Abandono afetivo parental e suas implicações no mundo jurídico

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Resumo: Este estudo faz uma reflexão em relação ao abandono afetivo e seus principais elementos, como a omissão de cuidados na vida da criança/adolescente e suas consequências, a falta de convívio paterno-filial, bem como a responsabilidade civil decorrente do abandono. Para tanto, serão evidenciados os direitos que os filhos menores detêm de viver em ambiente familiar, serem criados e educados por seus pais, assim como os artigos civis e constitucionais brasileiros que garantem à criança todos esses direitos. Ainda, versa acerca da indenização aos genitores responsáveis pelo abandono afetivo, uma vez que tal deserção está relacionada com a questão familiar e fere a dignidade humana, que por sua vez é direito básico garantido aos descendentes.

Palavras-chave: Cuidado. Direitos. Danos Morais. Indenização. Família.

ABSTRACT: This study contemplates on affective abandonment and its main elements, such as the omission of care in the life of the child/adolescent and its consequences, the lack of paternal living, as well as the civil responsibility resulting from abandonment. In order to do so, the rights that the minor children have by living in a family environment will be evidenced, such as being raised and educated by their parents, and the Brazilian civil and constitutional articles that guarantee the child all these rights will be evidenced. It also deals with the compensation towards the parents responsible for the affective abandonment, since such desertion is related to the family issue and damages human dignity, which in turn is the basic right guaranteed to the descendants.

Keywords: Care. Rights. Moral Damages. Restitution. Family.            


INTRODUÇÃO

Mundialmente é reconhecido que os indivíduos em formação, crianças e adolescentes, tem inquestionavelmente direito a cuidados e amparo especial para se desenvolver com dignidade, a Constituição Federal do Brasil de 1988 preceitua, tendo em mira os princípios da dignidade da pessoa humana, o dever e responsabilidade dos pais garantirem a seus filhos menores inúmeros direitos, dentre eles, o direito à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer. Por serem fontes diretas na construção do comportamento e desenvolvimento da personalidade da criança/adolescente, cuja ausência destes comprometeria os vínculos sociais harmônicos em decorrência dos transtornos psicológicos sofridos pelo não suprimento de suas necessidades mais básicas e elementares.

Para que todos esses direitos sejam efetivados em sua plenitude, o convívio da criança/adolescente no seio familiar é determinante, haja vista estar em um período constante de desenvolvimento de personalidade e caráter, necessitando aprender os valores morais e sociais com os genitores. Entretanto, por meio das queixas dos genitores detentores da guarda da prole à vara da família, verifica-se que os aspectos necessários para o bom desenvolvimento do menor são gravemente feridos e seus direito violados. Destarte, cresce a procura pela reparação dos danos sofridos pela criança/adolescente em vias judiciais, objetivando restaurar as falhas que ocasionaram prejuízos à honra, à intimidade e à privacidade do indivíduo.

 Assim, este artigo objetiva trazer à tona a questão do abandono afetivo parental e os prejuízos decorrentes dele, posto que, havendo a quebra das obrigações legais, enseja aos pais a responsabilidade civil de responderem judicialmente pelo ato, surgindo aí o direito de a vítima ser indenizada por tal transgressão. Embora essa matéria ainda não esteja normatizada no ordenamento jurídico, a decisão de se condenar os genitores á reparação dos danos aos seus filhos dependerá das situações expostas ao caso concreto, da hermenêutica e da analogia adotadas e aplicadas pelo juiz responsável, tendo como norte as leis existentes.

Em virtude dos atos de negligência dos pais para com os filhos, há o surgimento de algumas indagações: o que qualifica o abandono afetivo sofrido pela prole como passível de indenização? Caso haja a indenização, isenta os pais de sua responsabilidade? Com o escopo de contribuir com as reflexões sobre tais questionamentos, no decorrer do trabalho serão apresentadas algumas discussões a respeito da percepção de família dentro e fora do ordenamento jurídico, a importância do cuidado dos pais para a formação integral da prole, bem como os danos ocasionados por sua omissão. Outrossim, como esses agravos impactam as ações judiciais como objeto de reparação por danos sofridos pelas crianças e adolescentes.


2 CONCEITO DE FAMÍLIA

2.1 Conceito de Família e suas alterações

O conceito de família se modificou no decorrer da história, uma vez que os valores sociais estão em constantes mudanças indo ao encontro da evolução da sociedade, na qual vai se desligando dos princípios provenientes das antigas civilizações para se adequar à nova realidade fática sociocultural.

Na Grécia Antiga a família era constituída nos moldes da monogamia, onde a figura do homem predominava sobre a mulher, o espoco da união era forjado inegavelmente na procriação de herdeiros. Nesse modelo de família, não é de estranhar a prerrogativa dissolução do matrimônio ser conferida somente ao homem, tendo ele o direito de possuir inúmeras mulheres. Enquanto a figura feminina cabia o dever de fidelidade para com o seu marido, e ser unicamente meio de perpetuação da espécie, devendo aturar todos os desmandos da figura masculina. A particularidade primordial desse modelo familiar é de que o paterfamilias detinha todos os seus integrantes sob sua dominação.

No Direito Romano não era diferente, o paterfamilias detinha praticamente poderes absolutos sobre os indivíduos integrantes da família, e estes, mulheres e filhos tinham que lhe obedecer a sua vontade, desprovidos de quaisquer direitos, seja de liberdade ou de expressão. Nota-se que não havia igualde entre homem e mulher.

O poder soberano centralizado nas mãos do paterfamília foi perdendo força no caminhar da história, de maneira que as mulheres e os filhos passaram a ter uma maior autonomia. Nesta esteira, consagra Gonçalves (2007, p. 15)  que “[...] instala-se no direito romano a concepção cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater”.

Diante da progressiva mudança, no Direito Romano, o afeto era essencial para um casamento obter êxito, pois sem a existência de tal sentimento, a sua dissolução seria inevitável.

Importante assinalar que, não se entendia por família tão somente aqueles provenientes dos laços sanguíneos, mas todos os indivíduos interligados ao mesmo chefe. Isto posto, vislumbra-se que poder do qual detinha o paterfamília sobre os demais componentes, era o pilar de sustentação do conceito de família.

A Idade Média foi um longo período da história que se estendeu do século V ao século XV. Seu início foi marcado pela queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e o fim, pela tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453.

O Período Medieval, muito conhecido como “Idade da Trevas”, por acreditarem que houve um retrocesso cultura em relação a Antiguidade Clássica, foi marcado pela predominância da Religião. Neste contexto histórico o cristianismo enfatizava a virgindade como algo sagrada a ser preservado, devido a isso, impugnava o matrimônio por repudiar a conjunção carnal.  Segundo Campos (1989, p. 5), “no primeiro século da igreja, sobretudo antes do reconhecimento oficial desta, o matrimônio cristão não existia”, o que demonstra ainda neste momento a não preocupação com constituição da família.

Contudo, para a perpetuação da espécie a conjunção carnal era essencial, diante dessa situação o Direito Canônico passou a legitimar o casamento, passando este ser a única forma de família a existir, sendo considerado um sacramento e por isso indissolúvel, o que Deus uniu, o homem não pode separar. Tem-se desta maneira, o conhecimento dos primeiros indícios de proteção à instituição familiar, frente a utilização do termo “indissolúvel”, trazendo à luz a concepção de que a família deveria ser salvaguardada.

Com a incorporação de novos valores, costumes e as consequências proporcionadas pelos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, bem como da Liberdade e Igualdade, exigiu em face da sociedade como um todo e o Direito Brasileiro um novo olhar para as novas configurações familiares, tendo em vista que aquele modelo patriarcal já não mais correspondia com o mundo dos fatos, o que ocasionou o reconhecimento de novas organizações, como por exemplo, a União Estável e a Família Monoparental. E mesmo frente a essa evolução, conquanto esteja expresso na Constituição Federal de 1988, a igualdade entre homens e mulheres e o repúdio ao preconceito, nosso Ordenamento Jurídico, ainda se mostra ausente admissão de novo modo de família, a título de exemplo, a Homoafetiva.

A família contemporânea não mais está construída ao entorno dos paterfamilias, o elo de ligação, a base de sustentação, é a afetividade entre os seus membros, sendo esta imprescindível na formação do indivíduo enquanto pessoa e cidadão.

2.2 As mudanças do conceito de família no sistema jurídico brasileiro

Com as contínuas transformações culturais impulsionadas pelos ideais sociais, descobertas científicas e os costumes, provocou alterações na sociedade e, consequentemente, na família, o que fez surgir a necessidade de progressivas modificações/inovações legislativas para conseguir atender as demandas do novo cenário social.

A Constituição Federal Brasileira de 1934 foi a primeira a reservar direitos à família como estrutura social e jurídica, impondo ao Estado o dever exclusivo de proteção à família, assim assegurados nos artigos 144 ao 147. O conceito de família na Constituição de 1934 sedimentava-se no fato de que a família só se constituía a partir do matrimônio civil. Assim sendo, o casamento religioso só teria efeitos legais se passasse pelo civil.

Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex-ofício, com efeito suspensivo.

Art 145 - A lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção às condições regionais do País.

Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento. Parágrafo único - Será também gratuita a habilitação para o casamento, inclusive os documentos necessários, quando o requisitarem os Juízes Criminais ou de menores, nos casos de sua competência, em favor de pessoas necessitadas.

 Art 147 - O reconhecimento dos filhos naturais será isento de quaisquer selos ou emolumentos, e a herança, que lhes caiba, ficará sujeita, a impostos iguais aos que recaiam sobre a dos filhos legítimos. (BRASIL, 1934, online).

Pode-se inferir que houve mínimas transformações trazidas pela Constituição Federal Brasileira de 1934 comparadas a de 1937, no entanto expressiva, como, por exemplo, a responsabilidade em educar a prole que antes era somente dos pais, passou a ser do Estado também, ademais, constatou-se a atribuição de igualdade a todos os filhos, independentemente se naturais ou legítimos, tal como a atenção do Estado para com a infância e a juventude. Os textos constitucionais de 1946, 1967 e 1969 (Emenda Constitucional n° 1 de 17.10.1969) mudaram timidamente em relação aos textos das constituições anteriores, pois permaneceu o dever de proteção à família, o casamento seguia indissolúvel e o assentimento do casamento religioso. A alteração que se nota é fundamentada na assistência à maternidade, infância e adolescência, evidenciadas na Constituição de 1946 no artigo 164: “É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência.” (BRASIL, 1946, online). A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa.

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2.3 A Carta Magna de 1988 e a família brasileira atual

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, intitulada constituição cidadã, alterou significativamente o conceito de família, visto que ampliou o conceito de família, devido a atender novamente a mudança ocorrida na sociedade, por esse motivo buscou fazer uma melhor análise do conceito de família diante da nova ordem social.

A batalha legislativa foi árdua, principalmente no tocante à emenda constitucional que aprovou o divórcio. O atual estágio legislativo teve que suplantar barreiras de natureza ideológica, sociológica, política, religiosa e econômica. Muito ainda, sem dúvida, será feito em matéria de atualização no campo da família. (VENOSA, 2005, p. 32).

Fica evidente que a nova constituição trouxe em seu bojo novidades que outrora eram inconcebíveis em outros momentos históricos. Em seus artigos 226 e 227 referem-se a família. Muito embora pareça um número reduzido de artigos para um assunto de extrema importância para a sociedade, apresentam conteúdo extremamente concentrado e relevante.  

A Carta Magna de 1988, pautada no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, exerce grande influência no foro da entidade familiar, uma vez que a família é considerada como ambiente de aperfeiçoamento e crescimento pessoal de seus integrantes. A partir dessa concepção, Marco Aurélio S. Viana expõe:

São significativas as repercussões da Carta Magna de 1988 no Direito de Família, [...]. Deduzindo os pontos fundamentais é possível alinhar: a) a família apresenta-se como base da sociedade e merece a proteção do Estado (art. 226, caput); b) o casamento é o seu modo de instituição (§ 1º); c) há igualdade jurídica entre os cônjuges (§ 5º); [...] g) elimina a discriminação relativa à filiação, assegurando-se aos filhos os mesmos direitos e qualificações, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção (art. 227, §6º). (VIANA, 1992, p. 29).

Portanto, os fundamentos básicos da família são refletidos por meio do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como o direito à liberdade, à igualdade e à afetividade, sendo esse último o de maior importância. Nesta esteira Paulo Luiz Netto Lôbo menciona: “Enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida não hierarquizada” (LÔBO, 2008, p. 1).

A nova carta magna não criou novas configurações de família no mundo dos fatos, haja vista já existirem há muito tempo, o que não havia era o reconhecimento e normatização pelo legislador. O novo texto constitucional passou a reconhecer três formas de família: a família matrimonial, a monoparental, a substituta a e a união estável, ao passo que as demais formas de constituição familiar deparam e afirmam-se apenas na jurisprudência ou na doutrina. São elas: família homoafetiva, anaparentais, paralelas, unipessoais e eudemonistas, mantendo o princípio consagrado já estabelecido nas constituições anteriores, que é a especial proteção do Estado.

2.4 Código Civil

O Código Civil de 1916 estabelecia que a única forma legítima de família era a constituída pelo casamento, de maneira que prescreveram cento e quarenta e nove artigos, do 180 ao 329, em que o casamento se apresentava como sendo indissolúvel, além do mais, diferenciava e discriminava as pessoas com vínculo de união sem o casamento e os descendentes tidos fora desse liame. Neste seguimento, Carlos Roberto Gonçalves determina:

O Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado, regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo patriarcal hierarquizada e, ao passo que o moderno enfoque pelo qual é identificada tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares, destacando-se os vínculos afetivos que norteiam a sua formação. (GONÇALVES, 2007, p. 16).

A inovação legal da estrutura familiar brasileira está de acordo com a definição de casamento “entre cônjuges” do artigo 1.511, do Código Civil de 2002, afastando a ideia de que a heterossexualidade é condição determinante para a realização do casamento. “Prioriza-se, portanto, a família socioafetiva à luz da dignidade da pessoa humana, com destaque para a função social da família, consagrando a igualdade absoluta entre os cônjuges (artigo 226, §5.º) e os filhos (artigo 227, § 6.º)” (LENZA, 2008, p. 758).

Somado a isso, por intermédio da Lei nº 11.340, de 2006 (art. 5º, inciso II, parágrafo único), tem-se como preceito uma recente regulamentação jurídica do conceito de família disposta como sendo a “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual” (BRASIL, 2015, p. 1837).

À vista disso é importante notar que a legislação busca frente às diversas estruturas de família existentes na atualidade a proteção e preservação das condições fundamentais de existência e desenvolvimento de todos os indivíduos presentes no corpo social, sustentando que a família é a base para as demais organizações. A partir desse aspecto a forma de relação que é priorizada pela lei é aquela sustentada pela harmonia entre as vontades dos sujeitos livres e o afeto existente entre eles, que influenciará no desenvolvimento de cada indivíduo, colaborando para o progresso da sociedade como um todo.

Sobre os autores
Luiz Roberto Prandi

Doutor em Ciências da Educação-UFPE Mestre em Ciências da Educação-UNG Especialista em: Metodologia do Ensino Superior Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia Gestão Educacional Gestão e Educação Ambiental Educação Especial: Atendimento às Necessidades Especiais Educação Especial: Com Ênfase na Deficiência Múltipla Educação do Campo Gênero e Diversidade Escolar Professor Titular/Universidade Paranaense - UNIPAR

Valdir Francisco Pereira

Especialista na área de Educação Especial e em Gestão e Docência na modalidade de Educação à Distância. Graduado em História pela Universidade Paranaense e graduando do curso de Direito pela Universidade Paranaense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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