Do Princípio Constitucional do Contraditório: Vertentes Material e Formal (à Luz da Evolução Jurisprudencial e Legislativa do Regramento Processual Civil)

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23/03/2018 às 18:30
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RESUMO: O presente artigo analisa as duas vertentes em que se desdobra o princípio constitucional do contraditório, - contraditório material e contraditório formal -, enfocando suas características e examinando sua relação com a tutela antecipada e a tutela cautelar, tecendo considerações sobre a mitigação do alcance das diferenças de ambos os institutos nos últimos anos e, em particular, no novo regramento processual civil.

Palavras-chave: CONTRADITÓRIO MATERIAL E FORMAL. TUTELA ANTECIPADA. TUTELA CAUTELAR.

ABSTRACT: This article examines two aspects in which unfolds the adversarial principle, - material and formal adversary systems - focusing on their characteristics and examining its relationship to injunctive relief and provisional remedy, with considerations on the mitigation of the reach of the differences of both institutes in recent years and, in particular, the new civil procedural rule.

Keywords: ADVERSARIAL PRINCIPLE. INJUNCTIVE RELIEF AND PROVISIONAL REMEDY.


1. Introdução

Contraditório, de contradita[1], é Princípio Constitucional previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal ("aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"), sendo, corolário do Princípio do Devido Processo Legal.

NERY JR. (apud CAVALCANTI, 2001) afirma que o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, “pois a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor se apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa da que foi dada pelo autor"[2].

O mencionado princípio deve ser entendido de maneira ampla, na qualidade de atuação positiva da parte em todos os passos do processo, influindo diretamente em quaisquer aspectos, – sejam fatos, provas, pedidos da outra parte –, que sejam importantes para a decisão do conflito. Deixou, portanto, o mesmo de ser apenas e restritivamente um elemento para a dialética do processo, para se caracterizar através da participação efetiva da parte na totalidade do processo.

De acordo com DI PIETRO (2000. p. 491):

“O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. Exige: notificação dos atos processuais à parte interessada; possibilidade de exame das provas constantes do processo; direito de assistir à inquirição de testemunhas; direito de apresentar defesa escrita.” (grifos nossos)


2. Modalidades de Contraditório

Não obstante a ampla variedade de classificações doutrinárias relativas ao denominado princípio constitucional do contraditório, é importante esclarecer que, muito provavelmente, conforme salientam diversos autores a propósito do tema, a mais importante dentre elas é a que define o instituto jurídico-processual em duas diferentes vertentes: o chamado contraditório material (ou contraditório efetivo) e o denominado contraditório formal.

2.1. Contraditório Material

O contraditório material, como o próprio nome sugere, alude à plenitude da máxima jurídica de que somente é possível (e mesmo lícito) decidir uma lide meritória (resolver um conflito de interesses) após a prévia (e, portanto, anterior) oitiva das alegações, fundamentos e provas de ambas as partes litigantes, constituindo-se, portanto, em um instrumento de nítido conteúdo substancial e que se estabelece necessariamente a priori.

Como bem esclarece ASSIS (1997), o princípio do contraditório, em sua vertente material (efetiva), - consagrando-se como um dos pilares sobre que se sustenta a atividade processual -, “significa, em termos práticos, que em processo não pode haver surpresas, circunstância esta que impõe, sempre, e de forma insuperável, seja, em qualquer hipótese, ouvida previamente a parte contrária antes do decisum (audiatur et altera pars).  No plano teórico, o princípio do contraditório se materializa através do binômio informação - reação”, na precisa e atual lição do processualista italiano LA CHINA (1970, p. 394), verbis:

“(...) il principio Del contraddittorio si articola, nelle sue manifestazioni tecniche, il due aspetti o tempi essenziali: informazione, reazione; necessaria sempre la prima, eventuale la seconda (ma necessario chi sia resa possibile!)” 

Corroborando e adaptando à realidade brasileira, o conceito em epígrafe também foi, com mérita propriedade, elencado por NERY JÚNIOR (1992, ps. 122/123), nos seguintes termos:

“Por contraditório (material) deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis”. (acréscimo e grifos nossos) 

2.2. Contraditório Formal

O denominado contraditório formal, considerando sua necessária construção conceitual, em sentido diametralmente oposto, por sua vez, traduz-se, em última análise, por uma inconteste ficção processual, tendo em vista que o mesmo somente possui aplicação prática nas hipóteses restritivas em que o processo concerne a uma denominada jurisdição impropriamente considerada (jurisdição extensiva), desprovida de caráter material (satisfatividade inerente ao direito substantivo reclamado) e ausente de índole meritória (como nos casos relativos à tutela se segurança cautelar[3]), permitindo, - ao reverso da regra constitucional -, que o julgador decida um incidente nitidamente processual ou um aspecto não-meritório (a concessão de uma medida liminar de natureza cautelar, por exemplo) excepcionalmente inaudita altera pars, - ou seja, sem a prévia e anterior oitiva de uma das partes, ainda que condicionada a sua necessária e posterior manifestação -, constituindo-se, por conseqüência, em um contraditório de nítida feição processual (desprovida, pois, de conteúdo material e dotado apenas de continente formalizante) e que, embora também deva se estabelecer, em regra, a priori (observe que a concessão de liminares inaudita altera pars se caracteriza sempre como exceção), pode, em situações excepcionais, se perfazer a posteriori.


3. Da Disciplina Jurídico-Processual Prevista no CPC/73

Durante a vigência do CPC/73, - mesmo após a reforma que introduziu o instituto da Tutela Antecipada em 1994 -, a diferenciação entre as modalidades de contraditório (material e formal) sempre se apresentou com reconhecida nitidez, sendo certo que a regra segundo a qual o contraditório formal, muito embora pudesse ser verificado a posteriori (através da concessão de liminares inaudita altera pars), era, inclusive, textualmente amparada, dentre outras, pelo regramento normativo previsto no art. 804 do CPC/73, particularmente para a concessão da tutela de segurança cautelar, que expressamente condicionava a possibilidade de ineficácia da medida cautelar para o seu deferimento inaudita altera pars, verbis:

“É lícito ao juiz conceder liminarmente (...) a medida cautelar, sem ouvir o réu, quando verificar que este, sendo citado, poderá torná-la ineficaz (...)”.

A contrario sensu, portanto, era expressamente vedado, - mesmo se tratando de inconteste hipótese de jurisdição imprópria e, consequentemente, de contraditório formal -, a concessão da chamada antecipação in limine quando ausente a condição excepcional prevista em lei.

“É vedado ao juiz conceder, liminarmente, a medida cautelar se se verificar que a citação do réu não poderia torná-la ineficaz (CPC/73, art. 804). Provada a concessão da medida liminar e a existência, executada ela, de danos de difícil reparação, dá-se a segurança para cassar-se o ato impugnado” (ac. 5a CCTJ/RJ, MS 58/90 (u), rel. des. HUMBERTO MANES, JTERJ, 26 (ago./90), Ementário 26/90, Ementa 39, p. 7).

“O despacho que concede a medida liminar não precisa ser amplamente fundamentado bastando que nele o juiz justifique sucintamente a concessão vestibular. Só pode ser concedida in limine medida cautelar quando ocorra justo receio que, em assim sendo, torne-se a mesma ineficaz caso venha a ser deferida posteriormente” (ac. unân. da 2a  Câm. do TJSC, de 29.8.84, no agr. 2.747, rel. des. RUBEM CÓRDOVA) (grifos nossos).

“A liminar inaudita altera pars tem apoio expresso no CPC/73, art. 804, primeira parte, não, porém, incondicionadamente. Impõe-se, como freio a discrição judicial, a verificação no caso, de que o réu, sendo citado, possa tornar o procedimento ineficaz. Assim, é de se considerar excepcional a concessão, sem audiência da parte contrária. Indispensável é que o juiz, com rigor, avalie os fatos, em ordem a determinar se o retardo da providência até o momento ulterior à citação do réu não implicará frustração do resultado prático colimado pelo autor” (ac. 4a CCTA/SP, agr. 115.900-1/Mogi das Cruzes (u), rel. des. NEY ALMADA, Adcoas BJA 8 (20.3.90), 126.702, p. 118).

Todavia, mesmo durante a vigência plena e originária do CPC/73, é cediço reconhecer que parcela da jurisprudência mais recente iniciou um processo de mitigação do alcance da expressa restrição legal inserta no art. 804 do CPC/73, ainda que a concepção hermenêutica permanecesse plenamente válida, em respeito, sobretudo, aos fundamentos do próprio princípio do contraditório.

“A liminar em medida cautelar, em regra, deve ser deferida inaudita altera pars, sem necessidade de prévio contraditório, bastando estarem presentes os pressupostos concessivos. (...)”

 (STJ, EDcl na MC 17853 / PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 01/07/2011)

“A concessão de liminar inaudita altera pars (art. 804 do CPC/73) em sede de medida cautelar preparatória ou incidental, antes do recebimento da Ação Civil Pública, para a decretação de indisponibilidade (art. 7º, da Lei 8429/92) e de sequestro de bens, incluído o bloqueio de ativos do agente público ou de terceiro

beneficiado pelo ato de improbidade (art. 16 da Lei 8.429/92), é lícita,  porquanto medidas assecuratórias do resultado útil da tutela jurisdicional, qual seja, reparação do dano ao erário ou de restituição de bens e valores havidos ilicitamente por ato de improbidade, o que corrobora o fumus boni juris. Precedentes  do STJ: REsp 821.720/DF, DJ 30.11.2007; REsp 206222/SP, DJ 13.02.2006 e REsp 293797/AC, DJ 11.06.2001. (...)”

(STJ, REsp 1078640 / ES, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 23/03/2010)

3.1. Tutela Antecipada e Contraditório Material

Não é por outra razão que na hipótese de eventual concessão da tutela antecipada (por se tratar de tutela de mérito), - de forma diversa da tutela de segurança cautelar -, sempre foi reconhecido o obstáculo maior (e, nesse sentido, insuperável, salvo em situações excepcionalíssimas que, em certa medida, correspondem à tutela específica (art. 461, §3º, do CPC)) caracterizado pela efetiva presença do princípio constitucional do contraditório (na hipótese, contraditório material) a impedir, de forma sinérgica, o deferimento da antecipação sem a oitiva prévia da parte contrária, considerando, particularmente, que a própria referibilidade ao direito material, inerente ao processo de conhecimento (onde se encontra inserido o instituto da tutela antecipada), por si só invalida qualquer mecanismo desafiador do princípio maior, segundo o qual qualquer decisão meritória (mesmo que antecipada e, neste especial, reversível (e de cognição sumária)) somente pode ser procedida pelo julgador após a necessária manifestação de ambas as partes litigantes.

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“A antecipação de tutela prevista no art. 273, do CPC, possui inexorável natureza cognitiva. O provimento antecipatório, por isso, é de ordem satisfativa, e, por meio dele, o que se obtém é a antecipação da tutela jurisdicional de mérito.  Ou seja, o ordenamento jurídico permite ao juiz que entregue ao autor aquilo que o mesmo objetiva alcançar por intermédio do processo antes do momento normal de entrega da prestação da jurisdição – a sentença. 

Por isso, e por não ostentar natureza cautelar, a antecipação de tutela, prevista no art. 273 do CPC, não se presta a assegurar a eficácia do resultado útil de um processo principal. O provimento antecipatório, assim, exercido em processo de conhecimento, não substitui a tutela cautelar e nem se confunde com ela, que deve ser buscada por meio de processo cautelar, por óbvio.  É nossa posição, desde quando começamos a falar sobre o quê, enfim, era possível ao juiz deferir na via da antecipação da tutela.

Uma e outra providência liminar (antecedente) são, por isso, diferentes.  Tutela cautelar liminar, como se viu, é diferente de tutela antecipada no processo de conhecimento.

A tutela cautelar liminar pode ser deferida sem citação do réu. É o que se lê, expressamente, no art. 804, do CPC, que tem a seguinte redação: 'é lícito ao juiz conceder liminarmente, ou após justificação prévia, a medida cautelar, sem ouvir o réu, quando verificar que este, sendo citado, poderá, torná-la ineficaz (...)'.  Essa possibilidade é da própria índole da tutela cautelar de urgência, já que, dependendo do direito discutido, o réu, caso venha a saber da propositura da ação e da pretensão do autor, pode efetivamente antecipar a prática do ato temido, em detrimento dos interesses em risco.  Então, o chamado ‘fator surpresa’ é da própria essência da tutela cautelar, que, como se afirmou, objetiva assegurar o resultado de outro processo; tenciona impedir que aconteça um gravame qualquer ao direito que a parte autora afirma ter.

Mas, indaga-se: como conciliar essa possibilidade de se admitir a existência de providências determinadas pelo juiz sem ciência da parte contrária se a Constituição da República garante, às partes, o direito ao contraditório (material) (art. 5º, inciso LV)? (...)

É sabido que qualquer interpretação de texto infraconstitucional ordinário – aí incluídos, portanto, os de natureza processual – deve, sempre e sempre, buscar harmonização com o texto constitucional, na advertência sempre precisa de Couture (Eduardo Couture, in Interpretação das Leis Processuais, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 3ª edição, 1993, ps. 38/40).  Até para que se realize a pretensão de eficácia da Constituição, garantindo a sua força normativa (Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991, pág. 16).  Do contrário, isto é, se a interpretação se afasta das bases traçadas pelo Texto Maior, daí haverá de decorrer evidente desarmonia com o querer constitucional, o oposto, portanto, do pretendido pelo preceito da interpretação conforme à Constituição, sugerido por Larenz (Karl Larenz, in Metodologia da Ciência do Direito, tradução de José Lamego, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª edição, 1989, ps. 410/414).

À luz desses princípios, tem-se que a única alternativa plausível capaz de justificar a possibilidade de deferimento liminar de tutela jurisdicional sem a audiência do réu – e, por isso, em aparente desrespeito ao princípio constitucional do contraditório – é buscar apoio em outro princípio processual constitucional: o princípio do devido processo legal, constante do art.5°, inciso LIV, da Constituição da República.  Ou seja, se a providência consta expressamente de texto de lei processual; se o juiz observou a lei para atingir os objetivos do processo; se há, em resumo, previsão legal para aquela providência; enfim, se foi observado o rigor processual previsto em lei, então é possível admitir a possibilidade de eventual quebra dos rigores do princípio do contraditório (material).  É como se um princípio compensasse o outro, com um e outro equilibrando-se reciprocamente.

Assim, e desde que há expressa previsão legal para a concessão de tutela cautelar liminar sem prévia citação do réu – constante do art.804, do CPC -, é possível ao juiz aparentemente ‘violar’, ‘desobedecer’ o princípio do contraditório (em sua vertente material) ao amparo do princípio do devido processo legal, e deferir a medida pretendida pelo autor sem audiência da parte contrária (perfazendo-se um oportuno contraditório formal, a posteriori).  Essa argumentação vale para todas as hipóteses em que há possibilidade de antecipação de provimento jurisdicional sem citação do réu.  Basta conferir, além do artigo 804, do CPC, os artigos 461, §3°, 797, 928, 1.050 e 1.051, todos do mesmo Código.  Por isso, toda vez que houver possibilidade de antecipação de tutela jurisdicional sem citação do réu, é preciso que haja expressa previsão para tanto em texto de lei.  E, com isso, estar-se-á prestigiando o princípio do devido processo legal.

A contrario sensu, quando não houver previsão legal para antecipação, a mesma não será possível, já que, em tal caso – inexistindo devido processo legal –, haverá de se garantir prevalência ao princípio constitucional do contraditório (em sua vertente material), que pressupõe, obrigatoriamente, a audiência da parte contrária.  E claro está, como conseqüência, que a norma inserta no art. 804 do CPC tem seu limite de aplicação restrito aos objetivos do processo cautelar, não se prestando a servir ao processo de conhecimento, por razões óbvias, não sendo permitido ao intérprete, por isso, elastecer o seu conteúdo normativo para que o mesmo possa alcançar situação processual regulada por norma específica do processo de conhecimento.

 (...)" (ASSIS, 1997)  (grifos e acréscimos nossos)

“Entendo que deva ser obedecido, no procedimento em que se postula a antecipação de tutela, o princípio do contraditório. Não é possível sua concessão sem audiência da parte contrária, que deve responder no prazo que se prevê para a cautelar, que me parece o mais indicado (...)” (CALMON DE PASSOS, 1996, p. 26-27)

Tal obstáculo, - é importante mais uma vez reafirmar -, inexiste e sempre inexistiu, de modo efetivo, na tutela cautelar, posto que, neste caso, de forma diversa da tutela antecipada, não há discussão sobre a questão de fundo (meritum causae), existindo tão-somente uma referibilidade processual (intrínseca) que, de nenhuma forma, concerne ao direito material controvertido, permitindo, em caráter excepcional, a caracterização do denominado contraditório formal que, embora, a exemplo do contraditório material, deva ser sempre observado a priori (ou seja, com a oitiva prévia de ambas as partes), pode ser, entretanto, observado a posteriori, ou seja, após o eventual deferimento da medida acautelatória, em face do próprio objetivo de preservação (urgente), que é, indiscutivelmente, inerente à tutela cautelar.

"(...) uma vez fixada a natureza cognitiva (não-cautelar, portanto) do provimento jurisdicional por meio do qual se defere a antecipação da tutela com fundamento no art. 273, do CPC, é de se indagar: pode haver antecipação de tutela sem citação do réu?  A resposta – ressalte-se: a única resposta juridicamente possível, tecnicamente correta e processualmente viável – é a de que, dentro dos contornos do artigo referido, só tem cabimento a antecipação de tutela desde que tenha havido citação do réu.  E por que isso?  Porque: a) a antecipação, nesse caso, tem natureza cognitiva e não cautelar, quando, então, seria possível aplicar-se a ela, por extensão lógica, a regra do art. 804, do CPC;  e b) inexiste previsão legal expressa, em nenhum dos incisos e parágrafos do art. 273, do CPC, que permita ao juiz conceder provimento antecipatório sem citação do réu.

Além do mais, e se a regra geral, com assento constitucional, é a que determina a observância do princípio do contraditório, então a exceção – isto é, o dispositivo de lei que permite a violação ao princípio do contraditório com a adoção de providências sem citação do réu –, haverá de merecer, necessariamente, interpretação restritiva, como é elementar em Hermenêutica (Miguel Reale, in Lições Preliminares de Direito, Ed. Saraiva, São Paulo, 9ª edição, 1981, pág. 315).

Por isso tudo, negando natureza cautelar ao provimento jurisdicional de antecipação da tutela (que tem natureza cognitiva); inexistindo previsão legal para a antecipação sem prévia citação do réu; e, finalmente, prestigiando a regra geral determinada pelo princípio do contraditório – não-excepcionada por disposição expressa de lei, na hipótese –, é que ressai incabível ao autor pedir e ao juiz deferir provimento antecipatório, com base no art.273, do CPC, sem que tenha havido citação do réu.  A antecipação de tutela, em casos que tais, haverá de ser apreciada e decidida, como conseqüência, após a angularização da relação processual, com a necessária citação do réu, em qualquer das duas hipóteses contempladas nos incisos I e II do art. 273, do CPC.” 

(ASSIS, ob. cit.)  (grifos e acréscimos nossos)

Por efeito conseqüente, em sua concepção originária, somente seria lícita a concessão da tutela antecipada inaudita altera pars em situações excepcionalíssimas, em que a mesma, - não obstante a sua inconteste vertente material originária (jurisdição própria) -, aludir, ainda que tangencialmente, a uma forma derivada de jurisdição imprópria (extensiva), típica dos atos jurisdicionais de execução (ou assemelhados), como os previstos (ou análogos) para a hipótese da tutela específica (essencialmente, espécie do gênero tutela antecipatória) que possui expressa previsão autorizativa ínsita no art. 461, §3º, do CPC, verbis:

“Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, ou juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

(...)

§3º  Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu.  A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

(...)”

Não obstante todos os argumentos técnico-processuais alinhavados, bem como o rigor corretivo da hermenêutica aplicável à espécie, é cediço reconhecer que muitos autores, - bem como expressiva parte da jurisprudência -, há muito, tem desafiado os limites legais da tutela antecipada para, - com fulcro na característica excepcionalíssima (e até então inédita) de sua necessária reversibilidade -, entender possível a concessão inaudita altera pars.

"(...) Em caráter excepcional, poderá ser concedida a tutela antecipada, inaudita altera parte, se presentes os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora, bem como a prova inequívoca e a verossimilhança da alegação, em decisão devidamente fundamentada. (...)"

 (STJ, AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR 2000/0020613-0, Rel. Min. Paulo Galotti, 2ª T., DJ 11/09/2000, p. 231)

"(...) LIMINAR CONCEDIDA SEM PRÉVIA MANIFESTAÇÃO DO PODER PÚBICO. POSSIBILIDADE. HIPÓTESE EXCEPCIONAL. (...)

Excepcionalmente, o rigor do disposto no art. 2º da Lei 8.437/92 deve ser mitigado em face da possibilidade de graves danos decorrentes da demora do cumprimento da liminar, especialmente quando se tratar da saúde de menor carente que necessita de medicamento.  (...)"

(STJ, REsp 439833 / SP, Rel. Min. Denise Arruda, 1ª T., DJ 24/04/2006, p. 354)

"(...) A antecipação de tutela, assim como as medidas liminares (vinculadas aos pressupostos da plausibilidade jurídica e do perigo na demora), tem exame célere, dada a urgência natural da demanda, prescindindo de prévia oitiva da parte contrária. (...)"

(STJ, AgRg na SLS 18 / RJ, Rel. Min. Edson Vidigal, Corte Especial, DJ 06/12/2004, p. 170)

Sobre os autores
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Luciano Aragão

Mestre em Direito das Relações Econômicas. Professor da Graduação e Pós Graduação em Direito. Advogado, Sócio da Aragão Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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