Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400:breves reflexões.

Quando o conservadorismo chega ao judiciário

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09/04/2018 às 17:48
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Reflexões sobre a liminar concedida pelo Juiz Federal 14ª vara Dr. Valdemar Claudio de Camargo (DF) na Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400.

TERAPIA REPARATIVA PARA (RE) ORIENTAÇÃO SEXUAL - QUANDO O CONSERVADORISMO CHEGA AO JUDICIÁRIO. 

Reflexões sobre a liminar concedida pelo Juiz Federal 14ª vara Dr. Valdemar Claudio de Camargo (DF) na Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400.

Resumo

      Este artigo visa apresentar reflexões sobre a liminar concedida pelo Juiz Federal da 14ª vara Dr. Valdemar Claudio de Camargo (DF) na Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400, na presente decisão, impedir os profissionais que são solicitados por este atendimento e estudar a questão com relação ao tratamento da homossexualidade seria "uma censura".

       Palavra-chave: terapia, reparativa, homossexualidade.

Abstract

       This article intends to present reflections on the injunction granted by the Federal Judge of the 14th Rod Dr. Valdemar Claudio de Camargo (DF) in Popular Action nº 1011189-79.2017.4.01.3400, in the understanding the Federal Council of Psychology does not prevent professionals from attending and study regarding the treatment of homosexuality and that this would be a censorship.

Repair therapy for (re) sexual orientation.

Keyword: therapy, reparative, homosexuality.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo desde artigo é apresentar um enfoque amplo a respeito da (re) orientação sexual, com enfoque histórico, científico e evolutivo dos direitos da população LGBT, discorrendo ainda o caminho percorrido com relação ao tema e as consequências a liminar pode transmitir a sociedade como um todo.

TERAPIA REPARATIVA PARA (RE) ORIENTAÇÃO SEXUAL.
Quando o conservadorismo chega ao judiciário.

Inicialmente, não se pode tratar o que não é doença.

A questão passou a ser colocada novamente em pauta após aproximadamente 30 anos, voltando a utilização do termo “reversão” da identidade sexual por meio de uma ideia da “re-orientação sexual” (vulgarmente chamada de “cura gay”) através de uma recente liminar{C}[1] concedida em 19 de setembro de 2017 pelo Juiz Federal da 14ª Vara Dr. Valdemar Claudio de Camargo (Distrito Federal) na Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400, deferindo a seguinte ordem judicial:

“ ...sem suspender os efeitos da Resolução nº 001/1990, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte C.F.P., em razão do disposto no art. 5°, inciso IX, da Constituição de 1988”.[2]

A respectiva ação foi proposta pela psicóloga Drª Rozangela Alves Justino (e outros), contudo, seu registro profissional encontra-se cassado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e desde 2016 a psicóloga ocupa o cargo de assessora do então parlamentar Sr. Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ){C}[3], conhecido por ser conservador e membro da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Conservadorismo e Religião

Este não é um tema novo para os parlamentares, pois em 2013, o parlamentar João campo (PRB-GO), também conhecido por ser extremamente conservador, com a intenção de “combater a homossexualidade” criou um projeto nº 234/2011[4] com o nome “cura gay”, mas não obteve êxito e foi logo arquivado.

Ainda, existe o projeto nº 4931/2016 em andamento apresentado pelo deputado Ezequiel Teixeira que dispõe “sobre o direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana”[5], o parlamentar é pastor evangélico da “Associação Missionária Vida Nova”.

Inexistência de classificação patológica (CID)

A liminar concedida pelo Magistrado, passou retomar a discussão do tema que já estava superada, pois em sua decisão fundamenta que o Decreto 001/1990 infringe a garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso IX em que dispõe “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, todavia, a questão não deve ser tratada de maneira jurídica, com informações que superem o patamar científica do que diz respeito a tratamento de algo que historicamente já se comprovou não ser uma doença.

Não se pode esquecer que, em meados de 1977, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elencava o homossexualismo na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), consequentemente permitindo inúmeros tratamentos para reversão, como eletrochoque, tratamento hormonal e até mesmo castração química, que ofendiam diretamente a dignidade da pessoa humana e todas as garantias individuais e coletivas, tratamentos que foram posteriormente considerados inúteis.

O matemático Alan Turing[6], pioneiro da computação, experimentou a história vivida pelos homossexuais no passado, ele foi condenado e castrado quimicamente por ser homossexual, na época com injeções de hormônios masculinos, não resistindo pela intoxicação de cianeto[7], produto altamente tóxico, também utilizado no uso agrícola em combate a pragas e utilizado para suicídios, o matemático morreu aos 41 anos de idade.

Após décadas de estudos científicos, em 22 de maio de 1990{C}[8] a Organização Mundial da Saúde (OMS) entendo por necessário retirar da lista de doença, deixando a cargo de cada Estado tratar sobre o tema, assim em 1999, o Brasil por meio da Resolução 001/99[9] de 22 de março de 1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu normas de atuação para os psicólogos com relação a “Orientação Sexual”, como previsto no art. 1º e seguintes:

Art. 1° - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.

Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.

Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização[10] de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.

Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Afinal, é possível curar a homossexualidade?

Obviamente que não, não se pode “curar” o que não é uma doença, equivocadamente, adicionamos ao nosso vocabulário a palavra “homossexualismo” erroneamente, pois, de acordo com os fundamentos da terminologia médica o sufixo “ismo” significa a existência de uma patologia, que em meados de 1085, era possível, hoje não mais.

Apesar disso, a palavra “homossexualismo é muito utilizada pela sociedade, mas a forma mais adequada seria “homossexualidade”, por trazer o sufixo “dade” que significa “forma de ser”.

       Interessante ainda lembrarmos Dr. Robert L. Spitzer{C}[11], falecido em 2015, um psiquiatra conhecido mundialmente por dedicar um grande período de sua vida ao estudo da chamada “terapia reparativa” para a “cura” da homossexualidade.

         No entanto, desde os anos 90 a terapia foi considerada inútil, aliás, poucos anos antes de sua morte, o psiquiatra se pronunciou sobre o assunto com os seguintes dizeres “Eu acredito que devo desculpas à comunidade gay”[12], sendo este “o único arrependimento que teve, o único em matéria profissional”.

       Embora seja um tema já superado em estudos científicos, aproximadamente 73 países ainda existe a criminalização da homossexualidade, como na Tanzânia, Etiópia, Malásia, entre outros.

        O caso da Tanzânia é o mais recente e surpreendente, pois sua população era uma das mais tolerantes com a homossexualidade e agora passou a criminalizá-lo por até de 30 anos.

       É certo que nosso país se encontra em uma situação política instável, mas o estado não deve interferir em questões políticas, morais, ideológica ou religiosas, adentrando em temas que não cabem a eles intervir.

       A autoridade responsável para elencar o que é uma patologia é a Organização Mundial da Saúde (OMS) e em nosso país o papel referente a questão cabe ao Conselho Federal de Psicologia (CFP)

       A homossexualidade não possui tipo algum de diagnóstico por não se tratar de uma patologia, como digo anteriormente, questão já superada cientificamente, assim não cabe ao judiciário adentrar em questões relacionadas a medicina ou psicologia, sem especialidade e fundamentado em estudos científicos.

       Com base na liminar concedida, o judiciário criará precedentes que tendem a intensificar o preconceito e a discriminação em nosso país, aliás, não faz muito tempo, se aprovou o Estatuto da Família (PL 6583/2013), onde Eduardo Cunha, então presidente na época, desarquivou um projeto criado pelo parlamentar Anderson Ferreira, figura conservadora e evangélica, onde colocou novamente em pauta com a criação da comissão, e como já se sabe, aprovado pela câmara em 2015.{C}[13]

       Em primeiro momento, a polemica gerada em torno do tema de reversão ou (re) orientação sexual parece não ter-se dado a devida atenção, pois trata-se de uma “liminar” que não suspendeu a Resolução 001/99, mas se fundamenta na alegação censura ao exercício profissional e liberdade científica.

       Certamente, a decisão anda na contramão de todos os fundamentos de uma sociedade em evolução e que luta contra o preconceito e discriminação, pois é ilógico permitir tratar como patologia algo que cientificamente não está elencado como tal, questão esta, já esgotada pela ciência e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde a Classificação Nacional de Doença (CID) nº 10[14].

Fundamentos principiológicos da República Federativa do Brasil –               Dignidade da pessoa humana e Igualdade.

       Oportuno se faz dizer, que um dos fundamentos da nossa República Federativa do Brasil é a “Dignidade da Pessoa Humana” e a “Igualdade”, princípios consagrados pela Constituição Federal, foi neste sentido que o autor Vicente Paulo[15] tratou acerca do tema:

       “A dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil consagra, desde logo, nosso Estado como uma organização centrada no ser humano, e não em qualquer outro referencial. A razão de ser do Estado brasileiro não se funda na propriedade, em classes, em corporações, em organizações religiosas, tão pouco no próprio Estado (como ocorre nos regimes totalitários), mas sim na pessoa humana.”.

       Não se pode perder de vista, que o judiciário deve cumprir seu papel social, não devendo retroceder no tratamento de questões que tendem alimentar o preconceito e a discriminação, devendo incentivar o tratamento igualitário independente que orientação sexual.

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       Entendimento emanado pela em nossa constituição Federal:

       Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

       IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

       Aliás, é bem verdade que a orientação nasce com o ser humano, assim como um heterossexual nasce heterossexual, o homossexual nasce homossexual, é uma questão natural do ser, evidentemente, não se trata de uma escolha e não existe reversão.

       Em 2011, a ADPF nº 132 -RJ{C}[16] (Reconhecimento de União Homoafetiva), o Ministro Ayres Britto (Relator), dispõem da seguinte forma em seu relatório:

“Donde ponderar que a homossexualidade constitui “fato da vida [...] que não viola qualquer norma jurídica, nem é capaz, por si só, de afetar a vida de terceiros”. Cabendo lembrar que o “papel do Estado e do Direito em uma sociedade democrática, é o de assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada um realize os seus projetos pessoais lícitos” [...] Assentando, dentre outros ponderáveis argumentos, que a discriminação gera o ódio [...]”.

       No artigo publicado pela jurista Maria Berenice Dias{C}[17],com o título “Para a Constituição ser chamada de cidadã” a autora aponta que “é indispensável que todos assumam suas responsabilidades de cidadãos, saibam se colocar no lugar do outro, tenham a sensibilidade de sofrer a dor de quem não tem direito assegurado. Só assim se poderá mostrar que o reconhecimento dos direitos dos cidadãos – de todos eles, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero – é uma reivindicação de toda a sociedade”.

       Por outro lado, deve-se estabelecer limites no exercício de toda profissão, motivo pelo qual existe um “Código de Ética Profissional” a ser respeitado, estabelecendo as condutas a serem aplicadas a cada especialidade, na psicologia não é diferente, cabe apontar o primeiro princípio fundamental elencado no “Código de Ética de Psicologia”[18]

{C}I.          O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

                 No mesmo Código de Ética de Psicologia, cabe observar o art. 1º, alínea “a” e art. 2º, alínea “b”:

Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:

[...]

c) Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional;

Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:

[...]

b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;

       Desta forma, a liminar concedida não apenas abre precedente, ou seja, possibilidade de repercutir e vir a se tornar jurisprudência, como também abre espaço para o conservadorismo, imposições de caráter moral, ideológicos e religiosos, alimentando o ódio no Brasil contra a comunidade LGBT.

       É verdade que nosso país se encontra politicamente instável, mas o judiciário deve manter o papel como estado, na medida que não pode permitir retrocessos de direitos já conquistados da população LGBT[19]. Aceitar a decisão é caminhar em sentido contrário aos fundamentos Constitucionais e Direitos Humanos.

       Podemos elencar alguns direitos já conquistados pela comunidade LGBT no Brasil[20]:

       Atividade sexual do mesmo sexo: Legal desde 1831.

       Reconhecimento de uniões do mesmo sexo: "Uniões estáveis" legais em alguns estados desde 2004. Entidades familiares reconhecidas em todo o país desde 2011.

       Casamento do mesmo sexo: Legal em alguns estados desde 2012, em todo o país desde 2013.    

       Adoção por casais do mesmo sexo: desde 2010.      

       Pessoas LGBT podem servir abertamente em militares: desde 1969.

       Leis anti-discriminação relativos à orientação sexual: Toda a discriminação social sancionada pelos cidadãos desde 1988. Proteção legal para a orientação sexual em muitas jurisdições (ampliação da emenda constitucional nacional contra a discriminação (todos) discutida no Senado). Patologização ou tentativa de tratamento da orientação sexual por profissionais de saúde mental ilegais desde 1999.

       Leis relativos à identidade / expressão de gênero: As pessoas transgêneros podem mudar seu gênero legal desde 2009.

       Contudo, dados apontam que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, apenas no ano de 2016 foram 347 mortes, sendo quem, a cada 25h um LGBT é morto no Brasil, com o primeiro lugar o estado de São Paulo e ficando em segundo lugar a Bahia[21].  

A violência movida ao preconceito é mundial, em virtude disto, recentemente o relator da ONU, especialista independente Vitit Muntarbhorn[22], defendeu que “...países estimulem o respeito pela diversidade sexual e de gênero”, este relatório busca estimular países promover medidas de proteção contra violência e discriminação baseadas em orientação sexual e diversidade de gênero.

       Logo, permitir o envolvimento conservador, ideológico, religioso no poder estatal, inequivocamente, é um caminho sem volta, é um retrocesso jurídico e científico já discutido há décadas atrás, não havendo fundamento contundente para se voltar a ser discutido.

Sobre a autora
AGATHA ANDRADE COSTA

Advogada Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - São Paulo Graduada pela UniFAAT Fundadora do escritório "Andrade Costa Advocacia" Atuação: Criminalista, Civilista, Imobiliário e Direito do Consumidor (Atraso de Obras - Imóveis na Planta). "A JUSTIÇA ATRASADA NÃO É JUSTIÇA, SENÃO INJUSTIÇA QUALIFICADA E MANIFESTA". RUI BARBOSA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

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