Li estarrecido uma notícia informando que serão indiciadas as pessoas que alertarem sobre a existência de blitz de trânsito em aplicativos de conversas e outros afins. A “base” para o indiciamento seria o artigo 265 do Código Penal que estabelece como crime: “Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública”. Ou seja, responderão por um crime que não existe.
Ora, difícil (senão impossível) se vislumbrar o encaixe da conduta apontada com o tipo penal prescrito. E o Direito não admite – nem pode admitir – malabarismos deste jaez. Não custa lembrar o princípio jurídico, também esculpido no Código Penal brasileiro, de que “não há crime sem lei anterior que o defina”. Isso faz com que a conduta criminosa só possa vir a ser tipificada por intermédio de lei.
Noves fora a imoralidade da prática (o que não está sendo avaliado neste texto), não se pode considerá-la como enquadrável no artigo citado, uma vez que a ela não se destina. Ser imoral não significa – nem pode significar – ser ilícito. Quando a lei fala em “atentar” exige uma conduta no sentido de inviabilizar o serviço de utilidade pública, por exemplo, romper uma adutora ou cortar fios elétricos. O serviço, portanto, é interrompido. No caso das blitz, elas continuam a operar normalmente, não havendo nem mesmo o conhecimento de eventual “conversa” ou “alerta” por meio de aplicativos.
A doutrina abalizada (leia-se, entre outros, Guilherme Nucci e Rogério Greco) também não vislumbra tal possibilidade. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também já se posicionou em discordância à aplicação do tipo penal do artigo 265 nesses casos.
Outro princípio básico do Direito Penal é o de que não se pode criar crime por analogia. Condutas semelhantes não são condutas idênticas e, assim, não podem ser encaixadas no mesmo dispositivo. Se não há previsão expressa com relação ao aviso sobre blitz, isso não pode configurar crime. Simples assim. Ou deveria ser.
Em um ambiente democrático (estamos à beira de sair dele, mas ainda não saímos) quem edita lei é exclusivamente o legislador. Mais ninguém. Nem o juiz, nem o promotor, nem o delegado, nem qualquer pessoa tem o poder de criar lei. E se não há lei, não há crime. Esgarçar um texto de lei para que se encaixe em padrões “moralizantes” é indevido e absurdo. Quando isso é feito pelo Judiciário, recebe o singelo nome de “ativismo judicial”. Um engodo para mascar a discricionariedade e o voluntarismo do juiz.
No caso da notícia, parece estarmos diante de uma nova modalidade: o “ativismo policial”, que traz o mesmo caráter nocivo, sobretudo à democracia. Nunca é demais lembrar que a moral não corrige o Direito. É ele quem filtra os mandamentos morais e os absorve ou não para o ordenamento jurídico, mediante o procedimento constitucionalmente estabelecido. E quem faz isso é o legislador, goste-se ou não.