penal.
Foi com o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o instituto começou a ser factualmente aplicado. Inicialmente, prevalecia o modelo de heterorresponsabilidade, ou seja, era necessária a dupla imputação penal – a denúncia teria de ser feita em face da pessoa física em conjunto com a pessoa jurídica e, caso a denúncia em relação à pessoa física não se sustentasse por ser acessória e não autônoma,ela também estaria fadada ao insucesso.
Entretanto, este modus operandise mostrava insuficiente na realidade jurídica brasileira. Com isso, o STJ mudou o seu entendimento em relação à dupla imputação penal. O acórdão mencionado a seguir demonstra esta lógica:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL: DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO CONCOMITANTE À PESSOA FÍSICA E À PESSOA JURÍDICA.
1. Conforme orientação da 1a Turma do STF, "O art. 225, § 3o, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação." (RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 6/8/2013, acórdão eletrônico DJe-213, divulg. 29/10/2014, public. 30/10/2014).
2.Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte.
3. A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução.
4. Recurso ordinário a que se nega provimento(HABEAS CORPUS 39.173/BA, grifo nosso).[5]
Em seguida, o posicionamento foi consagrado pelo STF ao determinar o processamento de ação penal contra a Petrobrás por suposto crime ambiental, mesmo sem qualquer ação penal em andamento contra pessoa física relacionada ao crime, como veremos a seguir. Com efeito:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
1. O art. 225, § 3o, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação.
2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta.
3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3o, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental.
4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido (PROCESSO RE 548181/PR, grifo nosso).[6]
Vale-se o precedente da expressa menção legal da Constituição Federal que dispõe, no artigo 225, parágrafo 3o, que “[...] as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (BRASIL, 1988). Ademais, o precedente também faz alusão a outro permissivo constitucional para a configuração da responsabilidade penal autônoma da pessoa jurídica, o artigo 173, parágrafo 5oda Magna Carta.
Restando pacificado o tema quanto aos crimes ambientais, surge, nesse contexto, outra lei que, apesar de se autodenominar administrativa, contém caráter essencialmente penal. Elas será discutida a seguir.
4.3 A Lei Anticorrupção– Lei 12.846/2013
O objetivo da Lei Anticorrupção– Lei 12.846/2013 (BRASIL, 2013) é punir empresas nacionais ou estrangeiras por atos de corrupção contra a Administração Pública. Muito se discute no quesito da natureza jurídica da Lei em comento. Apesar de se intitular administrativa, não há como negar os aspectos penais na discrição dos atos ilícitos e suas severas sanções, que chegam a até 20% do faturamento anual de uma empresa. Prisco (2016, s/p) aposta que “[...] nessa linha, constata-se que a Lei Anticorrupção se despiu de certos dogmas garantistas do Direito Penal, a fim de flexibilizar a rígida noção de culpabilidade que impera nesse terreno”.
O principal aspecto da Lei é o seu aspecto de punição objetiva. A responsabilidade objetiva é aquela que independe de dolo ou de culpa, mas funda-se no risco inerente à atividade praticada, ou seja, independe do elemento subjetivo da culpabilidade.
Outro ponto observado é o de que o legislador preferiu se valer do direito administrativo sancionador ao fabricar a lei em comento, tendo em vista a expressa vedação da responsabilização objetiva no artigo 13 do Código Penal brasileiro.
Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (BRASIL, 1940)
Isso significa que a empresa, objetivamente, deverá responder por todo e qualquer ato de corrupção, independentemente da comprovação de culpa. Ou seja, mesmo que o ato tenha sido cometido por funcionários sem poderes dirigentes ou mesmo um empregado terceirizado, a pessoa jurídica responderá pelos atos ilícitos praticados se beneficiada de qualquer maneira, mesmo que tenha ocorrido sem o seu consentimento.
Entretanto, a Lei não exclui a responsabilidade individual dos administradores e dirigentes que venham a incorrer nas práticas de corrupção arroladas pela presente Lei; eles serão considerados coautores ou partícipes do ato ilícito.
Incentiva-se, através da Lei 12.846/2013, a criação de políticas estruturais de compliance, as quais mencionamos em capítulo próprio. A própria Lei prevê, sem seu artigo 7o, VIII, como atenuante das sanções impostas, a adoção de “códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (BRASIL, 2013).
Outro aspecto similar e valoroso da Lei são os acordos de leniência que, segundo a Controladoria Geral da União (CGU), caso a empresa coopere com as investigações, tambémpoderá ter a sua pena atenuada.
4.4 Considerações parciais
É inegável a crescente aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento brasileiro. Seja pela factual presença do instituto na Lei de Crimes Ambientais ou pelo caráter penal de algumas leis administrativas. Isso denota o caminho tendente do ordenamento jurídico brasileiro em relação ao tema.Entretanto, nosso ordenamento jurídico é muito influenciado pelos ordenamentos italiano e alemão, os quais não admitem o instituto em comento, como veremos noCapítulo a seguir.
Mesmo levando em conta o atual momento político-econômico do país, queda difícil imaginar a pacificação do tema em relação ao Direito Penal econômico em um futuro próximo. Não se pode, entretanto, deixar de discutir a matéria e observar a adoção de medidas mais severas em relação à responsabilização das pessoas jurídicas pelos seus atos ilegais.
A ascensão de empresas por meio de atividades criminosas deve ser considerada inadmissível. Nesta direção, a responsabilização de pessoas físicas pelos crimes cometidos em decorrência da atividade econômica não deve substituir a responsabilização corporativa.
É preciso que sejam impostas sanções mais rigorosas aos crimes em comento; que elas se igualem menos nas proporções dos danos causados e sejam variadas. Multas pecuniárias, penas restritivas de direito e até mesmo a imposição da dissolução forçada da pessoa jurídica devem ser consideradas. Estas medidas, como veremos adiante, já são adotadas em ordenamentos jurídicos alienígenas.