Nós, os viúvos do Brasil

A confiança legítima como esquecido dever jurídico administrativo

Leia nesta página:

Num país onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, onde crises econômicas ameaçam direitos de diversas ordens, faz-se mais do que necessário lembrar-se do princípio da confiança legítima.

Em tempos de crise nacional, os rumos das relações têm se tornados incertos. Compromissos antes assumidos pela Administração Pública, seja com as empresas ou com os cidadãos, são abruptamente suspensos e planos são desconstituídos por força de contingências politicas e econômicas.

Muito comum que novas decisões acabem sendo tomadas administrativamente, cortando adicionais de servidores, alterando jornadas de trabalho, extinguindo expedientes e desconstituindo relações jurídicas.

Todavia, o futuro não pode ser assim tão incerto no plano dos direitos, mesmo porque, não vivemos mais num Estado déspota onde a vontade de um particular faz as leis e sua ação o comportamento estatal. A expressão que consagra esse despotismo – L’État c’est moi (O Estado sou eu) - famosa fala do Rei francês Luis XIV, não prevalece mais num Estado Democrático de Direito, onde as atitudes de um Estado representam a vontade formalizada de um povo simbolizado por seus representantes democraticamente eleitos. 

Por isso mesmo, esse mesmo povo que é o detentor de todo o poder do Estado – não existe, nesse sentido, expressão melhor do que aquela constante nos termos do parágrafo único do artigo 1º de nossa Constituição Federal – espera de seu Estado a concretização de compromissos assumidos, os quais, muitas vezes, firmados em relações jurídicas de muito tempo atrás, perpetuados pelo tempo e acreditados como sólidos.

O Brasil, como jovem República Democrática, tem muito que aprender com outros países mais desenvolvidos, inclusive nesse campo jurídico. Talvez por isso valha a pena trazer um ensinamento vindo da Alemanha de 1956, quando o caso de uma viúva naquele país trouxe um precedente jurídico que mudou a forma de pensar da Administração Pública.

Vamos ao caso: a dita senhora, residente da banda Oriental da Alemanha, foi advertida pela Administração Pública do lado Ocidental alemão que era beneficiária de um direito à pensão decorrente do falecimento de seu marido. Muito grata, a viúva se dirigiu ao lado Ocidental a fim de formalizar o recebimento de sua pensão, por lá passando a residir. Certa feita, entretanto, após muitos anos, a mesma administração que lhe deferira os benefícios reviu o procedimento adotado e, então, chegou a conclusão de que o citado beneficio havia sido dado de modo ilegal, razão pela qual sua anulação era imponível. O caso chegou à máxima instância decisória administrativa da Alemanha – o Tribunal Administrativo Superior de Berlim – que decidiu manter o benefício, mesmo que suas raízes tivessem sido reconhecidamente ilegais. A razão invocada foi muito mais do que a lei, mas a confiança da viúva, que mudara toda a estrutura de sua vida por ter confiado na pretensão que haviam lhe ofertado e acreditado na legitimidade do que obtivera, razão pela qual a abrupta retirada seria ofensa à boa-fé da cidadã.

O caso alemão, em ampla significação, trata de segurança jurídica, um dever imposto ao Estado frente aos seus cidadãos de manter uma postura uniforme, coesa, de ideias e comportamento coerente, sem rompantes, cortes abruptos de benefícios ou sustações inesperadas de direito. Doutro lado, o instituto da segurança jurídica corresponde ao direito de todo cidadão de viver e se sentir numa sociedade onde seus direitos sejam conhecidos e seguramente efetivados, a despeito de quaisquer eventos externos ou reveses internos.

Num país onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, onde crises econômicas ameaçam direitos de diversas ordens, faz-se mais do que necessário lembrar-se do princípio do Direito Administrativo da confiança legítima. Como base nesse luminar, o Estado brasileiro deve reconhecer a parede que é o fim da linha de suas ações desesperadas de reverter problemas econômicos à base de restrições nos direitos alheios. Conforme observa Canotilho[1]:

“o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”.

E quando se fala em contenções, limites e reduções de benefícios trabalhistas e da seguridade social são os primeiros alvos. Bem por isso que, no último ano, foram as áreas mais tingidas com leis ceifadoras de direitos então ofertados. Exemplo disso foram as Medidas Provisórias 664 e 665, ambas editadas em 30 de dezembro de 2014, as quais trouxeram alterações profundas aos direitos trabalhistas e previdenciários dos servidores públicos e dos trabalhadores comuns.

Patente, portanto, que a confiança do cidadão brasileiro vem sendo constantemente abalada por uma Administração inquieta, essa “dona mandona, volúvel e que gera sérias desconfianças”. Como ensina o jurista administrativista Celso Antônio Bandeira de Melo (Curso de Direito Administrativo, 18ª ed, São Paulo: Malheiros, 2005, p.427):A Administração não pode ser volúvel, errática em suas opiniões. La donna è móbile -- canta a ópera; à Administração não se confere, porém, o atributo da leviandade.

Falando-se em confiança legítima e dever da Administração de demonstrar segurança, como não lembrar o emblemático problema de âmbito nacional gerado pela destemperada decisão do CONTRAM – órgão nacional de trânsito com poder normativo – que após assustar uma vasta categoria de cidadãos que dirigem seus veículos com a obrigatoriedade da posse de extintores em automóveis, em setembro deste ano voltou atrás em sua norma, repercutindo num prejuízo gigantesco tanto para os fornecedores de extintores que havia abastecido seus galpões com base na nova norma de trânsito, quanto em relação aos motoristas que, assustados, correram contra o tempo para respeitar a dita norma.

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Onde está a proteção da confiança? É possível ainda confiar num órgão de trânsito que se mostra tão tresloucado? E o prejuízo, quem reparará?

Tal contexto foi só um exemplo da violação, entre tantas outras, desse instituto jurídico do Direito Administrativo brasileiro, tão desrespeitado. Vale ressaltar que um cidadão que não tem sua confiança protegida ou reparada em caso de violação recebe um tácito incentivo que não deve confiar nas próprias normas de sua sociedade, o que o respalda a cometer violações, tal como o Estado comete, numa replicação ininterrupta pelo desprezo às normas.

Não é mesmo nenhuma surpresa que segundo pesquisa realizada pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Índice de Percepção no Cumprimento das Leis, de acordo com a pesquisa, 82% dos entrevistados reconheceram que é fácil desobedecer às leis no Brasil (http://www.conjur.com.br/2014-jul-06/aumenta-desrepeito-leis-pais-pesquisa-fgv).

Daí que devemos ter cautela em tempos volúveis como este. Contratos firmados com a Administração Pública devem ser vistos com prudência. O desrespeito a eles e consequente descumprimento pelo Estado é quase uma lamentável expectativa. Mais prejudicial ainda é o impacto sobre os cidadãos trabalhadores e servidores deste país, agora atormentados por um ordenamento cada vez mais reduzidos salarialmente.

Obviamente que isso não impede o acesso ao Judiciário para barrar todas essas violações. Isso é algo que tem de ser feito. A confiança do cidadão é algo que merece ser recompensada pelo Estado, máquina política que nada mais é do que uma massa de representação social. Não possui vontade própria, pois age em nome de quem representa, daí que absolutamente contraditório que surpreenda com súbitas mudanças normas pacificadas. O respeito e a confiança não é algo afastável sob o pretexto de crises, senão a crise moral de um administrador público desleal.

O Direito brasileiro, todavia, ainda tem muito que se concretizar. Nisso também confia a sociedade.


[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. (reimpressão). Coimbra: Almedina, 1999.

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Sobre os autores
Amanda de Melo Rabêlo

Advogada. Auditora em Saúde. Especialista em Direito Penal e Direito Eleitoral.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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