5. Um Estado Sem Visão ou Razão Social
O poder do Estado vem de imagens fortes e das comunicações dramáticas ou sedutoras que possa produzir. Portanto, esse poder não provém mais da lei, como naquele suposto Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX. O Estado tentará, sem dúvida, algumas adequações, reformulando partes de sua estrutura e qualificando pessoal. Mas será suficiente [17]?
Os concursos públicos, especialmente para a magistratura, vêm embutidos de especial atenção ao social, exigindo dos novos juízes mais sensibilidade para o espírito da lei, para a subjetividade – para a formação da livre convicção baseada na função e na relevância social da lei e não a mera atenção à eficácia normativa, pois que não há norma eficaz sem reconhecimento e acolhimento social. Trata-se da subjetividade que agrega valor (objetivamente, portanto), a exemplo do trabalho voluntário/social, pois a melhoria da qualidade das relações humanas (genéricas) transforma o profissional em uma melhor pessoa.
Para muitas empresas, o trabalho comunitário é altamente lucrativo, pois o trabalhador que se doa à comunidade, gratuitamente, será capaz de doar-se integralmente para manter seu trabalho e produção em alta. Portanto, há incremento na produção, o social é produtivo porque se o indivíduo é capaz de se doar ao social (genérico, coletivo e difuso por definição) ele também será capaz de se doar à produção (limitada ao fazer laborioso e ao consumo imediato). Aliás, diz a regra da lógica formal que quem pode o mais (investir no social), pode o menos (incrementar a produção individual).
Mas mesmo nesse caso, em que se está voltado de coração à solução dos problemas sociais, mesmo aí as medidas tópicas devem ser racionalizadas, equilibradas, pois não há milagres econômicos ou varinha de condão que se preste à multiplicação dos pães. Vejamos, como exemplo, o que disse o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva no primeiro pronunciamento oficial antes da posse:
O povo brasileiro sabe, entretanto, que aquilo que se desfez ou se deixou de fazer na última década não pode ser resolvido num passe de mágica. Assim como carências históricas da população trabalhadora não podem ser superadas da noite para o dia. Não há solução milagrosa para tamanha dívida social, agravada no último período. Mas é possível e necessário começar, desde o primeiro dia de governo (Silva, 29 out. 2002).
Em seguida, mas de forma pragmática ou técnica, o que inclui o desenvolvimento da própria área da ciência e da tecnologia (ciência e tecnologia desenvolvendo mais racionalidade e vice-versa), acrescentou o presidente eleito:
Queremos construir um amplo mercado de consumo de massas que dê segurança aos investimentos das empresas, atraia investimentos produtivos internacionais e represente um novo modelo de desenvolvimento e compatibilize distribuição de renda e crescimento econômico. A construção dessa nova perspectiva de crescimento sustentado e de geração de emprego exigirá a ampliação e o barateamento do crédito, o fomento ao mercado de capitais e um cuidadoso investimento em ciência e tecnologia. Exigirá também uma inversão de prioridades no financiamento e no gasto público, valorizando a agricultura familiar, o cooperativismo, as micro e pequenas empresas e as diversas formas de economia solidária (Silva, 29 out. 2002).
Na política se impõem modificações urgentes (reformas políticas do Estado), como: autonomia do Banco Central; fidelidade partidária; veto popular (seguindo o modelo norte-americano); voto distrital (com o que se deveria evitar que o quociente eleitoral pudesse eleger um candidato sem nenhuma expressividade eleitoral: 200 votos); equalização da proporcionalidade parlamentar entre Estados e regiões, corrigindo as distorções existentes. Porém, de forma negativa e perversa, essa mesma equalização da vida pública, se não acompanhada da elaboração ou construção de uma ampla consciência política e técnica (quando se busca por meios razoáveis - dialogando, por exemplo -, mas atentos às finalidades sociais), é capaz de gerar desvios, distorções, deformidades técnicas e políticas (públicas) ainda mais graves, como vemos no dia-a-dia e a exemplo do que passamos a expor.
6. Outro Olhar Crítico sobre o Estado Irracional: Estado ilógico ou 2º desencantamento do mundo?
De outra forma, retomando aspectos globais, com a perda da legitimidade o Estado perde sua eficiência, vigência, evidência, potência (onipresente, onipotente, onisciente). Torna-se prepotente, pois que tenta (em vão) impor-se pela força, limitado à pré-potência. Podemos dizer que vem da falta de uma ética pluralista justa e universal.
De visionário (vim, vi e venci), o Estado passa à condição de coadjuvante, tele-expectador e nem sempre ativo ou consciente das regras exibidas – o Estado perde(u) visão e, às vezes, é o próprio alvo. Essa perda de foco, de enfoque estatal, deve-se especialmente ao fato de que o mundo e a realidade presente no ato de criação do Estado-nação não existem mais. A dinâmica, a transformação, a mudança, enfim, a incerteza e a instabilidade provocadas sucessivamente abalaram de modo profundo noções clássicas, rígidas, controláveis e controladoras: a essência do próprio Estado confere a essas condições o status de cláusulas pétreas. Porém, hoje as pedras desmancham no ar. Duas heranças dessa rigidez são: a segurança pública e a segurança jurídica.
Por isso, a comunicação virtual (Internet, Web), em tempo real, instantânea, sobrepondo-se às fronteiras, entraves e obstáculos (burocráticos, legais e utilizados como forma de limitação, intimidação e controle) é, talvez, a mais perceptível descaracterização das estruturas e dos sistemas estatais. Com a rede, a descaracterização e o dano são apenas potencializados, principalmente se pensarmos que a economia volátil vem fazendo o resto do serviço há cerca de duas décadas.
Ainda podemos imaginar que alguns mecanismos modernos potencializam a transparência e a democratização do acesso ao Estado, e embora isto não seja completamente falso, esse fato é uma possibilidade aberta apenas para um Estado voltado a este fim. Esses meios também potencializam o surgimento de mecanismos de corrupção e concentração de poder.
Assim, a exemplo das ferramentas de software e-government, particularmente as baseadas nas tecnologias da Web, ferramentas interativas têm sido criadas como um novo ambiente tecnológico para comunicação entre cidadãos e governo. Os mais ingênuos, no entanto, esquecem-se de que em diferentes grupos culturais e em diferentes sociedades, existem diferenças nas culturas de organização, e têm sido essas culturas as fontes de conflitos, pois as tecnologias em geral têm a tendência de uniformizar e massacrar culturas minoritárias. Isto já veio com o rádio e com o Cinema (com a TV o processo foi acelerado), mas é a Internet o maior agente neste momento. Contudo, há uma diferença fundamental: ela é a mais democrática forma de comunicação virtual, uma vez que cada um pode funcionar como um pólo cultural. Já no nível governamental a coisa toda não se dá bem assim, pois a centralização e a burocratização são barreiras reais, a ponto de se poder dizer que a Internet, a princípio, mais divide do que une os cidadãos, quando concentra poder nas mãos do Estado. Lembremo-nos de que a tendência das agências estatais é centralizar e cruzar as informações que possuam dos cidadãos.
Autores como Hood (1998) e Thompson (et al., 1990), colocam isso de forma instigante ao salientar que a análise da teoria cultural sugere que se acontecer alguma mudança tecnológica, ela pode levar a visões divergentes da própria modernização social. Embora numa análise do ponto de vista antropológico - mas seguindo-se essa mesma linha do desenvolvimento cultural como um modo de descrever a sociedade e suas instituições -, pode-se sugerir que há quatro mitos culturais em que grupos e instituições respondem a certos ambientes centralizados e massificados.
Desse prisma, tende-se a interpretar que toda a experiência humana busca uma unidade na diversidade, de modo semelhante ao comportamento dos sistemas ecológicos e vivos na natureza. Nesses sistemas buscamos analisar atitudes que possibilitem adaptações, porque na sua ausência os conflitos acontecem: quando a adaptação é difícil ou demorada. Esta seria a tendência tecno-social sem um Estado interventor e burocratizado, e somente neste sentido a tecnologia exerceria um expressivo papel de liberação das forças vivas da sociedade. Da mesma forma, só nesse modelo liberalizado a tecnologia poderia incrementar o exercício da democracia social, cultural e política.
Do contrário, essa tecnologia ligada ao Estado não se mostra produtiva, e ainda que originalmente tenha sido relacionada para estudos de ecossistemas e estivesse ligada à teoria cultural de Thompson [18]: onde analisa as melhorias em serviços públicos por meio de ferramentas e-government. Em resumo, os quatro mitos dessa interseção da tecnologia nos mecanismos do Estado, que sinalizamos a seguir, indicam o sonho e a vontade, o bem e o mal lado-a-lado. Em síntese, os mitos são o próprio reflexo da fabricação e do emprego das tecnologias políticas.
1º Mito: Tecnologia Benigna
O mito nos diz que o mundo tecnológico é generoso: a bola sempre voltará no ponto de partida, à base, independentemente da maneira que a arremessamos. Neste caso, a instituição responsável pode ter uma atitude baseada na não-intervenção. Esse mito também encoraja e justifica tentativas e erros: experimentos arrojados em face da incerteza (Thompson et al, 1990, p. 27).
2º Mito: Tecnologia Efêmera – oposta à tecnologia benigna
O mundo tecnológico, por assim dizer, é um lugar assustadoramente cruel e o menor deslize pode resultar no seu completo colapso. A instituição responsável deve tratar a tecnologia com muito cuidado – um pequeno deslize leva a bola para fora do alvo. Esse mito é a justificativa para aqueles que resistiriam às inovações tecnológicas, especialmente em sistemas relacionados de grande escala, e usariam a tecnologia somente de maneira modesta e descentralizada.
3º Mito: Tecnologia Perversa ou Tecnologia Inconstante
Essa perspectiva nos diz que a tecnologia é benigna na maior parte das ocorrências, mas é vulnerável a uma ação imprevista, como um arremesso ocasional da bola na borda de um "disco". A instituição responsável deve, portanto, ajustar-se diante de ocorrências notáveis – nem um experimento desenfreado nem tampouco um comportamento extremamente cuidadoso dos outros dois mitos é apropriado: tudo depende do mapeamento e controle da linha divisória entre esses dois estados. Especialistas tecnológicos serão vitais para essa tarefa.
Por fim, em contraste com todas as outras três, temos o quarto mito – um mito realístico.
4º Mito: Tecnologia Excêntrica (um mundo aleatório)
A bola (as probabilidades) pode(m) rolar para qualquer lugar. Instituições com essa visão de tecnologia não controlam o vetor tecnológico e nem aprendem realmente: as instituições responsáveis; apenas contam com ocorrências irregulares, experimentando os produtos da contínua inovação tecnológica.
O conjunto dos mitos faz perceber o que diz o info-filósofo Pierre Levy (1993), quando conclui que a "tecnologia não é nem boa, nem má, nem neutra", e que tudo continua a depender da ação humana. Enfim, por definição, a tecnológica é um atributo político da vida moderna e será tão mais politizada quanto mais próxima dos assuntos do Estado e da prática política popular: a tecnologia não é nem boa, nem má, nem neutra; a tecnologia é política.
7. Estado Latente: potência natural?
A política no Estado Irracional corre o risco de ser tomada como o virtual que não foi atualizado [19]. De provável que era, tudo se tornou meramente possível, ou melhor, uma probabilidade que se tornou impossível ou no mínimo improvável. Portanto, a política necessita dessa energia que revitaliza e leva para além do status inicial, enfim, que leva do interesse privado à consciência pública, como vemos em Hanna Arendt (1991):
A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se das demais. Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores (p. 58).
Desse ponto de vista, o virtual pode ser uma ótima fonte para se retomar a excelência, porque reinterpreta a noção de espaço público e da experiência discursiva, a exemplo dos inúmeros manifestos de resistência publicados na net. Mas, diferentemente dos manifestos de resistência cultural impressa, que - ou são publicados em órgãos de imprensa alternativos ou custeados pelo próprio autor (a exemplo de toda a produção literária marginal de Plínio Marcos) - acabam limitados a um pequeno público, porque a circulação é pequena, o que se publica na rede é de domínio público e tão visível quanto qualquer página oficial do Estado ou então representativa do grande comércio real ou virtual.É, pois, necessário transformar-se em experiência política concreta, aqui sinônimo de esfera pública.
Da mesma forma, é necessário colocar a excelência da política ao alcance de todos ou iniciar a provocação da excelência (virtus ou virtude) que há em todos – é preciso sublevar o ídion: aquele tipo que se diz sem-causa. De forma similar, é preciso ativar a potência que há em todos nós, no dizer de Canivez (1991):
Por um lado, pode-se dizer com Kant que a liberdade é o único direito inato que o indivíduo possui. Mas é um direito absolutamente fundamental, no sentido de ser a condição de aquisição de todos os outros direitos: não há direitos (propriedade, livre comunicação etc) a não ser para um ente livre. Por outro lado, o homem em estado de natureza define-se como ser razoável, isto é, não como um ser que já desenvolveu seu raciocínio, inteligência etc, mas que pode desenvolve-los. Define-se, para retomar a expressão de Rousseau, por sua perfectibilidade; é o animal que é razão em potência, animal dotado de razão. O direito natural repousa pois sobre a consciência que o indivíduo tem de sua natureza de ser racional (p. 88).
Por isso, podemos entender que a formalidade (impessoalidade, imparcialidade), em tese desenvolvida no interior da burocracia, é resultado ela mesma de longo processo histórico da própria razão (ou do engenho humano em criar artefatos e artifícios de certa forma controlados e com certa dose de consistência). A mesma engenhosidade, portanto, que poderia ser analisada de acordo com as implicações e imbricações que se desenvolva com a política em seu sentido amplo. Basicamente, pode-se dizer que na chamada razão de Estado se estendem as motivações do Estado em manter algum sigilo sobre sua base de dados, uma vez que na República é racional e lógica a defesa do interesse público: há dados que, se forem revelados, podem comprometer a segurança pública. Outra questão será discutir se cabe à Constituição definir os temas pertinentes a essa base de dados e por quem ela seria manipulada – quais são os limites democráticos?
Também podemos dizer que o sistema político seja controlativo, na medida em que o sistema político é o maior dos artefatos construídos, exatamente com a finalidade de buscar um maior ou mais extensivo controle dos cidadãos (não só a razão, como também a cibernética aplicada ao Estado). Mas será que o engenho humano é dirigido à dominação e por isso a liberdade vem sempre em anexo?
De qualquer modo, a racionalidade humana inicial e fundante, pode-se dizer, está na potência, na verossimilhança de analisarmos (racionalmente) a política, visto que somos potencialmente racionais e essencialmente políticos. Como animais sociais e políticos, geramos intencionalidade para o grupo e objetivamos a vida social, destacando-nos dos outros animais sociáveis. Mas a racionalidade política é só potencialmente humana, ainda poderíamos dizer, tendo em conta que nem todos participam da política (da vida pública) com efervescência – é de se lembrar que a política para muitos não passa de rumor e, via de regra, de maus rumores. Mas, seja como for, a política implica na condição de criarmos condições públicas, gerais, seguindo o princípio da universalidade, em que se desenvolva o dever de respeitarmos o direito à possibilidade de cada um, desenvolver sua potencialidade racional. Isto é, o direito de um implica nos direitos dos outros e vice-versa, e nessa base de universalidade estão, enfim, erigidos os direitos políticos humanos - essa também será a segurança política e filosófica dos direitos humanos. Há algo, enfim, mais imparcial e impessoal do que as declarações de direitos humanos?
O Estado Irracional é fruto de um conjunto de potencialidades, virtualidades humanas, políticas e técnicas, que não foi atualizado, que não se tornou realidade. É o nosso próprio Estado Contemporâneo, incapaz de compreender a dinâmica da técnica e a necessária concretização: não só no sentido técnico mas também no sentido lógico e político, onde a prática deve corresponder ao discurso e não se adaptar a ele. É um Estado de Direito Sem Garantias Reais (de direitos mais virtuais do que reais), que ainda carece de uma base conceitual realmente universal para a qual possamos propor uma ética pluralista, com sustentação lógica e teleológica.
Pois bem, esse Estado, com esta sustentação universal e com base na ética de responsabilidade de Max Weber, chamaremos de Estado Virtual.