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Notas sobre hardship nos princípios Unidroit e nos contratos de comércio internacional

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29/04/2005 às 00:00
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2. Das cláusulas de hardship

            Como visto até agora, hardship é a verificação de circunstâncias que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato com as condições suplementares de que tais eventos ocorram após a conclusão do contrato, que não foram levados em conta por ambas as partes, de que os eventos fujam do controle da parte lesada e de que os riscos desses eventos não sejam assumidos pela parte em desvantagem.

            Igualmente do que ocorre com a sua previsão jurídica, o termo "cláusula de hardship" ou "hardship clause" é o mais utilizado pela prática internacional sendo comumente aceita. Porém, as disposições no seio dos Princípios Unidroit e as cláusulas contratuais de hardship possuem particularidades distintas, necessitando, dessa forma, serem estudas separadamente.

            A renegociação é um procedimento amigável cada vez mais comum nos contratos de comércio internacional, passando a ser uma prática de costume adotado pelas partes do contrato para dar prosseguimento à execução contratual. As causas de renegociação podem ser das mais variadas. William Stoever faz um elenco exemplificativo dessas causas, as quais são demonstradas por Maria Luiza Machado Granziera (65), entre as quais se destacam respostas para mudanças nas condições econômicas, políticas e financeiras que modificam as expectativas dos contratantes; alteração na política de importação ou exportação dos países envolvidos diretamente no contrato; criação de novos tributos, ou alteração das alíquotas em vigor; detalhes cuja definição não era suficientemente importante quando da conclusão do contrato etc.

            Porém, caso se verifique uma situação de hardship, que normalmente representa num transtorno para ambas as partes, a renegociação passa a ser obrigatória, podendo em certos casos dar origem a divergências e até mesmo a litígios. Por isso que se exige um dever de renegociar em boa-fé as condições do contrato quando uma das partes se encontrar em tal situação. Dessa forma, as cláusulas de hardship são aquelas que, conforme define o Professor Dr. Júlio Gomes, "estabelecem um dever de renegociação do contrato caso ocorra uma modificação substancial das circunstâncias, modificação essa que afecta o equilíbrio global do contrato". (66)

            Contudo é comum encontrar cláusulas de hardship que regulam a renegociação das partes para casos que não chegam a caracterizar propriamente uma situação de hardship. A principal característica dessas cláusulas consiste em dar importância à renegociação e ao procedimento utilizado para se chegar a um consenso.

            Maria Luiza Machado Granziera (67) explica que essas cláusulas surgiram como meio de suprir as lacunas dos conceitos clássicos do contrato no que se refere à solução dos problemas da incerteza nos contratos de comércio internacional de longa duração. E que, o objetivo da cláusula de hardship "reporta-se à renegociação dos termos do contrato, com a finalidade de criar condições que tornem possível a continuidade de sua execução, apesar das alterações das circunstâncias. É, pois, uma obrigação contratual de meio, e não de resultado". (68) Schmitthoff também fornece um dos objetivos dessas cláusulas explicando que "The object of the hardship clause is by way of renegotiation to convert the contractual relationship from a static into a evolutionary one". (69)

            Assim, as cláusulas de hardship estabelecem a forma ou o procedimento na qual as partes envolvidas devem renegociar, utilizando termos como "boa-fé", "lealdade", "amigavelmente" entre outros. Com relação aos procedimentos de comunicação, as partes optam comumente utilizar o telex, fax, telefonemas ou terceiros intermediadores já especificados no contrato. No que diz respeito ao computo do prazo de renegociação, varia normalmente, de dez a sessenta dias úteis. E com relação ao objetivo das renegociações, faz-se uso das expressões "solução de substituição" ("solution de replacement"), "base «negocial» alternativa satisfatória" ("satisfactory alternative basis"), "solução mutuamente satisfatória" ("solution mutuellement satisfaisant") etc.

            A autora acima citada também fornece duas condicionantes para a aceitação dessas cláusulas. A primeira consiste no fato de que a alteração das circunstâncias deve ocorrer durante o prazo de execução do contrato, e em segundo, a de que em nenhuma das partes pode ser legalmente imputada qualquer responsabilidade sobre a ocorrência dos eventos danosos. (70) Mas com relação à primeira condicionante, parece ser mais exato entender que a alteração das circunstâncias ocorra durante a vigência do contrato e não durante a fase e execução propriamente dita. Pois pode haver contratos cuja execução seja diferida, onde do momento da conclusão até o momento da execução passe um longo período de tempo.

            Juntamente com as condicionantes fornecidas pela autora, existem dois aspectos das cláusulas de hardship explicadas por Schmitthoff e apresentadas pelo Prof. Doutor Júlio Gomes da seguinte forma: "por um lado, procura definir o seu próprio campo de aplicação, circunscrevendo as dificuldades ("hardship") susceptíveis de desencadear o surgimento daquele dever de renegociação e, por outro lado, prescreve o método a seguir no esforço por adaptar o contrato às novas circunstâncias". (71) Esses aspectos consistem no teor da redação dada a estas cláusulas, que é amplo e geral, correspondendo ao seu escopo de manter o equilíbrio global entre as prestações das partes.

            Sem contar com o recurso à arbitragem, a utilização nas cláusulas de hardship de um terceiro qualificado para a adaptação do contrato às novas circunstâncias surge como uma alternativa de auxílio à renegociação. Van Dunnè sugere que "the parties may also resort to third-party intervention if no arrangement has been made in the contract. The ground for this may be found in the principle of good faith… Custom of trade and priour courses of dealing will be of importance in this context". (72) A participação dessa terceira pessoa pode ser de duas formas. Em primeiro lugar esta pode atuar, conforme entende o Prof. Dr. Júlio Gomes (73), como um "acompanhante" permanente da execução do contrato, um "permanent contract referee". Cujas funções consistem em investigar, requerer às partes agirem em cooperação, emitir pareceres vinculantes etc. Ou atuar como um conciliador, que normalmente consiste num "expert independente, propondo um leque de soluções possíveis", conforme Jorge Barrientos-Parra. (74)

            Porém, elas nem sempre são redigidas conforme deveriam ser. É muito comum que uma das partes seja mais experiente ou mais forte que a outra, o que faz com que aquela tenha uma certa visão de prever ou antecipar o futuro ou até distribuir os riscos não eqüitativamente, transmitindo para a parte mais fraca todas as conseqüências danosas, fruto da alteração substancial das circunstâncias. Dessa forma rompe-se com a igualdade de formulação do contrato, nomeadamente no que diz respeito às cláusulas de hardship. É freqüente notar que a procura e manutenção da equidade contratual, objetivo da previsão jurídica do hardship, nem sempre é obtida. Cabe, portanto, realizar uma análise sucinta das suas particularidades nas hipóteses de hardship, que são mais bem demonstradas por Jorge Barrientos-Parra (75), nas situações denominadas como "cenários catastróficos", promulgação de lei ou medidas administrativas que criam situações de hardship ou imposição de obrigações adicionais a uma das partes (no caso, à parte mais fraca). Vejamos.

            Primeiramente, em caso de cenários catastróficos onde surge a falta de disponibilidade de dólares ou outra moeda utilizada no comércio internacional ou mercado intercambiário, as relações de empréstimo bancário podem passar por uma situação de hardship. Nesses casos, é freqüente encontrar disposições (ou imposições) que libertam as instituições financeiras das suas obrigações, sem o cumprimento de qualquer formalidade, ou disposições que permitam o livre reajuste (elevação) de taxas, ou a exigência de reembolso imediato sem prêmio nem penalidade, assim como qualquer outra quantia que se tornam imediatamente exigíveis.

            Um outro caso de cenário catastrófico onde surge a verificação de que a taxa de juros aplicável aos empréstimos não refletem o custo real do refinanciamento das instituições financeiras, na qual seria preciso a fixação de uma quantia acima da taxa de juros. Nessas situações é comum disposições nas quais são acrescentadas certas quantias aos empréstimos bancários, de uma forma ou de outra.

            Nas situações de promulgação de lei ou medidas administrativas que criam situações de hardship (mais especificamente, uma situação de frutration of purpose), são encontradas normalmente a suspensão das obrigações da parte mais forte e, com relação à outra, a execução antecipada da sua prestação juntamente com juros ou outras taxas se for o caso, num prazo previamente estabelecido no contrato (normalmente, sempre pela parte mais forte). Ou dependendo, a transferência das obrigações a uma outra entidade em conformidade com a vontade da parte mais forte, na qual a outra, não poderá recusar essa escolha sem motivo sério.

            Se nas situações dessas promulgações legais ou medidas administrativas houver a imposição de obrigações suplementares, normalmente no que diz respeito a aumento de custos de qualquer natureza, a parte mais fraca fica com o ônus de suportar o encargo, mesmo que a alteração das circunstâncias reflita diretamente no aumento da quantia da prestação da outra parte, acrescido de indenização se for o caso. Se aquela outra parte propuser uma quantia alternativa, ficará ao critério da contra-parte a aceitação da proposta.

            Diante desses quadros, fica claro a percepção de um elevado grau de desigualdade nas cláusulas de hardship. Além de serem cláusulas de meio que visam um procedimento, passam a ser, também, cláusulas de fim que já limitam e impõem o conteúdo da própria renegociação. Sem contar que muitas delas também não incluem a cláusula geral de arbitragem, e quando a fazem constar, limitam o âmbito do tribunal.


Considerações finais

            Através do presente estudo é possível perceber que a lex mercatoria adotou novos paradigmas para dar suporte aos contratos de comércio internacional. O paradigma "moderno" do direito contratual, utilizado pela própria lex mercatoria, tem como principal característica a flexibilidade dos contratos, que passa a ser uma questão chave para a sua própria existência e segurança jurídica. Pois o comércio internacional – ao contrário do comércio doméstico, no qual tende a sofrer poucas influências, proporcionando relações contratuais mais estáticas – sofre muitas influências "externas", imprevistas e imprevisíveis e fora do controle das partes envolvidas. Nas quais podem causar sérias conseqüências à economia do contrato e é por isso que, uma relação contratual dinâmica é considerada o veículo pela qual reúne as mínimas condições para dar vida à relações de comércio internacional. Outra questão de grande importância é o fato de que as leis nacionais, corolarias dos paradigmas "clássicos" do direito contratual, têm se mostradas insuficientes para a regulamentação desses contratos e, até mesmo, prejudiciais para as partes contratantes.

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            O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) elaborou, como saída para essa "questão de emergência", um rol de regras ou princípios básicos mais conhecidos como Princípios Unidroit, perfeitamente harmonizados aos novos paradigmas. Esses princípios não são baseados na lei de um determinado Estado, ou de um conjunto de Estados. Mas sim são baseados em princípios gerais de direito, no costume e na prática do comércio internacional. Esses dois últimos parâmetros sempre foram os alicerces do comércio, desde a sua antiguidade. Por isso que os Princípios Unidroit trouxeram, com bom êxito, as soluções e todos os requisitos fundamentais para reciclar e adaptar a lex mercatoria para as relações contratuais de comércio internacional dos dias de hoje.

            Para se ter chegado a esse resultado, os Princípios Unidroit fizeram da boa-fé um princípio geral (disposta na Parte Geral dos princípios), cuja aplicação fez cair muitos paradigmas nos quais não admitiam flexibilização. Nisso, o princípio do pacta sunt servanda, que impõe o efeito vinculante do contrato, passou as ser aplicado de conformidade com a boa-fé (pacta sunt servanda ex bona fide), como resultado, abriram-se várias exceções a este princípio, inclusive para a aplicação do hardship. A conduta das partes também passou a ser alvo daquele princípio. A boa-fé passou a exigir uma conduta objetiva ("boa-fé objetiva"), que consiste num dever geral, de cooperação amigável e informação e justa distribuição dos direitos e obrigações bem como da assunção de riscos, sempre na medida do razoável, para todas as partes que se relacionam contratualmente.

            Com todas essas condicionantes ficou montado o palco para a apresentação do princípio da renegociação contratual, conhecido pela prática e costume internacional como "hardship". Sua previsão no ordenamento dos Princípios Unidroit, como a de quaisquer outras questões direcionadas ao regimento dos contratos em geral, é feita através de critérios objetivos e, conseqüentemente, de forma mais segura do que em qualquer outra regulamentação parecida (76) ou paralela (77), atualmente. Em conseqüência da utilização desses critérios objetivos os Princípios Unidroit encontraram o sucesso, tornando-se regras muito atrativas para regerem todos os contratos de comércio internacional. De fato, os Princípios Unidroit são mundialmente conhecidos, muito utilizados no comércio e muito bem sustentados pelos doutrinadores. Por possuírem todas essas características, os Princípios Unidroit podem ser considerados como um novo paradigma para a moderna lex mercatoria.

            Assim, pode-se concluir que:

            1. Conforme visto pelo Artigo 6.2.2, o hardship vem a ser a verificação de circunstâncias que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato (ou das prestações, conforme a versão oficial francesa), seja pelo aumento do custo da execução da prestação, seja pela diminuição ou perda total do valor da contraprestação de uma das partes do contrato.

            Para apurar se as circunstâncias alteram, ou não, fundamentalmente o equilíbrio do contrato é preciso levar em conta o que é uma alteração fundamental num determinado caso. Para isso, tem que ser estudadas as características de cada caso, especialmente, no que respeita à natureza e objetivos do contrato, à prática e usos estabelecidos entre as partes, à boa-fé e à razoabilidade.

            2. Os termos utilizados nas black letters das diferentes versões lingüísticas, nomeadamente, equilíbrio das prestações e equilíbrio do contrato não representam nenhum desvairamento pelos autores dos Princípios Unidroit, muito menos uma ameaça à rigorosa percepção da regulamentação do hardship no seio desses princípios. Ambas as versões são equivalentes para tais fins. Pois, conforme resulta dos Comentários desse artigo, o "equilíbrio" encontra-se necessariamente vinculado com a condição econômica do contrato, diretamente relacionado com a execução das obrigações das partes.

            3. Cada parte tem o direito de invocar o hardship. Para tal, fica indispensável a existência daqueles eventos que, por sua vez, alteram fundamentalmente a economia das prestações ou frustram a finalidade do contrato (frustration of purpose).

            4. Juntamente com a alteração fundamental do equilíbrio do contrato, os eventos devem ocorrer ou se tornarem conhecidos depois da conclusão do contrato. Não ser razoavelmente levados em consideração por ambas as partes. Devem estar fora do controle das partes e os riscos da alteração fundamental das circunstâncias não ser assumido por nenhuma das partes. Todos esses requisitos devem ser aplicados cumulativamente. É o que resulta dos Princípios Unidroit.

            5. As cláusulas de hardship possuem características próprias e não sendo propriamente resultantes da regulamentação do hardship dos Princípios Unidroit. Mas, resultam precisamente, da prática e do costume do comércio internacional como uma fórmula a driblar as leis nacionais, precárias em regulamentar a renegociação dos contratos, por dar muita ostentação ao princípio do pacta sunt servanda.

            Assim, as cláusulas de hardship são aquelas que impõe o dever de renegociação quando se verificar uma situação de hardship para uma das partes contratantes. Essas cláusulas normalmente dispõem o método a ser seguido para o decurso da renegociação, estipulando prazos, meios de comunicação, formas de renegociação, opções para as renegociações, utilização ou não de parecer técnico de um terceiro expert independente entre muitos outros requisitos e opções para as partes renegociar e adaptar suas obrigações, caso ocorrer uma alteração das circunstâncias que provocam um desequilíbrio no contrato.

            6. Muitas vezes essas cláusulas se contradizem com as disposições dos Princípios Unidroit, por isso, as partes do contrato muitas vezes pedem a renegociação do contrato invocando a cláusula de hardship mesmo não se verificando uma situação de hardship. Nesses casos, dependerá da vontade da outra parte em levar em consideração ou não o pedido da outra.

            7. É possível encontrar cláusulas de hardship que se encontram "desviadas" da sua finalidade. Ou seja, muitas são elaboradas de formas abusivas, demonstrando uma clara desigualdade entre as partes. Essas cláusulas abusivas normalmente não distribuem eqüitativamente os riscos do negócio e, nesses casos, a parte mais fraca fica obrigada a assumir os riscos de qualquer alteração de circunstâncias, inclusive aquelas que resultam da culpa (ou afetam diretamente a prestação) da outra parte. Quando tal ocorre, as cláusulas de hardship normalmente deixam de ser cláusulas de meio, mas passam a ser, também, cláusulas de fim.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHEMIN, Luiz Ramiro Camilotti. Notas sobre hardship nos princípios Unidroit e nos contratos de comércio internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 662, 29 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6648. Acesso em: 26 abr. 2024.

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