Direito penal de emergência e a base constitucional do sistema jurídico penal e processual penal

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22/05/2018 às 20:48
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Estudo das bases constitucionais do sistema jurídico penal e processual penal e o consequente regime de garantias, que deve guiar os aplicadores da lei penal, bem como o legislador.

Introdução

A escolha política de um Estado Democrático de Direito faz com que o sistema penal e processual penal tenha sua base na Constituição, conferindo um conjunto de garantias ao cidadão contra excessos por parte do Estado. Contudo, a sociedade contemporânea, que vive um constante medo da violência urbana passou a demandar, cada vez mais, a atuação do Estado no âmbito penal, de modo a violar muitas dessas garantias, inclusive com a elaboração de leis penais de emergência.


1. Verificação constitucional das bases do sistema jurídico penal e processual penal 

As normas de Direito Processual Penal e de Direito Penal estão relacionadas à opção política do Estado, de modo que a escolha por um Estado Democrático de Direito enseja uma série de consequências, especialmente em matéria processual.

A Constituição Federal de 1988, no art. 1º, estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito  e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, bem como a cidadania.

De acordo com as lições de Lenio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais, “são princípios do Estado Democrático de Direito: A – Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; B – Organização Democrática da Sociedade; C – Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como estado “de distância”, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado “antropologicamente amigo”, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; D – Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades; E – Igualdade, não apenas como possibilidade forma, mas, também, como articulação de uma sociedade justa; F – Especialização de Poderes ou de Funções, marcada por um novo relacionamento e vinculada à produção dos “resultados” buscados pelos “fins” constitucionais; G – Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; H – Segurança e certeza jurídicas[1]”.

Como se vê, no Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade possui especial destaque, tratando-se de princípio fundante. No entanto, cumpre observar que não basta simplesmente a existência de uma lei a tratar do tema, a lei deve ser voltada à realização da justiça e da igualdade.

Acerca deste tema, José Afonso da Silva ensina que “deve, pois, ser destacada a relevância da lei no Estado Democrático de Direito, não apenas quanto ao seu conceito formal de ato jurídico abstrato, geral, obrigatório e modificativo da ordem jurídica existente, mas também à sua função de regulamentação fundamental, produzida segundo um procedimento constitucional qualificado”.[2]

Desse modo, é possível concluir que do Estado Democrático de Direito se depreende a necessidade de um procedimento justo e adequado de acesso e concretização de direitos.

Hermínio Alberto Marques Porto ensina que da escolha política do Estado “decorre a opção ideológica de determinado Estado para dar prevalência ou não aos direitos fundamentais dos indivíduos. Como reflexo da democratização de determinada Nação o processo passa a ser tido como um instrumento posto ao cidadão com o status de garantia constitucional. Em uma sociedade democrática o processo é visto como um dos modos de atuação política[3]”. 

Assim sendo, o Direito Penal e o Direito Processual Penal são subsistemas de controle social formal e, como tal, são condicionados ao modelo social que, no caso brasileiro, é o Estado Democrático de Direito.

Pode-se afirmar, portanto, que as normas de processo penal, no Estado Democrático de Direito, possuem um sentido meramente instrumental, servindo apenas para indicar o procedimento que será seguido, o qual deve estar em perfeita consonância com os direitos e garantias constitucionais, sempre buscando proteger o acusado de eventuais arbitrariedades estatais.

Marcelo Augusto Custódio Erbella ensina que “disso extrai-se que, num Estado Democrático de Direito, o Direito Penal e o Direito Processual Penal não podem ser desenfreados, arbitrários, ilimitados, como não o são, principalmente porque o direito fundamental atacado é a liberdade[4]”.

Desse modo, conclui-se que o Estado possui o poder-dever de punir aqueles que infringem a lei penal, no entanto, tal poder-dever está submetido ao devido processo legal. Neste cenário, em decorrência da necessidade de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, afastando arbitrariedades por parte do Estado, foi desenvolvido o modelo garantista de direito.

Hermínio Alberto Marques Porto e Roberto Ferreira da Silva ensinam que “são incontestáveis os axiomas postos pela ideologia do garantismo a fim de tutelar os indivíduos contra possíveis arbítrios do poder estatal persecutório penal, mas são insuficientes para tornar o processo penal eficiente, sob os aspectos da defesa social e dos bens jurídicos mais importantes da humanidade (tutelados constitucionalmente), como a vida, a integridade física e moral, a honra, a liberdade, o patrimônio e a segurança[5]”.

Ocorre que o mundo moderno passou por diversas modificações, principalmente em virtude da globalização, as quais geraram efeitos também nas práticas criminosas, que passaram a ser caracterizadas pela transnacionalidade, com uma pluralidade de agentes praticando crimes, escondidos atrás de estruturas organizacionais e aparatos organizados de poder. 

Diante destas alterações, os Estados Democráticos de Direito, além de terem que tutelar os direitos e garantias individuais, passaram a ter o desafio de combater uma criminalidade cada vez mais organizada, que demanda novos meios de enfrentamento.

A fim de darem efetividade ao combate à criminalidade organizada, os Estados de Direito passaram a prever regras especiais de investigação e processamento deste tipo de crime, muitas vezes com mitigação a direitos e garantias individuais, como é o caso das interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal, bem como de infiltração de agentes.

Sendo assim, o grande desafio posto aos juristas modernos consiste exatamente em conciliar a proteção aos direitos fundamentais pautados na dignidade da pessoa humana com a defesa da sociedade, tornando o processo penal eficiente.


2. Subsistemas: Direito Penal comum e liberal

O Direito Penal possui dois pilares de sustentação, consistentes no caso e na lei, de modo que um deve ser analisado sempre à luz do outro, a fim de se evitar distorções.

Não há dúvidas que o saber jurídico do penalista incidirá sempre sobre pessoas, que estão submetidas ao Direito Penal, podendo-se afirmar que autor e vítima são a realidade com a qual lida o Direito Penal.

Por isso, é de suma importância que os operadores do Direito Penal não tenham somente conhecimento doutrinário, mas que também conheçam a realidade sobre a qual estão atuando, ou seja, que possuam conhecimento acerca daqueles que delinquem, bem como sobre as vítimas. Somente desta maneira, o Direito Penal será orientado pelas consequências que produz.

Winfried Hassemer ensina que “a orientação pelas consequências pressupõe que sejam realmente conhecidas as consequências da legislação, da jurisprudência e da execução e que elas sejam pelo menos avaliadas (como desejadas ou indesejadas). A orientação pelas consequências no sistema jurídico-penal pode significar que o legislador penal, a justiça penal e a execução penal não se veem (apenas) diante da tarefa de perseguir o injusto criminal e compensar pela expiação do autor, mas que elas perseguem pelo menor o objetivo de corrigir o autor e conter por completo a criminalidade”. [6]

A orientação do Direito Penal pelas consequências que produz afeta, principalmente, o legislador penal, uma vez que à ele é posto o problema de quais tipos de comportamento devem ser criminalizados e quais os efeitos da tipificação da conduta.  

A infração à uma regra moral ou ética não se mostra suficiente a ensejar a tipificação da conduta, sendo indispensável demonstrar que a conduta causa lesão aos interesses de outros homens, ou seja, bens jurídicos.

Conforme ensina Winfried Hassemer, “a repreensão à violação de uma norma (moral ou ética) não pode ser suficiente ao legislador como fundamento da conduta humana merecedora de pena. Ele precisa antes provar a lesão de um bem jurídico: apresentar uma vítima desta conduta e indicar quanto a esta lesão de bens, interesses[7]”. 


3. Bem jurídico

A ideia de bem jurídico é construída a partir da teoria da lesividade social, a qual remete às necessidades e interesses do sistema social, de modo que nem toda lesão ao interesse do homem deve constituir crime, sendo indispensável que a conduta tenha um caráter socialmente prejudicial.

Dessa forma, sendo o Direito Penal um meio de proteção de bens jurídicos, não há dúvidas que sua expansão ocorre por causa do surgimento de novos bens jurídicos.

Jesús-María Silva Sánchez ensina que “as causas da provável existência de novos bens jurídicos penais são, seguramente, distintas. Por um lado, cabe considerar a conformação ou generalização de novas realidades que antes não existiam – ou não com a mesma incidência -, e em cujo contexto há de viver o indivíduo que se vê influenciado por uma alteração daquelas; assim, a mero título de exemplo, as instituições econômicas de crédito ou de inversão. Por outro lado, deve aludir-se à deterioração de realidades tradicionalmente abundantes que em nossos dias começam a manifestar-se como bens escassos, aos quais se atribui agora um valor que anteriormente não lhes correspondia, ao menos de modo expresso; por exemplo, o meio ambiente. Em terceiro lugar, há que contemplar o incremento essencial de valor que experimentam, como consequência de evolução social e cultural, certas realidades que sempre estiveram aí, sem que se reparasse nas mesmas; por exemplo, o patrimônio histórico artístico”. [8]

Neste ponto, cumpre observar que é indispensável uma adequada determinação do conceito de bem jurídico, de modo que não pode ser considerado como bem jurídico qualquer realidade valorada, sob pena de se aceitar a criminalização de determinadas condutas somente para atender os interesses da classe detentora de poder.

De acordo com Jesús-María Silva Sánchez, “a ideia central é, portanto, que só podem ser bens jurídicos aqueles objetos de que o ser humano precisa para sua livre autorrealização (que evidentemente ocorre na vida social); determinados objetos se convertem em bens jurídicos, portanto, conforme estejam dotados de um conteúdo de valor para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade[9]”.

Sendo assim, somente pode ser considerado como bem jurídico aquele que estiver afeto ao indivíduo e que possua repercussão danosa, o que exclui, consequentemente, a criminalização de condutas unicamente imorais. Isso não exclui, contudo, a proteção penal de bens supra-individuais, os quais podem repercutir na autorrealização do homem, ainda que atinja o indivíduo de forma indireta.

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No entanto, tendo em vista a gravidade da sanção penal que, em grande parte dos casos, enseja restrição de direitos fundamentais, como a liberdade, imprescindível se mostra que o dano à sociedade seja qualificado, que atinja valores protegidos pela Constituição.

 Jesús-María Silva Sánchez ensina que “assentada a consagração constitucional, é necessário seguir no trabalho de concreção das características dos objetos que podem ser penalmente protegidos, para o qual será preciso levar em conta os princípios político-criminais que devem inspirar de modo geral o exercício do jus puniendi do Estado. Em particular, como logo se verá detalhadamente, será necessário atender a considerações sobre o merecimento da pena (derivado do significado atribuído ao bem e da gravidade das diversas formas de ataque a ele) e sobre a necessidade de pena, derivada da ineficácia de outros meios menos lesivos que os penais[10]”.

A delimitação dos bens jurídicos que devem ser tutelados pelo Direito Penal é questão que assume grande relevância, principalmente na atualidade, quando se convive com processos de criminalização e descriminalização de condutas.


4.  Os fins do Direito Penal

Inicialmente, cumpre se questionar quais as razões valorativas para a existência do Direito Penal, tendo em vista as graves consequências advindas de seus mecanismos de coação.

Não existe um único fim a legitimar o Direito Penal, na visão de Jesús-María Silva Sánchez, “o Direito Penal estaria legitimado em razão de sua capacidade de reduzir ao mínimo possível o grau de violência – em sentido amplo – que se produz numa sociedade[11]”.

O monopólio do Direito Penal pelo Estado representa uma série de vantagens aos cidadãos, principalmente após o surgimento do Direito Penal liberal, o qual delimita o exercício do jus puniendi estatal, com mecanismos de garantias para os cidadãos, como por exemplo o princípio da legalidade e a redução do âmbito do Direito Penal às lesões de bens jurídicos. No entanto, não há dúvidas que a pena restringe direitos fundamentais dos cidadãos, consistindo em uma violência à pessoa.

Neste cenário, para que uma conduta seja abarcada pelo Direito Penal, é necessário verificar se o mal que se procura evitar é maior do que aquele advindo da pena, se a pena será capaz de afastar este mal, e se não existe uma outra medida, igualmente eficaz, que cause um dano social menor.

No entanto, conforme as lições de Jesús-María Silva Sánchez, “não se pode ignorar que nesse contínuo repensar da própria legitimidade pelo Direito Penal, ou seja, o problema de seguir ou não sendo efetivamente o mecanismo menos lesivo para alcançar as funções de proteção que lhe cabem (critério utilitarista), e, ademais, se cumpre os fins de garantia formal e material que lhe são atribuídos, ocorre um ponto de tensão[12]”. 

Não há dúvidas que, no que diz respeito à aplicação da sanção penal, o Estado Democrático de Direito se vê diante de duas questões. De um lado, há que se analisar a situação daqueles que veem seus direitos individuais ameaçados e violados pela ação de terceiros e que, consequentemente, demandam a proteção estatal. De outro lado, há que se observar a situação daqueles que veem seus direitos e garantias individuais violados em razão de uma ação do próprio Estado. Neste caso, tratando-se de um Estado Democrático de Direito, o indivíduo deve ser protegido de abusos estatais, evitando-se, ao máximo, a utilização do Direito Penal para solucionar a questão.

Trata-se de uma questão extremamente sensível, que não possui fácil solução. Como ensina Jesús-María Silva Sánchez, “ao se pretender atender ilimitadamente à exigência de uma proteção diante de abusos particulares, se revelaria ao final uma extensão ilimitada da pena estatal e da persecução penal. A consequência seria um Estado policial totalitário. Ao se pretender atender ilimitadamente à exigência de proteção diante de intervenções estatais, seria necessária uma completa abolição da pena estatal e da persecução penal. A consequência seria a anarquia no sentido de uma sociedade sem proteção estatal de bens jurídicos[13]”.

Referida questão ganha, ainda, maior relevância quando se tem em mente o modo social pós-industrial e sua crescente demanda pelo Direito Penal.

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Sobre a autora
camila bonafini pereira

Promotora de Justiça MPSP Mestranda PUC/SP

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo originalmente escrito durante crédito de mestrado na PUC/SP.

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