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Ensino (de(o)) Direito!?

A busca por novos referenciais para a pesquisa

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27/03/2005 às 00:00
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7. O novo espaço cotidiano

A referência a questão da reforma do ensino jurídico, a qual não pode ser efetivada a partir de mudanças meramente legislativas, traz um novo viés de pesquisa. Isso porque, "(...) há as formas mais sutis de resistência, em termos de atitudes negativas e de não cooperação e de ausência de ‘aceitação’ espontânea da autoridade" (APPLE, p. 94), resistências efetivadas pelos alunos contra o ensino dogmático e alienante. Para se pesquisar a questão do ensino jurídico e, a partir da pesquisa, estruturar novas alternativas ao ensino jurídico interessa partir das relações entre os sujeitos nesse universo escolar específico.

La norma educativa oficial no se incorpora a la escuela de acuerdo com su formulación explícita original. Es recebida y reinterpretada dentro de un orden institucional existente y desde diversas tradiciones pedagógicas en juego dentro de la escuela. No se trata simplesmente de que existan algunas prácticas que corresponden a las normas y otras que se desvían de ellas. Toda la experiencia escolar participa en esta dinámica entre las normas oficiales y la realidad cotidiana (ROCKWELL, p. 14). Es imposible inferir estos niveles de la experiencia escolar a partir de la documentación oficial. La reconstrucción de esa lógica requiere una análisis cualitativo de registros etnográficos de lo que sucede cotidianamente en las escuelas; su contenido no es evidente (ROCKWELL, p. 15).

Ora, para pensar o ensino jurídico de forma inovadora é preciso partir do cotidiano, das relações entre professores e alunos. Até mesmo porque, como já aludido, as normas educativas e burocráticas servem, na maior parte dos casos, apenas como exigência formal na qual os alunos apenas cumprem obrigações sem efetivar o que se pretende. Um exemplo dessa questão é a já aludida obrigatoriedade das horas complementares de extensão. A distorção de objetivos chegou a tal limite que surgem empresas especializadas em realizar eventos de extensão que fornecem horas aos alunos, algumas inclusive com palestras interativas em CD-ROM. Enfim, uma nova prática de comércio. Por isso, a vida cotidiana é mais rica em elementos inovadores ao ensino e, também, como objeto de pesquisa para a elaboração de alternativas para a mudança do ensino jurídico.

Geralmente quando se recorre a expressão ‘vida cotidiana’ associa-se essa a noção de rotina, dia-a-dia e banalidade. Todavia essa noção não é suficiente para uma análise teórica. Partindo-se da conceituação elaborada por Ágnes HELLER sobre o "cotidiano" pondera-se que esse significa: o tempo de vida de todo o homem em suas relações com o mundo imediato (Cf. HELLER, 1985, p.17 e Ss.). Certamente essa seja uma proposta conceitual restrita, mas serve de balizamento para a presente reflexão sobre o cotidiano. Cabe ressaltar que não é certo contrapor o fato histórico ao fato cotidiano, pois a História também é recheada de fatos cotidianos assim como os possíveis fatos históricos seriam inviáveis sem a substância do fato cotidiano (Cf. HELLER, 1998. p.19 e Ss.). Isso porque tudo que é apropriado pelo homem inicialmente é apropriado em seu cotidiano. A vida cotidiana serve para o homem como mediadora do mundo não-cotidiano (Cf. KOSIC, p. 59 e Ss.). A pesquisa, nesse sentido, abre novos rumos para pensar o ensino jurídico porque no cotidiano se encontra a janela necessária para se discutir questões não-cotidianas. Pelas atitudes do homem em relação ao seu mundo imediato é possível observar como as propostas gerais influem na sua vida prática.

O cotidiano também pode servir de elemento concretizador do próprio ensino. Nesse mesmo sentido, FREIRE insiste em iniciar o aprendizado pelo mundo cotidiano e imediato do aluno:

(...) minha insistência de começar a partir de sua descrição sobre suas experiências da vida diária baseia-se na possibilidade de se começara partir do concreto, do senso comum, para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Não dicotomizo essas duas dimensões de mundo – vida diária do rigor, senso comum do senso filosófico, na expressão de Gramsci. Não compreendo conhecimento crítico ou científico que aparece do acaso, por um passe de mágica ou acidente, como se não precisasse se submeter ao teste da realidade. O rigor científico vem de um esforço para superar uma compreensão ingênua de mundo. a ciência sobrepõe o pensamento crítico àquilo que observamos na realidade, a partir do senso comum (FREIRE e SHOR, p. 131).

Partir-se do conhecimento do aluno, das relações do aluno com o mundo imediato. Essa perspectiva de aproximar o aluno do ensino, bem como a pesquisa da realidade, não significa que se deve permanecer apenas no cotidiano, no concreto, mas que esse seria o ponto inicial para alcançar-se o aluno e as relações dentro do universo escolar. "Se você estuda Ciências Sociais na universidade, segundo certa abordagem, aprende que a realidade é uma coisa, uma pesquisa, ou um modelo estatístico. Outra coisa, porém, é aprender sentindo a realidade como algo de concreto. Para aprender esse sentimento concreto, nada melhor do que ter trabalhadores como seus professores. Eles vivem a experiência das coisas que devemos estudar" (FREIRE e SHOR, p. 42). O cotidiano pode ser a argamassa necessária para um novo patamar de pesquisa e ensino jurídico.


8. Bibliografia

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Ensino (de(o)) Direito!?: A busca por novos referenciais para a pesquisa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 627, 27 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6475. Acesso em: 19 abr. 2024.

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