O PODER DO MITO E O DIREITO

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O presente ensaio visa despertar no aluno-leitor a compreensão de que o mito, embora corriqueiramente visto como uma inverdade, trata-se de uma necessidade de nosso cérebro, cioso por respostas, mesmo sobre as coisas que não nos são compreensíveis

O premiado jornalista e historiador, Yuval Noah Harari, advoga a teoria de que o que nos diferenciou das demais ‘humanidades’, dos demais membros do gênero homo (como os neandertais, o homo-rudolfensis, o homo-florensis, entre tantos outros) não foi o andar ereto (que possibilitou a liberação do uso das mãos), nem o uso das mãos ou o polegar opositor (que possibilitaram o fabrico de ferramentas), nem o uso de ferramentas (que permitiu aprimoramento na caça e o abandono da vida nômade, com a agricultura), nem o domínio do fogo (que permitiu processar os alimentos, facilitando melhor nutrição e facilitando o aumento do tamanho do cérebro), nem o tamanho do cérebro maior (que possibilitou o desenvolvimento da linguagem), nem mesmo a linguagem em geral, mas o mito, uma linguagem específica que só os sapiens possuíam, nossa capacidade de falar sobre coisas que não existem, nossa capacidade de abstrair e de ficcionar (falar sobre espíritos e deuses e criaturas míticas e direitos humanos e fronteiras e Estados).

Nos demais primatas, só há cooperação entre conhecidos, companheiros, membros do mesmo grupo, aqueles em que se confia, porque se conhece – através da linguagem corriqueira. Nos sapiens, há cooperação em larga escala, por causa do mito. Um neandertal facilmente ganharia de um sapiens em força, mas seu grupo não ultrapassaria 150 membros, ao passo que uma comunidade sapiens – pela força do mito – agregaria centenas e até milhares. Explicamos: dois indivíduos que sequer se conheciam iam às cruzadas, batalhavam juntos, como companheiros, porque se diziam, ambos, cristãos – ambos acreditavam no mito religioso da vinda de Deus à Terra feito pessoa humana e etc., mas – de fato – eles sequer se conheciam. O mito permitiu a nós, os sapiens, nos organizarmos em grupos maiores e vencemos os demais “humanos” pelo peso numérico.

Mas o mito mais forte agrega mais pessoas em sua defesa: para citar exemplo, abandonamos o mito de que a origem do poder dos reis era divina (Estado Absoluto - moderno) pelo mito de que todo poder emana do povo e dos Direitos Humanos e Fundamentais – chamamos a isso de Revolução Francesa, que permitiu o surgimento do Estado Moderno Liberal (tanto nos EUA - 1776, como na França - 1889). No Direito, temos também nossos mitos: o mito de que, após os ritos e registros certos, os magos-advogados transformam um agregado de recursos humanos, ‘know-how’ e capital em um ente personalizado – uma pessoa jurídica, uma empresa. Hobbes defendeu o mito de que, vindos de um estado de natureza caótico, necessitássemos de alguém com total poder, que estivesse acima das leis, que fosse o único a permanecer no estado de natureza, com poder e liberdade totais, isto para garantir a ordem e controlar o caos e fazer estável o império das leis – ele próprio, o soberano, o monarca absoluto, estando acima dela, da lei: podendo matar, prender ou confiscar bens, sem qualquer fundamento ou pretexto.

Hoje, no Brasil, nos vendem o mesmo mito: o de que o juiz, para estabelecer a ordem, deva estar acima das leis, que possa ser irresponsável por seus atos. Bem ou mal, a discussão levantada pelas medidas aprovadas na Câmara em estranha votação feita numa madrugada, no sentido de determinar a punibilidade do juiz por seus atos, alerta-nos para a necessidade que temos de nos protegermos das figuras divinizadas, sejam elas do executivo, do legislativo ou mesmo dos membros do Judiciário. Um amigo nos disse certa vez e só podemos endossar: ‘quando leões e chacais brigam, os antílopes agradecem’. Não à toa, Montesquieu propôs a tripartição de poderes justo para isso, no afã de que, através de seu sistema de freios e contrapesos (checks-and-balances), um poder pudesse fiscalizar o outro. Cá, em terra brasilis, os poderes – ao que se evidencia – se unem em prol da corrupção conjunta, deixando o povo sem chão. E o povo, em meio a tanta corrupção e à falta de ações do Estado (no sentido de garantir sua contraprestação devida ao pagamento dos impostos: saúde, educação, segurança, etc) passa a retornar ações típicas do período da vingança, tendendo a fazer justiça com as próprias mãos, inúmeros são os casos de linchamentos de suspeitos de crimes a que (muitas vezes) despois se descobre inocentes, etc. Assim, melhor coisa não poderia haver para o atual momento brasileiro que esta guerra entre legislativo e judiciário, eis que positivo será o fim das imunidades parlamentares (como se vê delinear nas ações no STF), como igualmente positiva é a responsabilização dos juízes por atos que gerem indevido dano ao cidadão.

Óbvio, isto não é um endosso ou apoio às medidas “contra a corrupção”, descritas no Projeto de Lei 4.850/2016 – que mais parecem medidas pró-corrupção, já que, em alguns pontos, parecem querer amordaçar os juízes – mas um reconhecimento da necessidade imperiosa de que limitemos as nossas “figuras míticas” e que todo aquele que ocupa um dos poderes (seja ele qual for) possa ser responsabilizado por seus atos e – como todos os demais filhos de Deus, aqui embaixo do sol – possa, enfim, encontrar-se, não mais no Estado de Natureza, mas sob o império das leis (e nunca acima delas) – jazendo enfim, como todos nós (meros mortais), no Estado de Direito, em cujo contexto as leis prevalecem para todos.

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Sobre o autor
Francisco de Sousa Vieira Filho

Advogado, militando sobretudo na área trabalhista, em Teresina-PI, Especialista em Direito Constitucional pelo LFG e Mestre em Direito pela Universidade Antônoma de Lisboa. Professor nas faculdades AESPI e FAPI, e professor substituto na UESPI (Campus Clóvis Moura). Autor dos livros: Lira Antiga Bardo Triste (2009); Lira Nova Bardo Tardo (2010) e Codex Popul-Vuh - ramo de folhas (2013).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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