Pessoas com deficiência: uma questão de direitos humanos

Do alijamento à inclusão

Leia nesta página:

O texto discorre acerca dos modelos de tratamento dispensados às pessoas com deficiência ao longo do tempo.

Questões relativas às pessoas com deficiência relacionam-se, indubitavelmente, aos direitos humanos. Atualmente, essa afirmação dificilmente poderá ser questionada. Porém, nem sempre foi assim.

A visão acerca da deficiência, em época passadas, partia de uma percepção caritativa, visão esta que faz parte de uma história de perseguição, exclusão, menosprezo e discriminação. Desde tempos remotos até nossos dias, existiram enormes contradições no tratamento outorgado às pessoas com deficiência.

Como alude Laín Entralgo em sua obra Enfermedad y Pecado[1], as concepções acerca da deficiência oscilaram, desde a antiguidade, entre dois extremos: uma visão que considerava a deficiência como enfermidade e outra que a considerava como pecado.

Diante desses extremos, flutuaram as respostas jurídicas e sociais acerca da deficiência e, no decorrer do tempo, é possível distinguir três modelos de tratamento, os quais foram dispensados às pessoas com deficiência.

Ao explaná-los recorremos à doutrina de Agustina Palacios em sua obra El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad[2], que identifica os ditos modelos como: modelo de prescindência, modelo reabilitador ou médico e modelo social.

No dizer da autora, o primeiro modelo – de prescindência – supõe que a causa que origina a deficiência tem um motivo religioso. Diante desse paradigma, as pessoas com deficiência são consideradas desnecessárias por diferentes razões: não contribuem com a comunidade, guardam mensagens diabólicas e são consequência da raiva dos deuses. Portanto, suas vidas não merecem ser vividas. Em decorrência dessas premissas, a sociedade prescinde das pessoas com deficiência por meio de políticas eugênicas ou confinando-as em espaços destinados aos “anormais”.

Sidney Madruga[3], subdivide esse modelo no submodelo eugenésico, situado na antiguidade clássica, com a prática do infanticídio e no submodelo marginalização, ocorrido durante a Idade Média, cuja característica é a exclusão, seja por compaixão, seja por medo, por considerar a pessoa com deficiência objeto de malefícios. Palacios identifica, nesses dois pontos de vista, um denominador comum: a dependência e a submissão. Tais pessoas são tratadas como objeto de caridade e consideradas como sujeito de assistência.

Como exemplo de aplicação desse modelo, trazemos aqueles citados por Madruga, como a Lei das XII Tábuas, apregoada no Fórum Romano. A Tábua IV, que tratava do pátrio poder, de jure pátrio, e outras matérias de direito de família autorizava o pai a matar seu filho “defeituoso”.[4]

Voltando a dialogar com Agustina Palacios, o segundo modelo – reabilitador ou médico – tem como filosofia considerar que as causas que originam a deficiência não são religiosas, mas científicas (derivadas de limitações individuais das pessoas). Neste arquétipo, as pessoas com deficiência já não são consideradas inúteis ou desnecessárias. Busca-se reabilitá-las e o fim primordial que se persegue é “normalizá-las”, embora isso implique ocultar a diferença que a deficiência representa. Aqui, o problema passa a ser a pessoa, com suas diversidades e dificuldades, a qual precisa de ser reabilitada –psíquica, física, mental e sensorialmente.

Segundo Madruga, o modelo médico surge ao fim da Segunda Guerra Mundial, ante os efeitos laborais suportados pelos “feridos de guerra” e propicia o surgimento dos serviços de assistência sociais institucionalizados, a educação especial, os benefícios de reabilitação médica e as cotas laborais[5].

Quanto ao terceiro modelo – denominado social – Palacios descreve-o como aquele que considera que as causas que originam a deficiência não são religiosas, nem científicas, mas, em grande medida, sociais. Nessa filosofia, se entende que as pessoas com deficiência podem contribuir com a sociedade na mesma medida que as demais pessoas, mas sempre com a valorização e o respeito pela diferença. Esse molde, no dizer na autora, encontra-se intimamente relacionado com a assunção de determinados valores intrínsecos aos direitos humanos. Aspira potencializar o respeito pela dignidade humana, a igualdade e a liberdade pessoal, propiciando, com isso, a inclusão social e a sedimentação de determinados princípios: vida independente, não discriminação, acessibilidade universal, normalização do entorno, diálogo civil, entre outros. Parte da premissa de que a deficiência é, em parte, uma construção e uma forma de opressão social; o resultado de uma sociedade que não considera as pessoas com deficiência. Ainda, destaca a autonomia da pessoa com deficiência para decidir acerca de sua própria vida e centra-se na eliminação de qualquer tipo de barreira a fim de proporcionar uma adequada equiparação de oportunidades.

Em complemento, segundo Marcelo Medeiros e Débora Diniz, o modelo social surge na década de 1960, no Reino Unido, como reação às abordagens biomédicas. Destacam esses autores que a ideia básica do modelo é a de que a deficiência não deve ser entendida como um problema individual, mas como uma questão eminentemente social, transferindo a responsabilidade pelas desvantagens das pessoas com deficiência de suas limitações corporais para a incapacidade da sociedade de prever e ajustar-se à diversidade. Dispõem, ainda, que a deficiência é uma experiência resultante da interação entre características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele vive, isto é, da combinação de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de perda ou redução de funcionalidade (“lesão”) com uma organização social pouco sensível à diversidade corporal.[6]

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Sob esse ponto de vista, o “problema” não está no indivíduo, mas no próprio comportamento estigmatizado em relação àqueles considerados “diferentes”. O “problema”, nesse aspecto, tem origens sociais, econômicas, culturais e históricas, e sua solução depende de uma sociedade acessível a todos, sem distinção. Significa dizer que a deficiência é uma questão de direitos humanos. Dessa opinião, Agustina Palacios relaciona o paradigma social com os valores concernentes àqueles direitos, indicando que esse padrão foi consequência de uma longa luta, levada a efeito pelas próprias pessoas com deficiência.

Considera como um dos frutos dessa luta, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York em 30 de março de 2007 -  instrumento este que representa a evolução que vem ocorrendo no campo do Direito a partir da década de 1980 - que abriga o modelo social na moderna conceituação de deficiência:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. ”[7]

No Brasil, essa evolução foi sedimentada pela Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015. O normativo institui a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e também alberga em seu art. 2º[8] o modelo social como critério para análise da deficiência. A legislação pátria, dessa maneira, elege como corolário o respeito aos direitos humanos das pessoas com deficiência, com o fito de proporcionar-lhes vida digna, na qual a diferença não seja causa de preconceitos e discriminação.


Notas

[1] In PALACIOS, Agustina: El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. CERMI. Madrid: Ediciones Cinca, 2008, p. 25.

[2] PALACIOS, Agustina: El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. CERMI. Madrid: Ediciones Cinca, 2008.

[3] MADRUGA, Sidney. Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 34

[4] MADRUGA, Sidney, op. cit., p. 35.

[5] MADRUGA, Sidney, op. cit., p. 35.

[6] MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora. Envelhecimento e deficiência. Disponível em: http://www.en.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/Arq_09_Cap_03.pdf Acesso em: abr. 2018.

[7] Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, art. 1º.

[8] Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

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Sobre a autora
Valeria Cristina Gomes Ribeiro

Auditora Federal de Controle Externo, atualmente coordenadora da comissão de acessibilidade do TCU.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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